Tá na mente!

Vai Fungo!

Cara, mas isso aqui é o que a gente comprava por cinquenta, não faz tanto tempo assim. Pois é, são tempos difíceis. Ainda assim, estou me sentindo lesado. Lesado você é o tempo todo, zé roela, paga logo sua parte. Era um grupo de quatro, repartindo com uma serra de pão um tijolo; estudavam na mesma universidade, e dois deles eram da história: o Caxambu e o Waltinho, inseparáveis. Caxambu era meio alto, um pouco gordo, cabelos cacheados; Waltinho era baixo e magricela, cabelo longo escorrido. Eram eles que debatiam o preço da maconha agora há pouco. O primeiro vinha obviamente da estância mineira de mesmo nome, o segundo da capital; haviam se conhecido na calourada em que Caxambu era bixo, Waltinho era do terceiro semestre, agora estavam ambos perto da formatura. A viagem da casa do Morcego até a do Waltinho foi um tanto tensa, apesar da curta distância. Velho, põe essa porra no saco, tá entendendo?, disse o dono do carro. No saco? Não faz sentido, eles vão perceber o volume de longe. Põe no porta-luvas e fica tranquilo. Caxambu olhou furioso. É pertinho. O outro acabou cedendo. Saíram da garagem e pegaram uma avenida principal, viraram à esquerda, eram quase duas da manhã e eles obviamente haviam bebido e fumado um. Waltinho prestou atenção a uma placa, virada para o lado oposto: não estamos na contramão, não? Porra, é mesmo, mas eu viro na próxima. Não deu tempo, eles avistaram as luzes eletrônicas que vieram aposentar as tradicionais giratórias: eram eles, os porcos.

Obedeceram ao sinal de encostar, ambos extremamente nervosos. Eu falei pra você esconder isso, porra. Fica tranquilo, eles não vão revistar. Você pingou colírio? A placa é de fora, você vai dizer que não conhece a cidade, eles vão passar uma multa e tudo bem. Ah, tá, então vão falar: tudo bem, podem ir! Como é que me entra na contramão, retardado, há quanto tempo mora aqui? Boa noite senhor, habilitação e documento do carro. Pois não, só um instante. O senhor está transitando na contramão. Sério? Nossa, eu sou de Caxambu, vim visitar um primo, não conheço bem a cidade… Isso não justifica nada, saia do carro, por favor. Os dois. Eles se olharam, preocupados. Senhor, seu documento está atrasado. Mesmo? Mas o final é sete, eu tenho até julho para pagar, é assim em Minas. Essa não cola, moleque. Os dois estavam lado a lado, e o policial jogou a luz da lanterna em seus rostos. Eu deveria recolher o carro, você sabe. Não é necessário, seu guarda, veja… Eu vou fazer o seguinte: vou aplicar a multa, que é meu dever, vocês me dão a maconha que têm no carro e podem ir. Waltinho deu a volta no carro, abriu o porta-luvas e pegou apenas uma das pedras. O policial a tomou com a mão enluvada, examinou-a, tá bom, vai, estou com preguiça de escrever hoje. Deu um safanão em cada um deles, devolveu os documentos. Tudo bem, podem ir; e voltou para a viatura, onde seu parceiro ria às gargalhadas. Entraram no carro; e agora, está se sentindo lesado, seu lesado? Porra, até estou, mas estamos saindo no lucro.

Chegaram à república do Waltinho, uma casa avarandada caiada de amarelo, fizeram festa com o Torque, o vira-lata que um cara da física tinha adotado. A primeira providência foi bolar um baseado; ainda tinha cerveja na geladeira, abriram duas. Cara, que fita, mano, a gente podia ter se fodido grandão nessa. Sorte que o coxinha queria dar umas bolas. Ele vende, idiota, faz uma grana nisso. Como você acha que ele percebeu? Meu, se olha no espelho, você tá japonês. Na verdade eu já ouvi falar nesse cana que confisca o beque da galera. Meu, tem alguma coisa pra comer aí? Ah, deve ter pão, mas tá meio velho… tem um pão de queijo pra assar. Nossa, põe no forno! Fumaram jogando videogame, antes da metade estava cada um jogado para um canto. Caxambu a dado momento acordou com vontade de ir ao banheiro, sentiu cheiro de queimado e se lembrou do pão de queijo. Estava obviamente torrado, e a cozinha repleta de fumaça. Abriram todas as portas e janelas para que ela se dissipasse, mas contribuíram com sua própria fumaça. Cabeça! A ideia foi sua, você devia ter ficado acordado. A culpa é sua, seu cabeça de Cheech n’ Chong, tinha que bolar mais um? Agora já era, mano, cadê o pão? Tá em cima da geladeira, tem manteiga também, faz na frigideira, e faz um pra mim. Caxambu morava em um apartamento no Centro, tinha que pegar uma estrada; foi até a porta e sentenciou: cara, vou capotar por aqui, estou com sono pra dirigir. Sono é o menor de seus impedimentos a dirigir; é melhor mesmo, tá chovendo pra caralho, também.

Waltinho acordou com a boca seca, estirado em um dos sofás imundos: nem teve força para procurar sua cama. Acendeu um cigarro e esquentou um pouco de café, estava intragável, tomou um copo d’água e foi acordar o amigo. Caxambu demorou a levantar, espreguiçou-se; acabou aquele pão? Acabou, vamo lá na padaria encarar um misto. Os dois se calçaram e andaram cinco quadras até a padaria, comeram e voltaram. Digestivo? Agora. Começaram uma partida de xadrez, daquelas que podiam durar horas; de repente alguém bloqueou a luz que entrava pela porta aberta: era o Focinho. Entra Focinho, ainda tem uma ponta aqui. Opa! Cara, você não imagina o que aconteceu com a gente ontem, disse um. Um policial ficou com metade do nosso banza, completou o outro. Putz, de novo? Peraí, metade? Por que só metade? Ele não sabia que tinha mais. Porra, então não está tão mal. Um amigo meu, o Marco, você conhece, perdeu duzentos de uma vez pra esse mesmo filho da puta. Focinho fazia um triângulo com os dedos para conseguir tirar alguma coisa da ponta. Eu vim com uma proposta pra vocês. Fala. Viram o sol lá fora? Hum… E ontem à noite, o que aconteceu? Choveu. Então, vamo lá? Ah não, protestou Caxambu, eu tenho uma prova de oriente médio, não posso bombar de novo. Quando é a prova? Quinta. Ah, você estuda na quarta, tá tranquilo. Ele nem se fez de difícil, entraram todos no carro.

Pularam a cerca, que era dupla, e começaram a percorrer o pasto cantando o tema dos smurfs e passando um petardo um para o outro. O Caxambu achou, dois de uma vez. O chapéu amarelado e o anel no centro, que quase sempre estava quebrado, fica azulado quando quebra, é esse mesmo. Cada um já tinha achado um monte quando ouviram um latido furioso vindo na direção deles. O dono da propriedade podia ser visto de fora de uma caminhonete, no topo da colina. O cachorro estava longe, e por sorte estavam já perto da cerca. O problema foi que o Focinho conseguiu cair entre uma cerca e outra, e ficou todo preso; os dois voltaram e tiveram trabalho para o desvencilhar do arame farpado. Focinho escapou do arame quase ao mesmo tempo em que o cachorro alcançou a cerca. Caralho! Cê tá bem, mano? Bem? Olha pra mim, porra! Seus braços e pernas estavam todos cortados. Calma, vamo lá em casa, a gente lava isso, passa alguma coisa, Waltinho disse, entrando no banco de trás. Quando juntaram as colheitas de cada um, viram que a safra havia sido ótima; aquele era o melhor pasto, alguém observou. Chegaram; ele tomou um banho, aplicaram qualquer antisséptico, que por sorte alguém tinha, e dirigiram-se à cozinha para a confecção do chá. Mas Waltinho viu o relógio e ponderou que ainda pegavam o bandejão aberto se saíssem naquele momento; ninguém discordou. Entraram no campus, passaram em frente à radio, estacionaram: chegaram a tempo; cada um com sua bandeja, serviram-se e se sentaram. O Caxambu encontrou o Pastel, fez o comentário, e automaticamente o Pastel estava na fita. Voltou para a República da Esbórnia com eles. Caxambu fazia um café, Waltinho fazia um beque, Pastel olhava os discos e Focinho reclamava da sorte. Acenderam o digestivo, conversaram e combinaram de tomar o chá às quatro, para fazer a digestão e aproveitar o pôr-do-sol. Parece que tem uma festa hoje na arquitetura, Pastel comentou. Nossa, eu não soube de nada. Parece que é meio de última hora, mas vai rolar mesmo. Bem quando a onda estiver acabando, perfeito. Voltaram à cozinha, colocaram os cogumelos numa panela com água e acenderam o fogo. Waltinho acendeu um cigarro e provocou Caxambu: a Diana vai estar lá. Que esteja. Vai estar lá com o namorado. É um direito dela. Cala boca, Caxa, todo mundo sabe que você não superou a Diana. Ah, vai à merda, olha isso aí que deve estar bom. Estava; encheram dois quintos de uma jarra pequena, que puseram na geladeira. Caxambu pegou a estrada, ia em casa tomar ao menos um banho; os outros três ficaram na casa, ouvindo música, jogando videogame e fumando, ocasionalmente.

O Caxambu chegou às quatro e meia, todo arrumado, os outros tiraram um sarro, Waltinho sorriu. Foram à cozinha e serviram quatro copos até quase a metade. Todos tomaram de um só gole. Ah, que troço ruim, Caxambu reclamou; poxa, eu gosto do sabor, você acostuma, Pastel discordou; uma vez eu fiz um que ficou um liquor, Focinho acrescentou. A universidade não era muito longe, foram andando, tomados de expectativa. Cara, a gente é louco de fazer isso na semana de prova. Relaxa, cara, vai dar tudo certo. Sei lá, meu, a pressão tá foda. Vocês tão sabendo da última da Mariana? Qual? Bem, que ela largou o César e tá dando pro Trindade vocês já sabem, ontem ela deu um jeito de fazer os dois se encontrarem, ficou provocando o César, que acabou saindo na porrada com o outro, e ela ficou de lado se achando o máximo, foi na cantina da física, todo mundo viu. Cara, disseram que o César tá mal, tá perdendo prova por isso. É, mas onde é que ele foi se meter, também! Waltinho lançou um olhar maroto para o amigo. Estavam chegando ao campus, e o efeito começava a se fazer sentir. Um certo mal-estar febril, uma consciência exacerbada do corpo, trocaram risinhos: você também? Foram direto para o teatro de arena, esparramaram-se nos bancos de concreto; uma galera andava de skate no palco. Waltinho, você não fez uns banza antes de sair? Eu não, nem pensei nisso. Então vamos fazer correndo, porque vai ficar mais difícil. Todos trabalharam para confeccionar cinco baseados. O Pastel veio teorizar sobre a arte de dichavar: tem duas técnicas, ou você pega cada pedacinho e reduz a pó ou vai quebrando em pedaços cada vez menores. E você já calculou com rigor científico qual é o mais eficiente? É mais uma questão pessoal, mas o primeiro evita aquele berlozão perdido no beque, que fura nossa roupa. E de que adianta tanta ciência pra dichavar se o beque que você faz é um pastel? Ah, não é não, eu melhorei bastante. Vamos ver. Na hora de apertar, a coordenação já não ajudava, Focinho ficou segurando a seda aberta um tempão, viajando com um sorriso bobo nos lábios; Caxambu estalou os dedos, acordando-o e todos riram. Terminaram o trabalho, o do Pastel ficou mesmo um pastel, e foi o que acenderam. Passa uma goma aí, senão abre. O celular do Caxambu tocou, não atende, aconselhou Waltinho; calma, é o Du. Fala, Du! Beleza, não imagina o que estamos fazendo. Já fizemos, na verdade. Exatamente! Pode deixar, vamos ficar bem. Sério? Que massa, meu, nós vamos estar lá. Então tá, até mais tarde. Desligou: a banda do Du vai tocar na festa da arquitetura! Porra, que louco! Massa! Será que vai dar certo? Por quê? Sei lá, eles andam meio… deixa pra lá. Naquele momento Waltinho e Focinho se levantaram e passaram a examinar os graffiti nas paredes do teatro. Olha essas cores, caralho! Caxambu ficou onde estava, deitado, olhando as nuvens esparsas executarem um balé fractal para seu deleite, sorrindo de orelha a orelha. O Pastel foi trocar ideia com os skatistas, ainda subiu no skate e tomou uns tombos, voltou gargalhando. Waltinho chamou a todos para tomar água na biblioteca, Caxambu não queria levantar, nem conseguia explicar por quê. Wrauwreuwrouaeiau… Acabaram todos se deitando também, ficaram lá vários minutos. Vamos tomar água, um acordou do transe, todos foram se levantando. Cara, agora tá pegando nervoso. Seguinte, ninguém se separa do grupo agora. Focinho observava o movimento normal da universidade e aquelas pessoas pareciam estar em uma dimensão paralela; via uma garota bonita e ria: como se esforçam para serem tão normais, aliás, como tudo precisa fazer tanta força para funcionar… ele se sentia sendo levado por uma correnteza, seguro. Apesar disso, o chá estava cobrando deles a pior fase da intoxicação. Tomaram água, houve um impasse: Caxambu achou que seria ótima ideia conferir a exposição fotográfica na galeria, Focinho gostou da ideia, mas os outros dois não queriam ficar em ambiente fechado, com mais gente. Olha, o pôr-do-sol não demora muito, vamos indo pro Platô, Waltinho sugeriu. Não, cara, é horário de verão, ainda demora; vamos no bosque da economia. Fechou, todos apoiaram.

Era apenas uma área com pinhos, bastante aprazível. Waltinho começou a se sentir inseguro, e puxava assunto sobre o futuro, os outros o demoveram, queriam curtir um silêncio; quase silêncio, ficavam emitindo uns grunhidos bizarros de vez em quando, esparramados no chão. Waltinho disse que tinha que ir ao banco. Cara, fica tranquilo, não é hora disso, você vai à noite. Ele respirou fundo e tentou vencer a ansiedade. Meu, cê tá tendo uma bad?, o amigo se preocupou. De leve, de leve. Então melhor ficar de fora desse aqui, e acendeu mais um. A conversa dos outros, sobre carros, o irritava, então se distanciou um pouco; o amigo foi lá e conversou um bom tempo, tranquilizando-o. Eu quero ir pra casa. Relaxa, seu corpo é sua casa. Decidiram caminhar até onde veriam o sol se pôr. Cara, é como caminhar na lua! Como você sabe, nunca esteve na lua! Ah, não enche. Era uma subida, até uma parte plana no meio de um morrote; Waltinho, o único que fumava careta, sentiu cansaço no meio do caminho. Mas a cabeça, tá melhor? Tá sim, foi um grilo à toa. Chegaram lá, onde um casal se beijava, ao lado de uma moto. Cumprimentaram-se, a trupe se instalou em outro canto e acenderam mais um dos beques. Conversaram sobre viagens que cada um tinha feito, e algumas peripécias envolvidas. E quando a gente tomou um ácido no MASP? Porra, a gente era moleque. Bem, vocês ainda são, pelo visto. Uma vez eu passei um aperto na Pedra do Baú, cara, tinha que descer uma pedra, mas não dava pra ver nada; a galera estava acostumada, mas eu sofri de medo. E você tinha tomado doce também? Não. Então o que tem a ver? Sei lá, só lembrei; não esperava a inquisição espanhola. Só os dois amigos, fãs de Monty Python, riram. Aí o Pastel e o Focinho entraram numas de zoar o outro com piadas meio infantis, os outros se apartaram e conversavam sobre música: Caxambu estava descobrindo o jazz e o amigo falava um pouco sobre os principais nomes e movimentos. Porra, o problema de sair é que não dá pra ouvir música. A gente pega o fim da onda em casa. O céu começava a ficar avermelhado, eles trocavam comentários sobre os matizes que só eles viam, ou sobre o formato das nuvens. Acende mais um? Ah, esse é sagrado, não? Seus retardados, a gente acabou de fumar. Fumaram quietos, era a fase contemplativa da viagem. Um grupo de maritacas sobrevoava o morro, em círculos. Parece que elas estão só se exibindo pra gente! Waltinho ainda não esquecera suas preocupações com o futuro de todo, e Caxambu pensava demais no passado. Que adiantou se arrumar todo, Caxa, você tá todo sujo. Caralho, é mesmo, e agora?

Desceram com uma sensação boa de dever cumprido. A rádio ficava no caminho, e encontraram um camarada fazendo programa. Contaram as aventuras do dia e a desventura da véspera, e o Caxambu achou por bem fazer uma preza pro Murilo com o beque que não tinham fumado. Ele agradeceu e observou que estavam todos imundos, riram. Caxambu estava preocupado, disse que ainda ia em casa trocar de roupa. Melhor não dirigir assim, pega umas roupas emprestadas. Ah é? Você tem metade do meu tamanho. O Focinho mora perto, ei Focinho, você emprestas uma roupa pro Caxa? Claro. Viu? Chegaram, o Waltinho foi correndo colocar um disco do Miles e o Focinho fez um caprichado. Cabeeeeça! Ficaram curtindo o final da onda, cansados. Caralho, minha bike ficou lá no bandejão!, Pastel se deu conta. Caxambu se ofereceu para levá-lo em casa, de lá foi levar o Focinho e buscar a roupa e voltou para tomar banho na Esbórnia. A camisa era um pouco pequena, pegava na barriga, e ele se sentia ridículo. Já caminhei muito hoje, vamos de carro.

A festa estava meio vazia ainda, o pessoal do Du estava preparando tudo, foram lá conversar. Eles tinham conhecido aquela tarde um aluno da música que ia tocar violino com eles. Se prepara, o Du alertou. Providenciaram cada um uma cerveja, que ainda estava quente, era sempre assim. Circularam, o Caxambu encontrou um grupo de garotas da engenharia de alimentos que ele conhecia, apresentou o amigo, cada um contou suas histórias de fim de semestre, provas feitas de ressaca ou bêbado, madrugadas estudando à base de café. Elas começaram a falar dos planos para as férias, Caxambu as convidou para conhecer a cidade dele. Elas se foram, ele confidenciou ao amigo que já tinha ficado com a mais baixinha, mas que foi uma história esquisita. Como assim? Ah, nada, esquece. Conta porra, foi falar, agora conta. Tá, eu nunca falo isso pra ninguém, mas vá lá: o que aconteceu foi que eu estava com muita vontade de ir ao banheiro, mas, sei lá por quê, não queria interromper, a gente estava na sala da casa dela, fazendo só uma sacangemzinha, sabe como é. Bem, na hora de gozar… imagina o que saiu…. Golden shower? É, meio involuntário. Mandou bem.

Buscaram um canto afastado para pitar um sem serem incomodados demais pelos abas de sempre. Cara, eu não fui ao banco, lembrou Waltinho. Ainda dá tempo, quer ir lá? A gente vai de carro. Beleza, vou só terminar de apertar. Como diz a música. Como? Do Bezerra. Pois é. Entraram no carro, Waltinho voltou a falar em suas preocupações. Pois é, cara, vou formar e fazer o que? Dar aulas? Por uma merreca? Mestrado? Com meu pai me sustentando? E a Nádia? A gente já namora há cinco anos, ela quer que eu volte, quer casar, porra, eu não estou pronto. Porra, meu, espera terminar e aí se preocupa, tenta o mestrado lá, não sei, vai dar certo. Espera aí. Entrou na agência e ficou um tempo olhando o terminal: a noção de que uma máquina lhe dava dinheiro o incomodou, essas ideias de cogumelo. Sacou algum dinheiro e voltou para o carro. Caxa, ouvi falar que vai ter concurso pro Banco. Taí uma boa, você passa tranquilo.

Chegaram de volta à festa, e a Vó Dilza estava tocando. Mas em vez do repertório de rock nacional que já haviam tocado em outras festas, o que se ouvia era um improviso dos mais ousados, cada um tocando uma coisa, mas com resultado muito bom, ao menos na opinião do Waltinho, que estava entusiasmado. Eu falei que eles estavam numa onda experimental. Caxambu talvez ainda não estivesse pronto para assimilar, assim como a imensa maioria ali presente, apenas uns músicos olhavam impressionados, segurando o queixo. O Du depois contaria que foram quarenta minutos de liberdade musical e de sinais da produção da festa para que parassem. Ainda tentaram tocar algo mais estruturado, mas o estrago já estava feito; o Du foi ao microfone. Obrigado, vocês não entendem nada, vocês nunca entenderam nada mesmo! Dali em diante a produção teve o mau gosto habitual na seleção das músicas.

Andavam por aí com suas cervejas, ficavam de olho numa ou noutra mina, encontravam este ou aquele camarada, incluindo os dois de mais cedo; o Pastel estava com uma mina, pegou o beque e esqueceu dele, Waltinho provocou: ô bígamo! ué, casou com o banza e tem duas mulheres, riram. Voltaram à bagunça, e deram de cara com ela, a Diana. E ela estava mesmo com o namorado. Meu, olha lá, não é a cara do polícia que bateu na gente? Viagem sua, Waltinho, esquece essa piranha. Deram mais umas voltas e de repente Caxambu sente uma mão em seu ombro; era ela. Oi, Diana, e esticava a camisa para tentar esconder a barriga. Cê tá bem? Bem, sim, quer dizer, fim de semestre, né? E você? Ah, letras é tranquilo, né, pra mim é. Que bom, eu preciso… Você está magoado comigo ainda, né? Não, magoado não. Você sabe da sua vida, eu só não consigo entender. E seu cara, onde foi parar? Foi ao banheiro. Pois é, eu também preciso… Calma, dá pra esperar um pouco? Pode falar. Tá vendo, eu não quero conversar assim. Então tá bom, eu… Rogério, eu fiz uma besteira, eu sei. Caxambu olhou sério para ela. Você está com outro cara. É, mas… não quer dizer nada. Me dá uma chance de explicar… Seu cara está voltando, me liga se quiser, tchau. Waltinho observava tudo, e cobrou um relatório. Caxambu desfez a pose de durão e abriu um sorriso: ela quer voltar.

A festa estava cheia de gente agora, mas a música não estava boa, e quando o Marcelão disse que o Marco estava fazendo o programa na rádio, não tiveram dúvida. Voltaram a olhar o graffiti do teatro de arena, que não parecia tão incrível quanto à tarde. Fala Marco! Ô, chega aí. Estava tocando Primus. Cara, a gente tomou cogu hoje. Massa! Nós dois mais o Pastel e o Focinho. O Focinho disse que você perdeu duzentos gramas pra um coxinha? Foi, mano, mas é melhor que ser preso, não? Pois é, aconteceu com a gente ontem. Não brinca! É, mas a gente ainda salvou uma pedra. Massa, bota um então, eu tô sem nenhum. Bateram um papo, falaram umas besteiras no ar, e não demorou a surgir a ideia de subir: a rádio ficava em baixo de uma imensa caixa d’água. Leva dois prontos, puseram-se a trabalhar. O Marco mandou um som do Yes de mais de vinte minutos. Era preciso subir em uns canos, atravessar para o outro lado e subir por fora da grade até a primeira cestinha, onde era possível acessar a escada; Waltinho subiu primeiro, Marcelão, que subia pela primeira vez, observou atentamente, e não teve dificuldade, Caxambu apesar da barriga não teve problema (era preciso se esgueirar num espaço estreito), Marco subiu por último. No topo, Marcelão se admirou com a vista, acenderam o beque e ficaram proseando. Ela disse que quer explicar, explicar o que! Cara, você gosta dela, não importa, mulher é complicado mesmo. Eu não queria mais essa pra cabeça, amanhã eu preciso estudar o dia todo. Oriente médio é fácil, é só decorar todas as guerras e acordos fracassados. Como se fosse pouco. Marco tirou o segundo baseado do bolso e sentenciou: esse pessoal só precisa descobrir o cachimbo da paz! Acende logo isso que tá um frio danado aqui.

Praia do Martino

O acesso era difícil, meio escondido, contornando o porto pertencente à companhia de petróleo, e dava para uma pequena enseada de areia escura, que traçava um arco entre o porto, protegido por uma tela alta, e uma rocha enorme, a qual o mar esverdeado não cessava de golpear com suas ondas de espuma branca. No meio da praia havia um tronco, e terra adentro havia uma vegetação arbustiva e então um morro coberto de uma mata densa. A temperatura era amena e o sol já não era intenso, ainda que a luz fosse abundante e o céu de um azul plácido, quando Bogó e eu atingimos a Praia do Martino. Estávamos sós e o ácido estava batendo forte àquela altura. Eu revia um amigo de longa data depois de muito tempo e isso mereceu uma celebração lisérgica. Celebração em termos, porque há sempre uma ansiedade envolvida na viagem, mas naquele dia eu estava sabendo lidar bem com isso. Corri até a água sentindo cada grão de areia sob meus pés, que uma vez imersos sentiram a conexão imediata com todas as moléculas de água de todos os oceanos, e de repente eu estava em toda parte. Expliquei ao Bogó minha epifania: “não há separação entre os átomos”, e ele ria enquanto se preparava para pular na água. Eu tinha até medo de me diluir no mar, então evitei mergulhar e me sentei no tronco. Conversava displicentemente com o parceiro de aventura, mas dedicava mais atenção a observar à minha volta. A areia estava cravada de incontáveis buraquinhos que eram moradia de pequeninos crustáceos, e me pus a me imaginar vivendo a vida dos mini-caranguejinhos, trocando de carcaça e começando tudo de novo quando a água invadisse minha toca. Olhei à minha direita, onde havia um rochedo alto e um tanto de pedras de diversos formatos amontoadas umas sobre as outras, e me punha a imaginar desde que um vulcão cuspiu lava e aquela rocha se formou, passando por bilhões de anos de erosão e movimentos tectônicos de modo a que tivessem aquela configuração específica, que de modo algum poderia ser outra. Era possível ver as marcas da maré na pedra, indicadas pela presença de algas e líquens, e na parte mais longe da areia era possível ver os sururus cravados na pedra, quando o mar recuava. Pelo menos eu não tive que me imaginar como um sururu desta vez. A onda bateu então mais forte, e eu me deitei na areia, olhando o céu translúcido. Pequenos formatos geométricos se destacaram da monotonia azul, algo como se o céu fosse uma tela de um jogo de encaixar, e eu estiquei o dedo para jogar, mas só atingi meu nariz e fiquei fazendo sons sem sentido, enquanto o Bogó, que saíra da água se ria gostosamente. Decidimos fumar, e para isso fomos até as pedras. De perto, eu pirava ainda mais naquelas mil formas empilhadas, nos veios da rocha, e tentava não escorregar, a caminho de uma pedra grande que se projetava no mar. Talvez nem fosse prudente fumar no ápice da onda, mas eu estava confiante. A conversa seguiu sobre a grande toleima humana e eu continuei reparando nos detalhes. Havia uma incipiente vegetação grudada à rocha, desde musgo até aquela planta espinhenta que parece bromélia mas não é. Olhando para longe do mar, apreciava a restinga, e a variedade de tons de verde saltava à minha vista turbinada, já o morro parecia uma grande ovelha de lã verde escuro. Eu tinha certeza que podia me comunicar telepaticamente com qualquer animal naquela mata. “I am the Walrus!” E o mar, que espetáculo, estava revolto e castigava o penedo em grandes explosões, e eu me deixei levar de novo na “trip” geológica até a formação dos oceanos, quando a terra era coberta de fogo e a litosfera… “litosfera, mano, a crosta terrestre! você sempre foi mau aluno.” O baseado potencializou mais a onda, como era esperado, e quando decidimos voltar, eu me sentia muito inseguro ao andar nas pedras, voltei à base e tentei recobrar o domínio de mim mesmo. Realmente não era prudente fumar àquela hora, e eu entrei numa “bad” de culpa, até que o Bogó voltou e tentou me acalmar, eventualmente conseguindo. Conversamos mais um pouco até que eu tirei a roupa e pedi que ele a levasse até a praia, o que mesmo protestando ele fez. Faltava alguma coisa naquele dia. Eu podia até me diluir, não ligo mais. Foi uma sensação maravilhosa afundar na água gelada.

Segura Firme

Ññññzzzzzz ah! Caralho, é boa! Caralho! Onde você conseguiu? Lá? Só peguei porcaria lá. Enquanto catava o restinho com o dedo e esfregava nos dentes, o empresário do varejo de autopeças passava com a outra mão a nota de cinquenta enrolada num canudinho ao filho de índios expulsos de sua terra por grileiros, que vivia pelos arrabaldes da capital do estado se agarrando a qualquer bico que aparecesse. Era uma relação simbiótica, um tinha dinheiro, o outro tinha trânsito em qualquer boca, e nada a perder se algo desse errado com os homens da lei, que já o conheciam, e não tinham nem o que extorquir nem motivo para manter o pobre demônio atrás das barras. Fernando, ao contrário, mantinha o hábito escondido até da esposa, e quando começava a exagerar inventava viagens de negócios que eram na verdade temporadas em clínicas. De modo que quando encontrou Jaiwanã ficou feliz por se libertar da função de entrar na favela com seu carrão e rodar por aí com o flagrante depois.

Carlos, que era o verdadeiro nome de Jaiwanã, apelido ganhado em alusão a um célebre indígena que se tornara vereador e fora assassinado, puxou o pratinho onde estava sua parte e o cartão de crédito do parceiro e reconstruiu a carreira meticulosamente, de modo a não perder nem um grãozinho, mesmo que a maior parte fosse pó de mármore, outro tanto efedrina e só um pouco de fato cocaína. Desenrolou e tornou a enrolar com cuidado a nota, sorriso de dentes amarelados no rosto, inclinou-se e percorreu o caminho traçado: Ññññzzzzzz ñzzzz ñzzzz, fungava talvez com medo de perder alguma coisa. Taporra seu Fernando, é boa mesmo. Você ia lá na época do Bero, ele batizava ainda mais a brizola, deram um jeito nele por isso, dizia enquanto garimpava os resquícios para esfregar na gengiva, batia a nota na esperança de soltar mais alguns e por fim desenrolava e esticava os cinquenta reais, que dobrou e meteu no bolso da jaqueta puída – parte do trato.

Não guarda não, Jana – era o apelido do apelido – dá mais uma, e despejou no prato todo o resto de pó que estava no tubo plástico, parecido com um desses remédios para ressaca que não funcionam. Eita, seu Fernando! Eu briguei com minha esposa, Jana, ela foi pra casa da mãe. A noite vai ser longa. É que eu tenho um serviço pra entregar, seu Fernando, senão até… E o que é dessa vez? É uma televisão, tá atrasado, eu não posso. Carlos na verdade tinha receio, uma vez que o parceiro, quase um patrão, estava acelerando, e ficava errático quando cheirava muito. Te asseguro que não vai conseguir dormir, até meia noite está em casa e conserta essa porra de televisão de madrugada. Tá recusando brizola, Jana? Carlos não respondeu, só repetiu o processo para cheirar mais uma, e fez uma gorda de propósito. Fernando seguiu seu exemplo e esmurrou a mesa. Cadela! Levantou-se e buscou o controle da tevê em cima da geladeirinha, ligou e procurou o canal de noticiário. Esmurrou a geladeirinha e começou a xingar os políticos de forma difusa. Tem que matar! Passou da hora de mandar pro paredão! Abriu a porta e tirou a bandeja de gelo, torceu-a de um lado e do outro e a pôs de lado sobre a mesa. Abriu o armário e sacou de lá dois copos, metendo os dedos no interior deles sem cerimônia, e com a outra mão empunhou uma garrafa. Uisquinho, Jana?

Jaiwanã enfim relaxou e decidiu curtir a noitada. Tinha mesmo trabalho, mas sua cliente não pressionava muito, sabendo que escolhera mesmo a mão de obra mais barata. Então brindou com um sorriso quase convicto e saboreou a bebida importada que do contrário nunca poderia beber. Desde quando você é técnico de eletrônica, Jana? Ah, quando eu morei lá no Silvares tinha um curso por correspondência, do falecido esposo da dona da pensão, eu fui lendo, consertei um rádio e fui indo, comprando umas ferramentas usadas… a gente se vira seu Fernando. Outro dia era marcenaria, não era? Lá na oficina do Brunão? Era, seu Fernando, eu faço o mais simples. Encanador, eletricista… Pedreiro também. Você é um herói, senhor Jaiwanã. Olha por aí, as pessoas só sabem fazer uma coisa, ou nenhuma. Você merece uma placa. Eu prefiro um emprego decente, seu Fernando. Uma placa de platina nesse nariz, índio safado, e chacoalhou o gelo no copo gargalhando. Não era o primeiro abuso racial naquela relação que, pensando bem, não podia ser descrita como simbiótica senão num nível muito superficial. Mas Carlos, tendo tomado gosto pela branquinha – e habituado a tais ofensas veladas em jocosidade por toda parte – não só soltou um riso abafado como pegou uma tampa de refrigerante que estava sobre a mesa, destacou o lacre e passou com ele entre as narinas, entrando na brincadeira, suscitando longa gargalhada no outro. Carlos era mais velho, e se fosse de linhagem europeia já teria o cabelo branco, estava naquela vida de cafungar havia décadas, o que certamente o atrapalhava na conquista de alguma estabilidade financeira, de modo que ele também não podia deixar de aproveitar a proximidade com o empresário, que começou de modo fortuito quando a copeira da loja o indicou para limpar a caixa de gordura e a conversa de tão boa foi parar no bar mais próximo e daí é fácil imaginar como prossegue.

Hoje é dia de futebol, seu Fernando. Ninguém estava prestando atenção à televisão mesmo, que exibia uma entrevista. Quem joga hoje? Flamengo de novo, só passa Flamengo. Tem mais uma perninha de grilo pra cada, Jana. Olha isso aqui, e tirou da carteira uma nota de cem, novinha. Prepara aí. Jaiwanã esfregou as mãos, sabendo que a nota seria dele, e esticou com cuidado duas linhas bem finas, enrolou a nota devagar e tratou de aspirar a sua, fungando como sempre. Fernando enquanto isso gritava com os jogadores que nem eram do seu time, por errar um passe ou perder um gol, e entre um xingamento e outro sobrava algum para a esposa, vadia, puta ou ao menos desgraçada. Ele então cheirou a sua em pé, como estava, e tentou beber o resto do uísque, já aguado, de uma vez, e se engasgou. Vários palavrões depois ele parou de tossir e recobrou o fôlego. Casar? Que besteira casar, Jana! Parasita é o que ela é, vadia. Calma, seu Fernando. Volta lá, Jana. Carlos já sabia que isso ia acontecer, mas não esperava ouvir ‘toma quinhentos’. Ele vestiu de volta a jaqueta que havia posto no encosto da cadeira de tubos de aço. Era melhor não perder tempo se queria ter ônibus pra voltar – taxi nem entrava na quebrada. Algo dizia ao índio pacato que devia ficar com o dinheiro e sumir, buscar outro lugar, outra cidade até, para morar. Mas enganar os outros não era de seu feitio, então aguardou no ponto, sob uma chuvinha gelada, o quatro-sete-nove que o levaria ao bairro Estancieiros.

Oi meu amor! Não, claro que não. Desentendimento é coisa que acontece. Depois a gente conversa com calma. A gente se ama, ora. Tudo tem seu tempo. As coisas não estão fáceis na loja, eu já… claro, claro que entendo. Quando você voltar, a gente conversa direito. Sua mãe está bem? Claro que estou em casa. No fixo? Eu desliguei da rede, lembra? Não para de tocar com propaganda. Eu te contei isso. Ninguém usa mais fixo. É impossível, eu arranquei o cabo da parede. Aqui, estou ao lado do aparelho, não dá linha. Não estou mentindo. Acalme-se, Patrícia. Tá bem, eu vou desligar agora, beijo. Beijo. Beijo, tchau. Na lateral da geladeirinha havia um ímã representando um motociclista, trazendo dois números de telefone, e sem deixar que o aparelho apagasse ‘seu’ Fernando discou na tela com dedos ágeis, mas aguardou em vão que atendessem, mesmo resultado para o segundo número. Conteve-se para não arremessar o telefone contra a parede, e foi repentinamente salvo do mau humor por um gol muito bonito, de voleio, contra o Flamengo. Serviu a última dose com as últimas pedras de gelo, e nesse instante o telefone tocou. Após um breve introito, encomendou um saco pequeno de gelo e uma garrafa ‘do black’.

Era o penúltimo ponto da linha, desciam senhorinhas com sacolas de compras, que certamente haviam trabalhado muitas horas em ‘casa de família’ antes de buscar no supermercado a janta que os seus aguardavam, e elas ainda precisavam preparar, jovens em uniforme que estudavam só após exercer algum ofício subalterno, e outras modalidades de gente honrada e sofrida que ainda precisavam ver caras feias e comentários depreciativos quando revelavam o endereço. Carlos também desceu, encerrando a conversa com o cobrador, que ouvia o jogo pelo rádio e garantia que o Flamengo ainda virava. Após atravessar a pracinha descuidada em que meninos e marmanjos jogavam bola juntos, ele entrou pelo labirinto de ruas estreitas com suas construções improvisadas e não poucos botequins onde trabalhadores exerciam seu único lazer. Chegou à base da escada e cumprimentou alguns rostos conhecidos, subiu com um vigor que poucos na sua idade teriam, e chegou à banquinha, que consistia de uma mesinha onde havia duas sacolas de papel, e um coroa de gorro e barba mal feita instalado numa cadeira dobrável de bar, de tempos idos, flanqueado de dois adolescentes em pé, um com revólver em punho e outro descansando as mãos sobre uma metranca que lhe pendia do pescoço. Um terceiro se aproximou de Carlos para revistá-lo, mas foi desautorizado pelo chefe. Deixa o Índio, o Índio é de boa. Mais branco, Índio? Cinco peixes, Catatau. Rapaz, tá boa a coisa, Índio velho. Bateu alguma carteira? Carlos nunca comentou sobre o patrono, e as gracinhas de Catatau nunca passaram disso, que lhe importaria a origem da grana que lhe caísse nas mãos – ou passasse pelas māos de um mero funcionário, antes. Você sabe guardar segredo, Índio? Mas claro. Eu tenho uma coisa especial pra você, mas olha, essa é pra ir com calma. Chapolim, faz cinco ampola da classe A e traz aqui – e o moço do revólver subiu ainda mais pela viela e desapareceu na primeira esquina. Essa é só da diretoria, Índio. Eu quero que esses playboys que te usam de mula fiquem conhecendo, por isso só dessa vez vai ser pelo mesmo preço. Mas os noinha por aí nem precisam saber, tá entendendo? Certeza, Catatau, você já me conhece. Conheço mesmo, por isso tô fazendo isso. Durante a espera, gritos vieram de mais de uma janela: era o empate do Flamengo.

Carlos entrou na loja pelo portão lateral e encontrou Fernando na mesa da copa, olhando em seu caríssimo computador portátil. Ele deu um salto de alegria e um meio-abraço constrangido no amigo. E quando este produziu do bolso da jaqueta os cinco tubinhos, ele se entregou à euforia e esfregou as mãos. Tudo nos conformes, Jana? Uisquinho? Não? Fazia as perguntas enquanto puxava uma cadeira para se sentar e, ato contínuo, despejar o conteúdo do primeiro tubinho no pratinho de porcelana. Porra de brizola pedrada, Jana. Porra, onde você foi? Busca lá no banheiro a gilete, vai. Tá diferente essa aqui. Fernando seguia se queixando, ora da brizola ora da vida, enquanto esmagava cada pedrinha com a lâmina, e nem deixou Carlos falar. Quando a sintonia fina do pó estava pronta, ele esticou uma lagarta e enrolou mais uma nota de cem. Deu com o canudinho na ponta mais perto de si e percorreu com diligência o longo caminho nevado: Ñññññzzzzzzz. Aí não se conteve e mandou a segunda, que era de Jaiwanã, na outra narina. Faz uma aí, Jana. Caralho, que coisa ruim, Jana, disse ele se contorcendo. Essa é da classe A, é pra ir com calma, eu estou tentando dizer. Busca água, Jana. Cara, que susto. Bateu um frio, uma taquicardia. Não é melhor ir pra casa? Como é essa história de classe A? Ele disse que era pra você conhecer. Ele sabe quem eu sou? Claro que não, seu Fernando. Enquanto se explicava, Carlos preparava seu tirinho, calmamente desfazendo as pedrinhas, e tão logo ele tivesse cheirado e fungado, Fernando afastou o pratinho e puxou para a vista de ambos o computador. Olha aqui, Jana, escolhe uma, tá vendo? tem loura, morena, preta, índia eu não vi nenhuma, escolhe uma, que hoje eu tô bonzinho. Carlos não podia dizer que não ia bem uma trepada, e cresceu os olhos numa morena de tetas falsas que Fernando fez surgir na tela. A essa altura ele já chutara seus receios para escanteio, e resolveu aceitar uísque. Só um gole, Jana, já estamos de saída. Ligou para a morena, depois para a loira capa-de-revista que escolhera, passou o endereço de casa, disse que pagava o táxi obviamente, e se sentiu livre para tirar algumas dúvidas. Enquanto ele falava, Jaiwanã apontou o pratinho e ergueu dois dedos, passando a cuidadosamente preparar dois tiros e logo em seguida cafungar sua parte. Terminada a ligação, Fernando se interessou logo em seguida pelo assunto, virou o resto de uísque sem se engasgar, e sentenciou: essa é boa mesmo, Jana velho. Só mais uminha, pra gente sair. Tirou um tubo do bolso e lançou uma parte do conteúdo ao pratinho, aí sentou-se e pôs-se a triturar as pedrinhas com a gilete, enquanto enumerava as proezas sexuais que contava realizar. Quando estava com o canudinho no nariz, inclinando-se até a mesa, entretanto, o locutor anunciou um pênalti para o Flamengo, já no fim da partida, e seu instintivo “puta que pariu” foi tão intenso que esparramou sua carreira para todo lado. Ele só deu uma risada e voltou a desintegrar mais do pó. Essa foi boa, Jana. Que me importa o Coritiba? É o Juventude, seu Fernando. E eu tava torcendo pro time errado, porra? Quando a bola ricocheteou no travessão ele ergueu os braços: eu estraguei Brizola por nada,caralho! Meteu então o nariz e passou a nota ao amigo, que a desenrolou e esticou e meteu no mesmo bolso de jaqueta. Confere os cadeados pra mim, Jana… enquanto eu tiro o carro.

Fernando morava num condomínio na saída da cidade, de modo que seu utilitário-esporte ainda precisou percorrer um bom trecho da Perimetral e outro de rodovia, passando pela polícia num momento de tensão, antes de abordar a portaria do complexo residencial de alto padrão. Fernando desceu do carro, foi amável com o porteiro, deslizou uma nota até sua mão e sussurrou-lhe algumas instruções. De volta ao volante, recomendou a Carlos que fechasse o vidro escuro da janela e rodou ainda mais um tanto até chegar a sua casa. Do lado esquerdo havia um sobrado simpático, e do direito havia a garagem onde paravam, uma piscina e uma edícula. Entraram e passaram à sala, onde Fernando providenciou mais uma vez uísque e exibiu com orgulho o aparelho que toca cinco discos, que ele carregou com os cinco de uma coletânea romântica. Não demorou a que o interfone tocasse anunciando o primeiro táxi. Era Tânia, a morena que Carlos escolhera. Ela aceitou vinho, mas só um pouquinho, e já ia se fazendo à vontade quando chegou o outro táxi com Jennifer, a loira capa-de-revista que Fernando encomendara. A primeira era um pouco mais cheinha do que nas fotos, e a segunda além de menos bonita era um tanto antipática, sentenciando logo: se é grupal eu não faço. Fernando esclareceu que não era nada daquilo, que ela iria com ele para o quarto, e a sua amiga – as duas não se conheciam – iria com o Jana pro quartinho de fora. A morena achou divertido o nome, “de mulher” segundo ela, e os dois já emendaram daí uma conversa, enquanto que entre Fernando e Jennifer as coisas não iam tão fáceis. Ele soube ler seu mau humor, seu tipo físico descarnado, seus olhos azulados, e mandou logo: é farinha o que você quer, não é? A reação da moça traiu sua resposta, apesar do silêncio. Te peguei, loirinha. Eu vou dar uma na sua barriga. Carlos e Tânia encontraram um colchão sem lençóis, Fernando e Jennifer se lançaram sobre o leito nababesco feito pela doméstica naquela manhã.

Uma hora depois, as duas saíam no mesmo táxi, comentando sobre a performance ou falta de performance de seus clientes, Jennifer reclamava de chupar por dez minutos um pau que não sobe, e Tânia contava com um sorriso no rosto cada detalhe. Fernando, metido numa samba-canção e numa camiseta, cheirava pó na mesa de centro da sala quando Carlos, ainda na mesma roupa, declarou que ia embora. Como embora, Jana? Táxi? Besteira, eu levo você. Espera só um pouco. Esse pouco durou uma eternidade, em que Fernando ia lá fora, gritava absurdos contra a esposa, voltava, dava mais um tiro, queixava-se de taquicardia, garantia que estava tudo bem e repetia o processo. Carlos só ligou a televisão, pediu licença para assaltar a geladeira e esperou o quanto foi preciso. Aí se estirou no sofá e começou a cochilar, pensando ora na trepada com a morena, ora no trabalho que tinha pra entregar, desejando sua cama de pensão, e dormindo ali mesmo.

Acordou com os gritos de Fernando: Jana, me leva, Jana. Caralho, índio velho, me leva. Pega o carro, porra. Sabe dirigir, então me leva no Santa Beatriz, eu não tô bem. É sério, porra! Carlos amparou o amigo e o instalou no banco do passageiro do utilitário-esporte, tomando o volante. Precisou se habituar com o câmbio automático, mas conseguiu manobrar pra sair da garagem e guiar avenida acima. Não, seu idiota, veio débil a voz do paciente, é descendo. Retorno feito, e direções adequadas fornecidas, chegam à portaria, e à medida que desaceleram, Carlos olha Fernando nos olhos: segura firme, vai dar tudo certo. A cancela foi aberta pelo porteiro de forma um tanto automática ao ver o carro, mas quando ele percebeu que era o índio que dirigia, e não seu Fernando, achou um tanto estranho. Carlos pisou firme enquanto estavam na rodovia, quase deserta àquela hora. Quase, porque um compacto todo modificado surgiu à frente, e invadiu a faixa na hora de ser ultrapassado, em atitude de provocação. Nosso índio buzinou instintivamente, e após conseguir passar o atrevido percebeu que havia entrado num duelo. Segura firme, seu Fernando! Eita lasqueira!

Nunca mais eu cheiro. Carlos deixava o atrevido passar, mas ele diminuía e queria sempre disputar um racha. Me salva, Jana, e eu não cheiro mais. Deixe de besteira, seu Fernando, ninguém vai morrer. Eu cheirei a tarde toda, Jana, com o Flávio. Segura aí, fica tranquilo. Havia um bar do lado esquerdo da estrada, de onde saía um ramal de terra que Carlos sabia que chegava na Perimetral já bem perto do hospital, então ele deixou o rival passar e virou de forma abrupta. O outro motorista buzinou, seja celebrando vitória ou o que fosse, mas não se importou em dar meia-volta para prosseguir a perseguição. Cada desocupado, seu Fernando. Esse caminho aqui vai economizar tempo, vai dar tudo certo, reconfortava Jana ao amigo enquanto descobria como ligar a tração nas quatro. Foram por um trecho sem problema algum, mas depois de um cascalho grosso Carlos sentiu o carro puxando e parou para conferir: pneu furado. Puta merda, seu Fernando! Troca o pneu, Jana, eu estou um pouco melhor. O índio, forte, levou poucos minutos para pôr o estepe no lugar do dianteiro direito, mas quando estava terminando apareceu um carro vindo do lado da rodovia, e era a polícia. Desceram dois policiais, um tinha uma lanterna e o outro parecia empunhar um revólver.

O que está acontecendo aqui? Seu policial, meu amigo está tendo um ataque. Documento seu e do veículo. Abaixe os vidros. Ele pode falar? – disse o cana sobre Fernando, que se fazia de desacordado. Após Carlos sacudi-lo pedindo os documentos, que obviamente não trouxera, Fernando mudou de estratégia e começou a exagerar seu estado, simular falta de ar ou dizer que estava morrendo numa voz esgarçada. Ele vai morrer, policial, deixa a gente ir. Sua habilitação está vencida há dois meses, senhor Carlos. Cuide de renová-la. Eu não farei nada porque é uma emergência. Podem ir. Mas o colega dele não parecia satisfeito, e dirigiu-se a Fernando mesmo em meio a seu ataque: esse carro é seu, senhor? O moribundo fez que sim com a cabeça. E este senhor aqui é mesmo seu amigo? Fernando perdeu a calma: É, porra! Deixa a gente ir. Tudo bem, é só porque ligaram da portaria… Deixa isso de lado, cortou o colega. Podem ir, vão logo.

Jaiwanã jogou o macaco e a chave dentro do carro de qualquer jeito e retomou o volante. Era um pedaço curto de estrada que faltava até o asfalto, e ele tentava manter alguma conversa com o enfermo para acompanhar sua condição. Fernando garantia que ia parar de cheirar, e que ia matar o porteiro, e Carlos repetia várias vezes que já estavam muito perto. Parecia que o susto maior já havia passado, e a conversa foi ficando mais leve, um comentário sobre o pênalti perdido aqui, uma confissão de brochada ali, e nisso entraram pela perimetral, viraram no segundo semáforo à direita e bastava uma conversão à esquerda para alcançar a rua do hospital. No entanto, Jana ficando mais calmo, ficou mais desatento, de modo que meteu o pé esquerdo no freio buscando a embreagem, de forma instintiva, e fez o carrão estancar. E mesmo sendo alta madrugada, calhou de um carro estar fazendo a curva logo atrás, e a colisão foi inevitável. Carlos olhou para Fernando e bastou esse instante para que o motorista de origem humilde, que poderia ser um feirante começando o dia de labuta, chegasse ao vidro e começasse a gritar queixando-se do prejuízo. Foi quando quem se queixou foi Fernando, de uma pontada de dor no peito, e o amigo sem pensar arrancou para retomar o trajeto, já perto do fim. O feirante insultado buscou um pedaço solto de asfalto no chão e experimentou a mira, que não decepcionou: o vidro traseiro do utilitário-esporte se estilhaçou. Os dois chegaram ao hospital dando risada do ocorrido, e a dor de Fernando diminuíra.

Nunca mais, índio velho. E tem mais, minha esposa está certa, está na hora de ter filhos. Eu nunca quis ter filhos, eu nunca quis ir à Europa, eu nunca frequento os amigos dela, e é tudo pelo pó. Eu vou contar tudo a ela. Vou ter outra vida, Jana. Eu sempre disse pra ir devagar, seu Fernando. Nessa hora o paciente foi chamado, e recebeu lá mais uma repreensão moral do que medicamentos; não poupou o médico de sua promessa de redenção. Depois de liberado, assumiu o comando do utilitário-esporte ele mesmo, de samba-canção e descalço, enquanto Carlos, após um longo abraço apertado, entrou num táxi e voltou pra pensão. O índio teve uma ideia no caminho e resolveu trabalhar ao chegar, e de fato matou a charada do problema com o televisor da dona Guilhermina, no qual três gerações já assistiram novela. Depois dormiu finalmente. Fernando deixou o porteiro para outra hora, mas tentou eliminar os vestígios da noitada antes de desabar na cama e meditar um bocado antes de pegar no sono. Em poucas horas a esposa voltará do interior e ele vai precisar se entender com sua “outra vida” e com seu “nunca mais”.

Meu Desespero Meu Alívio

O carro alcançou a estrada pelo acostamento, era um modelo popular, não muito novo, que entrou na pista, sem dar seta, no momento em que o baseado era aceso. A viagem até a fazenda onde ocorria o festival era curta, mas suficiente para os quatro passageiros começarem os trabalhos. Cláudio, que dirigia, era amigo de infância de Pablo, que ia atrás com sua namorada Renata, todos três frequentadores de festas de música eletrônica e apreciadores do MDMA, enquanto Cássio, que ocupava o banco do passageiro, era um colega do motorista numa firma de publicidade, que gostava de outros estilos de música e estava indo apenas para experimentar a substância.

__ Você vai ver, é a única música que você vai querer ouvir depois de tomar – era Cláudio, pondo a mão esquerda para trás para receber a bomba – e qualquer coisa tem o chill out, você descansa. Você vai ver, é muito louco.

__ Você já falou tanto disso. Sabe que não sou de droga química.

__ É só amor – Renata abriu um sorriso e foi acariciada por Pablo, que provocou:

__ Quando eu te conheci, você não estava chapado de ácido? – e todos riram.

__ A música é geométrica, prosseguiu Cláudio. Você se deixa ir, se permite sentir. No corpo. É um barato louco – e buzinava para um caminhão velho para que saísse da frente.

__ Galera, tem uma polícia aí na frente – foi a primeira intervenção de Cássio. Mas ninguém deu bola.

A estrada passava por motéis, borracharias e pequenas fábricas, e o sol da tarde banhava tudo de muita luz. Todos haviam almoçado perto da casa de Pablo, dirigiam fumando o digestivo, e o plano era ficar no festival até a manhã seguinte. Na bolsa de Renata havia um sortimento de ácido e ecstasy digno de especialistas, e provavelmente todos traziam maconha consigo. A trilha sonora no automóvel já era uma prévia do evento, e Cássio ia tentando se aclimatar, desligar os julgamentos.

__ Puta que pariu! Polícia! – era o motorista.

__ Eu avisei – era o passageiro.

__ Só fica calmo. Não vai dar nada – arriscou Pablo. Não dá pista.

Cláudio diminuiu a velocidade, contornou os cones e parecia disposto a parar ante o sinal do policial rodoviário, mas de repente mudou de ideia, ou estava já preparado para tentar um lance arriscado.

__ Se segura todo mundo!

E esteve perto de atropelar o agente ao acelerar feito louco. Cássio levou a mão à testa, Renata deu um uivo de excitação, ao qual Pablo secundou, e quando alguém pôde pensar já haviam passado pelo posto. No retrovisor se via o guarda entrando na viatura.

__ Eu sei o que estou fazendo! – disse Cláudio, alcançando o controle de volume para tornar o bate-estacas mais alto e onipresente.

Após uma curva para a esquerda, Cláudio jogou o veículo numa vala lateral, que a transpôs como se fosse um jipe fora-de-estrada. Ele sabia que a cerca era um bambuzal novo, que cedeu ao carro em marcha baixa, e ergueu-se novamente, de modo que quando estavam já na via interna da fazenda de cana, após toda a turbulência, seria impossível do lado de fora perceber por onde eles entraram. Cássio se perguntava em que espécie de fria havia entrado, mas todos os outros estavam exultantes, esmurrando o teto do veículo e soltando gritos, animados. Na terceira rua Cláudio virou à esquerda com uma velocidade absurda, e duas rodas deixaram o chão de terra vermelha. Algumas risadas após estavam já no estacionamento do festival. Cláudio precisou tranquilizar Cássio, enquanto Pablo e Renata só interrompiam as risadas para se beijar, enquanto se afastavam do carro em direção à primeira tenda, em que se cobravam os ingressos, e todos estariam a salvo no meio da multidão.

__ Eu disse que tinha polícia.

__ A gente sabe que tem polícia, mas eles nunca ficam na pista. Fica tranquilo. Se entrega, mano!

E Cássio tentava mesmo entregar suas cadeiras ao ritmo que vinha da tenda principal, decidindo que o melhor a fazer era mesmo baixar as defesas. Como o baseado, pela metade, havia ficado com ele, pôs-lhe fogo e olhou em volta, fitando as várias gatinhas que chegavam ao evento, inclusive em grupos, as quais não repararam nele nem um pouco.

__ Isso, irmãozinho, fuma essa bomba que já está na hora de lamber seu papel.

Nisso Renata sacou o arsenal da bolsa, e enquanto os veteranos puseram na boca tanto o ácido quanto o MDMA, “pelo equilíbrio,” explicavam, o novato colocou sob a língua o papelete da substância nova para ele, que quase gostaria de estar em casa já, tomando um vinho velho conhecido e perdendo tempo no computador uma vez mais.

__ Bem, o carro é seu, o problema é seu. Só quero ver a volta.

Desta vez foi Pablo que se adiantou e repreendeu o viajante adventício.

__ Meu, relaxa, você veio curtir o amor, se entrega, a noite vai ser longa e ninguém veio aqui pra curtir a bad trip dos outros.

Nesse momento, Cássio se perguntava se, solteiro, conseguiria algum amor de um comprimidinho com determinada substância. E se, sendo um estorvo para os companheiros, como já estava claro que era, teria sido mesmo uma boa ideia experimentar aquela droga. Mas tinha sido ideia dele, e o melhor era abrir um sorriso, talvez soltar um gritinho enquanto esperava a fila andar e o efeito se fazer sentir.

O tempo de fumar a ponta foi o tempo da fila, e a conversa sobre trabalho, embora um pouco fora de lugar ali, ajudou a Cássio e Cláudio passar o tempo, enquanto Renata e Pablo eram só beijos. Quando chegaram ao portão, foram recebidos por uma moça de traje e cabelos prateados, e óculos verdes em formato de estrela, que escaneou o ingresso de cada um e os deixou entrar. Olhando para trás, era possível ver o enorme estacionamento onde se escondia aquele automóvel que evadiu o bloqueio policial.

O evento ocorria em três tendas, e aquela pela qual entravam era a principal. Havia um palco em cada lado, e a mistura das músicas ali no centro onde estavam foi algo que incomodou a Cássio, mas ele soube ficar calado. Bem na entrada havia três alienígenas fazendo mágica.

__ Tá entrando, chuchu!

__ Qual tá entrando, benzoca?

__ A bala. Você acredita em mágica, amor?

__ Claro que acredito, estão fazendo na minha frente!

__ Não seu bobo, isso é truque, eu digo mágica.

__ Eu devo dizer que acredito na magia do amor, é isso?

__ Você não acha que uma substância alterar a mente não é mágica?

__ Nossa, amor, toda razão. E já está funcionando.

__ Vocês – Cássio quis entrar na conversa, e precisou se aproximar – vocês já viram alumínio se misturando com mercúrio? Pra mim é mágica.

Os dois pareceram interessados e ele sacou o celular para mostrar o vídeo, enquanto Cláudio já abordava uma moça vestida de dominatrix ali perto. Não tendo sucesso, voltou para o grupo e pediu para assistir também, não sem antes perguntar como ia o colega.

__ Estou sentindo alguma coisa,  como um formigamento mental.

Logo após, aproximaram-se de um dos palcos, e aí era possível ouvir a música com mais nitidez. Cássio se sacudia de algum jeito, mas não deixava de julgar. Havia timbres interessantes, alguns motivos que se repetiam e iam se acelerando até se resolverem numa espécie de recomeço, sem que houvesse no fim nenhuma separação em canções distintas, mas o ritmo era sempre aquele de bate-estaca, que parecia afetar bem mais aos companheiros do que a ele. Mas ele olhava em volta, via as moças bonitas, a decoração, até mesmo a estrutura da tenda parecia incrível. A onda crescia nele, e de fato já era impossível ficar parado, e ele ia se soltando. De repente, Cláudio o tira de seu torpor.

__ Bateu, mano? Massa! Olha, vamos comprar água, é muito importante não esquecer de tomar água.

Caminharam então os quatro para a segunda tenda, em que vendiam bebida e funcionava o tal do chill-out, que nada mais era que uma enorme área com sofás e almofadas, onde tocava música suave, quase música de elevador, mesmo que as pulsações da tenda principal ainda fossem audíveis. Cássio arriscou:

__ Essa mistura de sons diferentes não incomoda vocês?

__ Se entrega, Cássio. Achei que já estava entrando na onda.

__ A onda está entrando em mim. Na verdade, minha cabeça começa a latejar, e minhas mãos estão suando.

__ Pois é isso mesmo. Agora relaxa. Aqui, vamos acender outrinho pra fila.

E alguns minutos após já estavam com as fichas de água, retiraram cada um sua garrafinha e rumaram para a terceira tenda, onde supostamente tocava um estilo mais extremo. Como sua namorada foi ao banheiro, Pablo se ofereceu a explicar ao novato todas as modalidades de música eletrônica, mas Cássio achou curioso que fosse apenas uma questão de andamento. De qualquer sorte, chegaram, e era uma música frenética, boa para o auge do efeito, que estava mesmo se impondo.

Cássio se sentia mais à vontade, e achava o efeito no geral positivo. Qualquer ansiedade parecia ser dele mesmo, não da substância. E de repente o aspecto dela que lhe rendia a alcunha de “droga do amor” foi surgindo, e todas aquelas pessoas pareciam fantásticas, aquela “rave” uma celebração anímica da vida; o colega recebeu um fervoroso aperto de mão que se transformou em abraço, e o casal não quis ficar de fora. Cláudio estava feliz por ver o amigo se entregar enfim, e retomou a rotina de abordar as moças, bem mais jovens que ele. Pablo e Renata se esfregavam com cada vez mais vigor, até que de repente sumiram de vez. Assim, após dançar de olhos fechados por vários minutos, num verdadeiro êxtase, Cássio os abriu e percebeu que estava sozinho.

Eufórico como estava, Cássio apenas fechou os olhos novamente e recomeçou a dançar de modo ainda mais frenético, com movimentos que ele mesmo nunca imaginara e nem aqueles ao redor estavam acostumados, de modo que quando dava encontrões a torto e a direito a maior parte não se incomodava, e ainda o estimulava, e em pouco tempo estava formada uma roda em torno dele. Quando parou, por pura exaustão, uma morena linda de olhos agateados dançava bem na sua frente, num traje colante que realçava suas curvas, como a mulher-gato, e com uma tiara de pom-pom branco que brilhava na luz negra. Ele lançou suas mão na cintura dela, quando ela se virou, que continuou se mexendo e pareceu não aceitar o convite, mas se virou de volta e olhou-o profundamente, antes que uma amiga passasse e a levasse dali sem maior explicação. Água, ele se lembrou, e rumou para a tenda anterior sem se preocupar nada com os amigos perdidos.

Quando conseguiu a água, preferiu ficar por ali mesmo. Foi uma boa experiência, mas estava cansado. A bem da verdade, sentia um peso. Tentava não pensar muito, mas a euforia tinha passado, e agora nada daquilo fazia sentido, as pessoas em volta pareciam ameaças e ele queria estar com seus amigos de novo, para conversar sobre qualquer coisa que não fosse dar voltas às própria cabeça, lembrar-se de que era um peixe fora d’água, e sentir-se incômodo como estava se sentindo. Tentou o mesmo ponto onde estavam antes, nem sinal de ninguém, e aquela música já o incomodava. Voltou à entrada.

__ Posso sair lá fora?

__ Como?

__ Eu preciso sair lá fora.

__ Cadê seu ingresso?

Ele o mostrou e saiu, sentindo-se aliviado, ainda que as batidas prosseguissem às suas costas. Acendeu um cigarro e admirou o fim do pôr do sol, e então viu, um dois, três, sete carros de polícia entrando pelo estacionamento. Ele mesmo nada podia fazer, e ainda ouviu alguém por perto dizer que estava tudo certo com o secretário, então ele seguia encanado com o que mesmo, com nada. Só com o fim da onda que chegava já como uma ressaca. Ele viu quando o carro do Cláudio foi cercado, e achou uma boa ideia achar o amigo. Mas toda trajetória foi um teste, e ele estava mesmo disposto a reclamar que a droga depois de um tempo era uma tortura. Encontrou os três no chill-out, às gargalhadas.

__ A polícia está cercando seu carro, Cláudio. Acho que eles vêm pra acabar com a festa.

__ Você é paranoico, Cássio. Não estraga nossa onda. Tá tudo certo com a polícia. Quem disse isso?

__ Eu vi, eu saí lá fora.

__ Liga pro seu tio, Caco – atalhou Renata, saboreando um coquetel de frutas.

__ Calma – opinou Pablo – espera pra ver que história é essa. Faz várias horas que a gente furou o bloqueio, será que iam aparecer agora?

Quando resolveram enfim sair e conferir o que acontecia, já uma pequena multidão se aglomerava na saída de modo que o controle havia sido abandonado. Havia dois carros da polícia bloqueando um carro estacionado mais ou menos onde eles haviam estacionado, era difícil dizer, e na entrada do evento três policiais conversavam com um casal identificado com o colete da produção. A coisa era séria.

__ Bobagem, gente. Está tudo arranjado com o secretário de segurança. Meu tio é o chefe de gabinete dele e eu estou por dentro de tudo. Eles vão fazer esse carnaval e vão embora. Não é a primeira vez. Só entra e deixa o tempo ruim passar. Quer saber? Renata, me dá mais uma bala.

__ Boa ideia, Caco, eu também vou tomar.

__ Eu também.

__ Eu queria estar em casa – murmurou Cássio, e pensou mesmo em caminhar até a estrada e pedir carona, mas entrou com os outros.

Tinha a escolha de tomar também outro comprimido daqueles e voltar ao topo da onda, mas era muito arriscado para uma primeira vez. Só precisava se manter calmo e não se perder do grupo, manter alguma conversa. Mas como conversar com a música alta e com os amigos tentando curtir sua viagem interna?

Rumaram para o palco à direita, e realmente cada um se entregou à dança, no caso dele eram os sacolejos sem jeito de novo. Percebeu que mastigava os próprios dentes, e prestar atenção nisso para se recriminar era uma nova fonte de ansiedade. Sentia que estava fingindo divertir-se, pensava em puxar conversa, mas não havia ensejo. A iluminação batia-lhe nas vistas, o som parecia estar ainda mais alto e opressivo, e cada vez que se lembrava de que aquilo ia até amanhã cedo pensava na ideia de pedir carona, e então na possibilidade de ser abordado pela polícia. Pensou que ainda tinha maconha, mas não sabia se ia ajudar ou piorar ainda mais as coisas. Se perguntasse ao amigo a resposta seria óbvia, mas no fim criou coragem e perguntou, e o audaz motorista de mais cedo aceitou aquilo como sugestão, então mais uma vez procuraram o chill-out e se instalaram num dos sofás. Cássio passou seu resto de fumo ao Pablo, que juntou outro tanto e fez uma bomba. Ao menos ali conversavam qualquer coisa miúda, e era mais fácil se enganar dizendo que estava tudo bem. Levantou-se para pegar outra água, e foi quando viu um tumulto se formando de gente vindo correndo da tenda principal. E seu coração voltou a disparar.

Cássio olhou para trás, mas em meio a tanta gente não localizava os parceiros naquela aventura, ao menos para ele, insólita. De repente uma mão o tomou pelo punho, e quando pôde perceber já corria com seu grupo para o lado esquerdo do balcão do bar, uma grande chapa de acrílico curva no lado da frente e iluminada com uma luz leitosa. Chegaram a uma porta em que se lia “privativo”, Cláudio cochichou algo ao segurança, que a abriu. Estavam numa sala de decoração modernosa, com uma escrivaninha de um dos lados e uma espécie de chill out em miniatura do outro, cujos frequentadores pareceram assustados com a invasão. Pablo passou o petardo a Cássio, que o recusou, enquanto Cláudio se dirigiu a uma moça de colete, que podia mesmo ser aquela que Cássio viu recebendo os policiais do lado de fora, e Renata, que parecia não dar conta de nada, com um sorriso no rosto mirava o descanso de tela psicodélico do enorme monitor. Percebendo que Cássio estava pálido e tremendo, Pablo tentou tranquilizá-lo.

__ Respira, mano. Se controla. Aqui a gente está seguro. A polícia sempre leva o seu. Eles fazem toda essa cena por esporte. E você não tem nada, tem? Não era seu último aquele? Hein? Fala alguma coisa, homem!

A cabeça de Cássio girava a mil por hora, e ele não precisava de motivos concretos para se desesperar. Muito embora tivesse. Tinha assinado um termo circunstanciado ao ser pego com beque meses atrás e qualquer incidente podia significar cadeia, ou no mínimo um enorme aborrecimento e gastos com advogados. E ele não era genro e favorito do dono da empresa como Cláudio, podia ir parar na rua no pior momento para isso. Pensava na namorada que o deixou porque ele curtia substâncias: se tivesse parado com tudo e ficado com ela, não estava melhor agora? Se tivesse ficado em casa ouvindo jazz e tomando um vinho, não estava seguro? Sentia frio, sabia que era pleno verão, a boca estava seca e nunca conseguiu buscar aquela…

__ Água!

__ Isso, água, eu vou conseguir pra você.

Quando a moça de colete saiu pela porta, Cássio desabou numa poltrona desconfortável que estava ao lado de Cláudio, perguntado-se já até que ponto fazia sentido ficar com o grupo, e pôde ouvir o suposto amigo falando ao celular.

__ Sim… Eu sei… Eu sei que a rodoviária não está sob o secretário, foi por isso que eu furei… Como eu ia adivinhar que eles me encontrariam? (…) Tudo bem, é óbvio, mas eu tinha que pensar rápido, foi instinto… Eu sei, tio, mas não tinha como saber que o comando do posto mudou, que esse filha da puta ia atrás do secretário em pleno fim de semana… Certo, certo, eu sei que o batalhão não podia entregar o esquema, você já disse… Olha, só deixa meu pai de fora… Eu vou sim…

Nisso chega Pablo com a água prometida, que Cássio bebe de uma virada só. Ele ajeita-se na poltrona, lava o rosto com o que restou na garrafinha, olha em volta, para de mastigar os dentes, respira fundo e se levanta. Cláudio ainda está de costas, Pablo se juntara a Renata e passava-lhe o baseado, que seguia aceso. Erguendo-se feito mola, com passos firmes ele vai até a porta e puxa a maçaneta. Trancada. Há um painel eletrônico como fechadura. Ele força e força de novo, até que o segurança abre do lado de fora, e o olha inquisitorialmente. Ele faz um gesto com a mão como se abrisse passagem e retorna ao espaço anterior, agora apinhado de gente com aparência de preocupação. A música suave havia cessado, e o bate-estacas também, só se ouvia um burburinho. Como os banheiros eram ali ao lado, ele achou por bem aliviar a bexiga, antes de… antes de que, mesmo? Afinal, bastou se esgueirar alguns metros entre a multidão para entreouvir que a polícia não deixava ninguém sair. De qualquer modo, centrar a atenção no corpo foi bom para deixar de lado a mente, e seu esforço de autocontrole ia surtindo resultado. Pablo estava certo: contra ele mesmo a polícia não tinha nada. Quando saiu pela portinhola do sanitário masculino, quem sai pela portinhola vizinha senão a mulher-gato?

Ela abriu o mesmo sorriso caloroso de mais cedo. Ele enxugava as mãos na roupa, e nem saberia dizer se sorriu de volta, nervoso, mas de certa forma aliviado por não estar sozinho no meio da confusão. Respirou fundo e aí sim sorriu, mas ficou com medo de que o sorriso saísse falso, num esgar ridículo. Disse o que veio à mente, explicando-se.

— Eu não estou muito bem, desculpa.

— O que você tomou, rapaz?

— MDMA. Primeira vez.

— Não gostou?

— Estava até bom quando eu vi você.

— Eu percebi. Tava alucinado. Você não é de rave, dá pra saber.

— Não, vim experimentar.

Cássio já tinha relaxado, ajeitou a camisa e passou a mão pelo cabelo. Eles haviam caminhado um trecho pela área menos apinhada de gente e se estabelecido junto a uma pilastra envolta em tecido branco, que arroxeava como a tiara que ela àquela altura já não usava.

— O que aconteceu com as antenas?

— Nossa, só vi agora – disse passando a mão pelos cabelos castanhos presos e sorrindo novamente.

— Como é seu nome?

— Vera, o seu?

— Cássio – nisso ele estende a mão direita e ela oferece a dela para ser beijada.

— Enchanté.

— Uau, um gentleman.

— Até agora eu só pensava em você como mulher-gato.

— É bem por aí – soltou uma risadinha – quer dizer que ficou pensando?

— Claro que sim, estou feliz em te encontrar.

— Tá melhor?

— Bem melhor, sim. Mas queria estar em casa – diria ‘com você’ ou era demais? Era demais – estou exausto.

— Pois é, que merda é essa agora? A polícia nunca acabou com a festa assim. Alguma coisa terá acontecido.

— Pois eu sei o que aconteceu.

— Sério? E o que foi?

— Meu amigo, meu colega, estourou a blitz da polícia rodoviária.

— Não acredito!

— É ele que estão procurando. Por falar nisso, olha lá ele.

Cláudio saía cabisbaixo e com as mãos para trás da porta do escritório, escoltado por um PM, pelo corredor que a multidão havia aberto.

— Ah, eu sei quem é ele. Não é a primeira confusão que ele se mete. Mas dessa vez ele se superou.

— Trabalha comigo. Já tinha comprado ácido com ele, mas não somos mesmo íntimos. O problema é que não sei como volto para casa.

Neste momento, a maior parte das pessoas estourava rumo à saída, que havia sido liberada, mas algumas ligaram música numa caixinha portátil e retomavam a dança celebrando o fim do impasse.

— Volta comigo, Cássio. – e seu sorriso agora tinha uma conotação a mais, talvez pelas sobrancelhas arqueadas.

— Com prazer, Vera. – e sorriu, agora franco e despreocupado.

— Só acho que minha amiga quer ir até de manhã cedo.

— Aquela que te carregou pra longe?

— Ela, a gente combina de não pegar ninguém em rave. Sempre complica tudo.

— E você não quer abrir uma exceção?

— Bem, eu já me perdi dela mesmo.

Ele se aproximou e ela ajustou a postura de modo que sua estatura, maior que a dele, não atrapalhasse o beijo, que se desenvolveu com naturalidade e até moderada volúpia desde o início. Ele laçou sua cintura e ela tinha os braços por sobre seus ombros. Foi quando a música recomeçou na tenda principal. Vera se devencilhou e tomou-lhe pela mão, e sem chance de oposição arrastou-o até até a fonte das batidas. Sacou da pequena bolsa de couro preto um estojinho plástico, de lá um comprimido, que foi à boca, e o envolveu em mais um longo beijo, não sem antes dizer no ouvido de Cássio: confia em mim.

Agridoce

Essa tela do computador está se mexendo? Era o fundo da área de trabalho: uma colina verdejante contra um céu azul claro, e um redemoinho se formava embaralhando as cores. É claro que eu sabia a resposta, mas queria deixar claro a todos que o ácido estava fazendo pleno efeito. A reação foi de gargalhada geral, obviamente; aquele riso nervoso mas ao mesmo tempo espontâneo de quem está tentando lidar com um certo desconforto e quase que tentando se convencer de que está se divertindo. No sofá ao lado do meu estava o Zito, o entusiata lisérgico que conseguira os micropontos, enquanto o Johny percorria os discos tentando escolher alguma coisa menos fritação, o que foi fonte de alguma disputa pois o Zito também era entusiasta das coisas mais absurdas, e se sentia muito à vontade escutando improvisação livre enquanto nós outros tínhamos receio de cair numa bad com aquela maluquice. O único consenso naquele momento era que era a hora de pitar mais um, para potencializar a onda que estava chegando com tudo; como o outro morador da casa, a minha, não fumava, precisávamos ir até os fundos.

Havia umas cadeiras metálicas e nos instalamos em um patamar mais elevado, mas o Johny pôs sua cadeira muito perto da borda; eu avisei: você está quase caindo, o Zito mandou uma de suas tiradas: não estamos todos? Ele mesmo estava terminando os trabalhos: tinha mais hábito em operar em tais condições adversas; aquilo me lembrou uma história. Um dia estava na praia, tinha tomado um doce, e eu estava fumando tabaco de enrolar, aí eu com muita dificuldade consegui colocar o tabaco na seda, mas bateu uma onda forte, e eu fiquei minutos segurando aquilo, sem conseguir apertar, rindo… Foi o mesmo dia dos mosquitos? Exatamente, louco aquilo, cara, a gente desesperado pra ir embora, e os caras jogando capoeira, eu dizia que não ia adiantar nada, mas eles estavam lá, sossegados… Rimos gostosamente. O banza começou a circular e o Zito começou a contar de uma outra trip que teve, quando outro colega viajou e deixou a casa como laboratório lisérgico por uns dias. Sei que eu entrei no banheiro e abri a torneira, então eu ouvia a água cair de uma altura enorme, e, quando eu vi, a pia estava mesmo derretendo, chegando até o chão. Nós ríamos enquanto ele fazia uma contorção pra imitar a pia.

Então o beque acabou e eu saquei minha carteira de cigarros e constatei que só havia dois deles. Caras, precisamos falar sobre alguma coisa. Eu preciso ir comprar cigarro. Putz! A reação inicial foi de desânimo, mas todos acabaram concordando que uma caminhada faria bem. Foi difícil conter o riso para passar pelo porteiro, mas ganhamos a rua. Eu estava viajando, percebendo detalhes inéditos das casas pelas quais passava sempre, e quando me dei conta os outros estavam em uma discussão sobre pós-modernismo; não tinha o que dizer então fiquei ouvindo por um tempo. O Zito contava de um livro que tinha lido, em que o autor havia publicado o artigo mais absurdo possível e recebido críticas entusiásticas. E ninguém pode admitir que o rei está nu, arrisquei. Isso mesmo. Fiquei me sentindo inteligente. Meu corpo parecia uma máquina que eu nunca havia manejado, e mesmo eu que sempre fui rígido andava me requebrando, queria senti-lo; de repente tive vontade de abraçar os dois, que entenderam prontamente.

O caminho para o posto que estava aberto passava por dentro da universidade, e de repente demos de cara com o Supimpa, que era colega do Johny na Sociais. Ele não demorou pra sacar a movimentação, e riu, cúmplice; avisou que estava acontecendo uma festa lá no instituto. Mais uma vez houve dissensão: o Zito e o Johny não queriam se sociabilizar, eu era todo pilha. Decidimos que o melhor era fumar um, e passamos a discutir o melhor lugar ali por perto; eu sentenciei que não precisava ser nenhum lugar especial, e fizemos um círculo em um estacionamento por ali. O Supimpa disparou a falar – sabíamos bem o porquê – e usou várias vezes a palavra que virou seu apelido; foi ótimo para nós que não queríamos mesmo falar àquela altura, numa onda de introspecção. Eu fechava os olhos e via cores dançando; estava absorto com elas quando me cutucaram com o beque aceso. Eu começava a fazer umas vocalizações que não significavam nada, achava aquilo divertido, uma brincadeira com fonemas. Fumamos e nos despedimos do Supimpa, que precisava passar em casa – sabíamos bem o porquê – mas ia voltar pra festa.

Passamos perto da festa no caminho, estava abarrotada. Os dois reafirmaram a preguiça de enfrentar aquela multidão, mas eu tinha um motivo para ir, alguém que eu queria encontrar e certamente estava lá. Chegamos ao posto; era uma loja de postinho como qualquer outra, mas todas aquelas luzes e aquelas cores foram a disneilândia para nós: cada neon, cada rótulo de produto, até mesmo um boneco de fibra de vidro na entrada, era motivo para espanto ou riso. Eu tratei de ficar sério o bastante para pedir e pagar os cigarros, mas ficou claro que os poucos clientes que estavam na loja observavam nosso comportamento; e isso era parte da graça. Eu que fumara o último antes de encontrar o Supimpa, acendi com gusto o primeiro cigarro do maço, mas logo em seguida senti repulsa àquilo; essas coisas de ácido, pensei que não havia motivo algum para eu me envenenar daquele jeito. Joguei o cigarro fora e o maço; pensava se devia jogar o isqueiro: e o beque, não vai parar? Você fez a gente vir até aqui comprar o cigarro, pra jogar fora? Acordei. Guardei o isqueiro instintivamente e dei qualquer reposta.

Mas a partir dali comecei a entrar numa bad de que precisava para de fumar, e tomar um doce parecia errado. Foi pensando nessas coisas e sem falar nada que caminhei até o ponto mais próximo de festa, quando a conversa inevitável aconteceria. Eu estava prestes a desistir e voltar pra casa quando o Zito disse que topava ficar meia hora; o Johny relutou, dizia que estava muito chapado, mas aquiesceu. Aquilo me animou, deixei as neuras um pouco de lado pra pensar nessa garota; a gente sempre se encontrava e ela era muito simpática, estava determinado a fazer meu lance, eu sabia que ela também tomava doce então não importava. Chegamos à festa e encontramos algumas pessoas antes de conseguir uma cerveja; a comunicação era monossilábica, apenas com um deles abrimos o jogo, e houve muita risada. Com as latas nas mãos, circulamos, e eu eventualmente avistei a garota em questão; ela usava um vestidinho colorido, que gracinha. Ela estava falando com um cara e eu despistei; já estávamos na segunda cerveja quando eu topei com ela de novo, sozinha.

A primeira coisa que eu disse foi sobre o doce. E vem para um lugar desses? Você é louco. Foi desanimador, fiquei nervoso, ela fumava, eu pedi um. A bad começou a voltar; eu pensei em me despedir e correr pra casa, mas uma conversa se estabeleceu e fui ficando, até quando dei qualquer indireta meio atrapalhada e fiquei constrangido. Meu, cê tá muito louco, vai pra casa. A gente continua outro dia, foi minha última tentativa. Melhor fingir que nunca aconteceu, ela ficou séria. Depois é que fui saber que ela estava namorando outro amigo meu, meio em segredo, por algum motivo. Só quis pegar mais uma cerveja antes de ir, e os dois já estavam impacientes. Fiquei com aquela derrota e com um vago sentimento de culpa ocupando minha cabeça na caminhada de volta. Concordamos em ouvir música bem tranquila para fumar mais um e descansar, foi um ponto alto da trip, na verdade, as paredes balançavam. Obviamente não ligamos e fumamos na sala mesmo. Na manhã seguinte parei com o cigarro, mas sabe como é, tem a última vez e a as últimas vezes, e eu voltaria a fumar tanto um quanto o outro. Mantive uma boa amizade com ela, e isso é bom.

Fronteira

Encontraram um hotel vagabundo perto da rodoviária. A viagem havia durado um dia inteiro e estavam exaustos; haviam percorrido a estrada considerada a mais perigosa do país, haviam errado o caminho e perdido meia hora, haviam cruzado uma tempestade e caído em inúmeros buracos. A bagagem era coisa pouca, deixaram-na no quarto simples e desceram para procurar um boteco. A mocinha, bonita até, da recepção, aconselhou a evitar as redondezas. Não estavam dispostos a ir até o centro, não antes de tomar banho e tudo, ao menos, então escolheram uma birosca onde parecia que não seriam incomodados.

Enquanto o garçom servia os copos, Mauro (esse era o Fino) expunha seus planos. São quase dois anos procurando emprego, fazendo bico, Bisnaga (esse era o Carlos), isso vai ser minha salvação: eu copio os DVDs em casa, tranquilo, tem um bando de gente mais desesperada que eu pronta pra percorrer os bares vendendo, e eu ainda posso trabalhar aqui e ali, de encanador, sei lá. Brindaram batendo os dois copos entre si e cada um na boca da garrafa. Que nunca falte! – um – Nem mulher nem cerveja! – outro – Nem a brizola! – o primeiro, perto do ouvido do outro. Trocaram um sorriso cúmplice e seguiram em voz baixa, Bisnaga instigando: Cara, aqui rola uma da boa, se a gente descobrisse… Meu, eu não tenho grana, há muito tempo só cheiro se-me-dão. Você nunca cheirou muito, né? já eu não fico sem essa merda; eu podia ser menos fodido não fosse isso. Para então, porra! Vou parar, pode deixar.

Olharam em volta, o bar ia se enchendo aos poucos de moças mestiças com as pernas de fora, rapazes com roupas exuberantemente estampadas e correntes, um senhor com roupas desgrenhadas bebia pinga sozinho, e parecia haver começado cedo. Tocava algum forró com batida eletrônica e um locutor anunciava o nome da banda a cada pausa da letra, seguido de um efeito especial datado. Quando é que vamos nas cataratas, quis saber Mauro. Meu, amanhã a gente resolve nossas fitas e aí a gente vai no sábado, domingo pega o trecho. Eu sempre quis conhecer as cataratas, o amigo acrescentou com ar pensativo, e prosseguiu, como é essa treta aí do seu chefe, você só falou que ia buscar alguma coisa, é um contrabando doido, não? Mais ou menos, Carlos tentou se defender, é um equipamento de som que nem vende no Brasil, tá ligado? Coisa de fanático, cara, ele gastou dez mil dólares nessa porra, ele encomendou da última vez que veio aqui. E você veio buscar agora. Exatamente. E já está pago ou a grana está contigo? Carlos fez um gesto desconversando. Ele confia em ti, hein. O outro só franziu o cenho em reprovação. E a alfândega? Vai passar de barco, sussurrou o outro. Ma-lu-co!

À medida que a cerveja ia fazendo efeito – era a segunda -, os dois foram se soltando, prestando mais atenção às moças – o que era provavelmente uma péssima ideia -, e o Fino, que era mesmo um negro bem magro, aproximou-se da jukebox e começou a analisar as opções. Carlos esticava-se para trás e fechava os olhos, então não percebeu a comoção que se formou quando o amigo pôs a moeda no aparelho. Ele voltou a se sentar e ainda tocou mais uma música, uma balada americana antiga, antes que entrasse o rap que Mauro escolhera. A reação foi imediata: três jovens que estavam em pé junto ao balcão vieram para cima da mesa dos forasteiros, ameaçando-os com uma fala quase ininteligível. Mauro entendeu a pergunta sobre ser “rei do terreiro”. Lembrou-se da moça da recepção; estava entre tentar dialogar e pôr as pernas para funcionar, e fez a escolha potencialmente arriscada. Calma, gente, deixa pra lá, manda tirar… Quando percebeu que os locais iam só tagarelar no patuá deles, Carlos ficou menos tenso; arriscou: Olha, mano, nóis também é da quebrada, tá ligado, então nóis é que nem vocês, tá ligado? Ante o silêncio, prosseguiu. Deixa eu pagar uma cerva pra vocês. Sentaram-se, e várias cervejas depois foi inevitável que o assunto viesse à tona, e foi obviamente Carlos a fazer a pergunta: sabem onde conseguir um pó?

Era uma capinha de CD de um grupo de pagode. O mala limpou com um pano talvez ainda mais sujo e jogou a brizola em cima. O Fino repartiu duas carreiras com uma gilete quebrada que tirou da carteira e fungou uma com cada narina. É boa, foi a sentença, é ótima, veio como reforço. Sacou a nota de cinquenta que o Bisnaga tinha conseguido; dele mesmo só restavam trinta e algumas migalhas, mas não pensou duas vezes, pediu os oitenta em pó. Não lhe veio à mente que precisava pegar um táxi para voltar, ou mesmo descolar um troco para o outro mala, o do bar, que o levara ali. Perguntou se podia voltar e pegar mais, que fosse discreto foi a única exigência. Desceram da laje e, uma vez na rua, onde um carro com o som ligado em alto volume irradiava qualquer sucesso radiofônico, Mauro se deu conta de que estava na mão, sem um puto. Ligou para o amigo.

Carlos chegou ao hotel e foi correndo verificar a bagagem, estava tudo em ordem, inclusive, e principalmente, o pacote vultoso de cédulas. Nunca lhe passou pela cabeça sacanear o chefe. Até porque seria uma péssima ideia: tratava-se de um dos chefes do esquema de bancas populares do centro, diziam que até trabalho escravo ele usava em suas confecções. A ele só cabia cobrar dos comerciantes, e nunca foi de fazer perguntas. Ligou a TV e assistia a qualquer bobagem, ansioso pela volta do parceiro com a farinha, quando o telefone tocou. Deu um esporro no Fino, mas calçou o tênis e desceu para esperar um táxi. Chegou à padaria onde haviam combinado, não sem errar o caminho duas vezes e apesar dos protestos do taxista, que temia aquela área. O mala do bar ainda voltou com eles, levou seu troco e os dois subiram.

O hotel era tão vagabundo que o espelho era daqueles de feira, pendurado por um prego. Foi devidamente retirado para uma função mais nobre do que lembrar aos rapazes de sua feiura. Deram cada um dois tiros e desceram para voltar ao mesmo bar e tentar comprar um uísque. A garrafa parecia original, então gastaram uma grana, ou o Bisnaga gastou, com um uísque escocês. Se era autêntico ou não, nem perceberam, animados que estavam, conversando sobre os planos da viagem e para o futuro. Carlos elogiava a droga, e aos poucos a mesma ideia que o amigo tivera e não ousara verbalizar ia tomando conta dele. Ele tinha contatos em Sampa, não teria dificuldade de passar aquilo adiante. Mas um pequeno problema persistia: e seu chefe? seu equipamento de áudio?

De repente quedaram olhando um para o outro longamente. Fino olhou para a mala. Não, nem pensar! Cara, pensa bem… a gente consegue quatro, cinco vezes mais em Sampa, isso sem batizar, imagina. Eu não posso, o que faço com meu chefe? Silêncio prolongado, após o qual Mauro teve uma epifania. Não vamos para Sampa, vamos para o Rio. Ele já tinha morado lá e tinha ainda contatos. Depois a gente vai pra fora, pra Europa. Exatamente. Era cedo, Fino procurou na agenda do telefone e achou um número, discou. Foi uma conversa em código, mas dava para perceber que o projeto se encaminhava. Pronto, agora quem decide é você; o chefe é seu, é o seu na reta. Ele te espera quando? Falei que voltava até terça. Então! dá tranquilo! Carlos bebeu uma boa golada do uísque, e ficou fitando o infinito.

O Fino saiu do banho falando rápido, pondo pilha para procurarem uma balada. Seu amigo pediu silêncio: estava passando o noticiário e ele havia escutado a chamada de uma notícia que interessaria muito aos dois. Bisnaga não quis adiantar o que era, mas tinha um sorriso estampado no rosto. O outro insistia, mas só recebia uma mão espalmada que pedia calma. E então a âncora, com seu cabelo loiro curto e sua postura robótica, começou a dar detalhes da greve da polícia federal. Dentre as atividades prejudicadas, a voz feminina narrava por sobre imagens de um cão policial, estava a revista nas fronteiras. Fino ofereceu a palma da mão direita com o braço erguido e o outro correspondeu, segurando firme a mão do amigo. Não havia mais volta.

Pediram à recepcionista que providenciasse um táxi, e ficaram um tempo sem jeito de falar a respeito, excitados; deram mais dois tiros, cada, e desceram. No carro, falaram de futebol com o taxista, que recebeu a ordem de achar um bar tranquilo. Sentaram-se e olharam muitas vezes em volta. Era bem diferente do último em que haviam estado, tinha decoração caprichada, plantas, iluminação aconchegante, tocava uma bossa nova. Pediram uma cerveja e, tão logo o garçom serviu e se afastou, Mauro esfregou as mãos e explicou. Eu conversei com ele, sobre pegar mais, entende? Não estava nem pensando em roubar a grana do seu chefe… Ele estava entusiasmado e falava alto o bastante para ser escutado, Bisnaga o advertiu com uma mão e com o cenho. Mas aí, prosseguiu sussurrando, ele começou a falar que 50g era tanto, 100g era tanto… Quanto é que você tem? Bisnaga fez com as duas mãos e o parceiro fez com dois dedos.

É loucura… meu chefe, minha mãe, minha mina, como é que explico? Cara, isso tudo se resolve; essa é uma chance que não dá pra desperdiçar. Mano, eu nunca fui bandido! Como não, você trabalha pra máfia! Fala baixo, caralho! Fino se desculpou, tomou um gole do chopp. Tem mais! A revista está parada aqui; e lá? O outro parou, pensativo. É pouca coisa, cara, vai na roupa… É um risco grande, ainda. Não é, meu, eles estão atrás dos peixes grandes, fica tranquilo, porra! Tentaram falar de outros assuntos pelo resto da noite, mas a tensão estava latente. Bisnaga pagou a conta e seguiram o plano do Fino: ele se lembrava do nome do bairro e do da padaria, foi para lá que o táxi foi. Enquanto o amigo mais receoso andava de um lado pro outro, o mais pilhado voltou ao sobrado, pegou mais cinquenta – às custas do outro – só como pretexto para combinar o grande corre para o dia seguinte: duzentos, dez mil, três da tarde. Palavra de homem? Palavra de homem, porra!

Os dois precisaram caminhar até uma rua movimentada pois não tinham o telefone do serviço de táxi, e foi com o coração na mão, especialmente o Bisnaga, que chegaram ao hotel. A recepcionista estava dormindo e foi preciso bater com força até que abrisse, com uma cara entre o espanto e o reproche. Ainda sobrava um pouco do uísque, e é fácil deduzir que foram dormir quando o sol já nascia, após uma fase de rememoração de quase todas experiências divertidas que já haviam vivido juntos. Perderam obviamente o café da manhã do hotel, e até almoço foi um pouco difícil achar quase às duas, de modo que se dirigiram diretamente para o tal sobrado após a refeição. Desta vez, Bisnaga fez questão de ir junto, afinal o dinheiro era “dele” de certa forma. O traficante não gostou nem um pouco, ficou intranquilo, revistou os dois, conversou com seus comparsas, mas eventualmente a negociação foi concretizada. Andaram novamente até conseguir um táxi, pois não queriam chamar qualquer atenção, depositaram o tijolo envolto em fita na mala e seguiram primeiramente a um bar para um chopinho e depois para uma lan house de onde compraram as passagens. Rio-Lisboa, dali a dois dias.

Carlos dirigia seu próprio carro; nem tão próprio assim, havia sido sido emprestado pelo chefe, mas há tanto tempo que era como seu. E ele estava prestes a trair…, como assim, ele já havia traído sua confiança. Mauro era amigo de longo tempo, mas dar ouvidos a ele era sempre se meter em encrenca; esta era apenas a maior delas. Mauro, o Fino, não estava arriscando exatamente nada, largava um programa de aprendiz que podia ser a ponte para o emprego que há tanto buscava, e nisso pensava na estrada. Foi uma viagem tensa: pouco conversaram. Passaram por três postos de polícia, em que apenas rezaram, maus católicos que eram, para não serem parados; e tiveram sorte. Chegaram ao Rio e buscaram logo um albergue que o Fino já conhecia. Era bem na Lapa e o Bisnaga concordou na hora em tomar um chope. Domingo à noite, acabaram se sociabilizando, e calhou de ser com duas garotas mais jovens que estavam no albergue, uma alemã e outra austríaca, embora apenas Carlos soubesse um inglês rudimentar. Ainda assim foi seu amigo que tenha, mais por gestos que por palavras, conseguido informações sobre Lisboa, que a austríaca conhecia: bairro alto é onde deveriam se informar. O Fino ainda se entusiasmou e acreditou que conseguiria passar a noite com a vienense, mas sentiu logo o choque de cultura. Dormiram bem.

De manhã, conseguiram os saquinhos e a fita para acomodar todo o flagrante nos casacos que haviam trazidos prontos para o frio do sul; resolvido isso, foram à praia, ali em Copacabana. os dois fizeram telefonemas explicando que iam demorar a voltar, cada um com uma desculpa bem ou mal elaborada; a cada momento ainda trocavam olhares para confirmar o própósito, mas a resposta era sempre, por parte do Fino, principalmete, vamos em frente. O voo era naquela noite. Chamaram atenção no aeroporto, de casaco, mas não foram incomodados e embarcaram, ambos suando frio, o Bisnaga sendo mais inábil em disfarçar. Os assentos eram separados; Carlos sentou-se ao lado de uma professora de inglês bastante comunicativa que o ajudou a relaxar e Mauro ao lado de dois senhores que não quiseram muita conversa, o que palavras cruzadas compradas no aeroporto ajudaram a compensar. Ambos dormiram no voo, e o teste da alfândega, de manhã bem cedo, os reuniu. A conversa na fila foi truncada, falsa, nervosa, Mauro talvez mais inseguro, e com isso falante, que Carlos; mas tudo não passou de apresentar os passaportes – que haviam levado para ir apenas ao Paraguai. Suspiraram e trocaram um sorriso cúmplice; apenas no banheiro trocaram o cumprimento tradicional e um abraço forte.

Descobriram rápido que o idioma local não era exatamente o mesmo, mas foram informados de que não havia hotéis no bairro alto, mas a moça da lanchonete indicou um no chiado; dirigiram-se até lá e se instalaram. Era perto de meio dia, conseguiram almoçar – bacalhau, Carlos fez questão – ali perto, e voltaram para dormir até a hora em que o sol invernal se punha. Pediram direções e não foi difícil chegar ao bairro alto. Encostaram no primeiro bar que pareceu convidativo, o movimento ainda era pequeno. Aos poucos, uns tipos estranhos começaram a circular de cerveja na mão, desde mulheres de cabelo colorido a homens engravatados. Eu falei que ia dar tudo certo, Fino arriscou. Quase tudo, Bisnaga respondeu, tem uma fase importante pra resolver. Tinham dado uns tiros antes de ir ao hotel, e a cerveja estava dando vontade de reforçar. Vamos voltar pro hotel, disse o mais prudente; vamos aqui no banheiro, o mais pilhado. Vai você, então. Pois Fino foi flagrado por um funcionário do bar e os dois foram expulsos. Andaram até o hotel, cheiraram e voltaram a passos apressados, desta vez com foco no seu objetivo.

Circularam um pouco e detectaram um grupo que parecia mais propenso a conhecer os meandros do movimento local. A gente é brasileiro, tudo bem? É, chegamos hoje… A conversa caiu inevitavelmente em futebol inicialmente, passou por outros assuntos até que o Fino mandou: e uma brizola, como é que se consegue? Ninguém entendeu, obviamente, mas um gesto do indicador martelando a lateral do nariz completou a comunicação. Um deles os mediu, olhou para os parceiros e aconselhou que falassem com um gajo de cabelo comprido que ficava no adamastor e usava um gorro verde. Erraram algumas vezes o caminho até encontrar o mirante do adamastor, que estava repleto de gente, mas apenas uma como gorro verde. Tudo bem? – era sempre o fino a tomar iniciativa. Boa noite, o que tu queres? Aí foi a vez do Bisnaga tomar a palavra. Meu nome é carlos, sou brasileiro; nós viemos com uma proposta. O gajo tirou um palito da boca e demorou um pouco para contestar: e qual é? Não quer ir a um lugar mais tranquilo? Pediu um instante e andou até um banco onde estava sentado outro gajo, que levantou a um sinal do primeiro; cumprimentou-os. Boa noite senhores, brasileiros então? O gorro verde sussurrou em seu ouvido e ele passou a fazer uma série de perguntas banais; o Fino cortou a conversa e reafirmou: temos uma proposta, bom negócio pros dois, tá ligado? O segundo rapaz, que usava um casaco de couro marrom, fez uma careta com a gíria, trocou um olhar com um outro e disse que o acompanhassem. Saindo do mirante, em uma tranquila, os dois foram revistados; andaram um bocado trocando amenidades, Carlos praticamente mudo, nervoso. Chegando a uma viela de paralelepípedos – era a Alfama – entraram em um restaurante, cumprimentaram o senhor no balcão e saíram por uma porta lateral, atingindo um quarto minúsculo.

Mais uma vez Carlos tomou a dianteira: tinha medo da impetuosidade do amigo. Nós temos 200 “g” de cocaína (não queria mal entendidos). Eles tinham pesquisado o valor de mercado na Europa no mesmo dia em que compraram as passagens, mas Bisnaga esperou a reação dos gajos. Está convosco? Está no hotel. Preciso provar, não posso dar um preço, o casaco marrom havia assumido o comando. É coisa boa, da fronteira, o Fino atravessou. Os locais se olharam, e o de gorro sentenciou: procura-me amanhã no mesmo lugar com a mercadoria. E assim foi feito, os brasileiros fizeram um pouco de turismo na tarde seguinte, excitados com o sucesso iminente do plano ousado. Repetido o ritual da noite anterior, o gajo com o mesmo casaco provou o produto, pesou, e estabeleceu um preço. Os manos da periferia paulista haviam-se equivocado: o pó valia muito mais, aceitaram sem regatear. Celebraram como loucos após guardar o dinheiro no hotel, foram se deitar quase meio dia, alucinados. Ao acordar, mais uma vez ao pôr do sol, Bisnaga tinha uma incrível sensação de culpa, enquanto o Fino já se preparava para retomar os trabalhos com a porção que haviam reservado para si. Aquele julgou que era bom alvitre ligar mais uma vez para o chefe, dizendo que a entrega da aparelhagem de áudio havia falhado e aconteceria no dia seguinte: ganhariam tempo. Ah, como a consciência nos trai! Todos os passos deles eram previsíveis, os tentáculos da máfia chinesa eram longos, e os dois brutamontes que os aguardavam não tiveram dificuldade em reconhecê-los no aeroporto de Amsterdam. Bisnaga procurava não se envolver com os detalhes das atividades de seu chefe; não sabia por exemplo que ele tinha um gosto mórbido por tortura. Só a morte aliviou o sofrimento dos dois.

Encrenca

Riu o riso amargo que era sua especialidade. Curto e abafado, encerrando com um suspiro. Sentia-se um idiota de se ver naquela situação mais uma vez. Se qualquer um de seus pacientes pudesse imaginar que ele estava fazendo aquilo, sua carreira estaria ameaçada. Voltou a questionar o moleque: vai conseguir? Claro, tranquilo, calma, é o que já havia escutado várias vezes. O telefone tocou, estou resolvendo, vai dar certo. Estava nos fundos de um bloco de lojas, numa rua onde ficava um bar frequentado por um acervo inusitado de desajustados sociais, o que propiciava o ambiente ideal para vicejar a selva do varejo de drogas a céu aberto.

Era o último recurso de qualquer usuário: caro, arriscado e a qualidade era muito variável, embora nunca realmente superior. Por isso Jonas estava ali de madrugada, quando a coca que um amigo conseguiu de dia já havia acabado. Sabia que o comportamento era doentio, sabia que a substância dominava sua vida, que mesmo assim seguia adiante com seu consultório e todas aquelas bocas abertas. Todos os demais espaços eram tomados pelo vício, e sua vida afetiva há muito era nula. Ironicamente, estava pensando naquele mesmo momento numa paciente que atendera à tarde. Era uma balzaquiana solteira, mais charmosa que bonita, e simpática, despojada. Ela fizera questão de perguntar seu estado civil, o que já é um sinal. Estava decidido a convidá-la quando acabasse o tratamento, mas aquilo realmente não importava muito. Talvez fosse o único benefício do pó, esboçou mais um sorriso auto-irônico.

O mesmo moleque apareceu pela décima vez com a mesma resposta. Eram sempre crianças de dez anos ou menos que operavam a banca, uma cena dantesca, e todos já o conheciam muito bem. Naquela noite, por algum motivo, ninguém tinha nada para vender: problemas de logística são naturais nesse ramo de atividade. Nenhuma novidade para Jonas, que apesar do hábito nunca conseguiu ter uma fonte estável de abastecimento. O pivete que sumia e aparecia, numa camisa de time muito maior que ele, tinha prometido que alguém ia conseguir, e ele já estava ali havia vinte minutos.

Foi quando surgiu um, um pouco maior, devia ter quatorze ou algo assim. Chamou-o no canto, alcançou por trás de um cano, e mostrou um embrulho de plástico branco, enquanto dizia rapidamente, como alguém que tinha consumido, talvez, que tomasse cuidado, estava muito perigoso. De fato, espiando por uma abertura por onde se podia ver a rua, um carro de polícia pôde ser visto passando. Ele deu o preço, Jonas regateou e conseguiu um pequeno abatimento. Deu o dinheiro e pegou a parada. Esboçou um movimento para abrir o saquinho, e foi quando o menor o repreendeu com veemência: tá louco, não abre isso aqui não. Ainda bateu boca com ele.

Há uma glândula no cérebro que atua sempre que você está na iminência de ser enganado, e garante que você seja enganado. Um drogado com a quilometragem de Jonas aceitar comprar qualquer coisa sem se certificar de que minimamente corresponde à expectativa, ou seja, de que é uma lebre e não mais um gato, é uma infantilidade tremenda. Dá vontade de cheirar tudo e fingir que não caiu como um pato. Tudo isso ele repetia para si mesmo dentro do carro, depois de ter atestado sua idiotice. Esmurrou o volante e gritou irado para aliviar a tensão. Era inútil voltar lá, os delinquentes já haveriam sumido.

Mas eles sempre voltam, e ele não estava disposto a simplesmente aceitar aquilo. Foi para casa onde o amigo compadeceu-se do logro sofrido por Jonas, mas lamentou muito mais a expectativa frustrada de mais algumas carreiras. Ocorre que esse amigo tinha uma arma, e Jonas insistia que ele a buscasse para voltar ao local do golpe. Ele tentou demover o dentista, não valia a pena mexer com essa gente: vamos dormir, tem aquela história que deve rolar amanhã e a gente fica de boa.

O amigo foi embora, ele se deitou sabendo que não conseguiria dormir, pelo que já havia cheirado e pela raiva que o consumia. Entre sucessivas iterações do plano de vingança, chegou a passar por sua cabeça que essa experiência deveria servir para que ele se convencesse de que aquilo tudo estava errado, de que deveria buscar ajuda para superar a dependência. Restava saber qual ideia prevaleceria pela manhã.

Acordou sem a dose que o “ajudaria” a trabalhar por horas, e durante o desjejum, café preto e cigarro, estava extremamente irritado. Lembrou-se da ideia de tentar parar, mas mais uma vez a resposta foi amanhã ou semana que vem. Ele tinha pelo menos que se livrar daquela ideia fixa. Se eu der um fim em um traste daqueles, quem vai se importar? Muita gente me agradeceria. Eu nunca pensei assim, eu dependo deles, afinal, mas agora é pessoal. A primeira coisa que disse à secretária (bom dia estava fora de questão) foi para cancelar todos horários da tarde.

Tinha dificuldades para se concentrar, tremia, e não atendeu o terceiro paciente, incumbindo a funcionária de inventar qualquer desculpa. Ligou para alguns amigos, e nem tão amigos, até descobrir alguém que tinha pó. Ele ia almoçar em casa então deu tudo certo: conseguiu dar pelo menos dois tirinhos até que a grande transação se efetivasse. Dirigiu quase uma hora até uma cidade próxima; havia lá uma feira especializada em produtos roubados e todo tipo de pequenas e grandes ilegalidades. O que ele procurava obviamente era a arma que o amigo lhe negara. Não foi difícil, nem foi muito caro, um clássico trinta e oito. Aquilo já estava mais caro que assumir o prejuízo, mas sua mente não conseguia raciocinar em linha reta.

No fim da tarde, veio a boa notícia: os amigos haviam concretizado a compra que os deixaria tranquilos, ou intranquilos, por algum tempo. Reuniram-se na casa de um deles e cheiraram ouvindo rock no último volume; não conversavam além do imprescindível, não se importavam mesmo uns com os outros, só com a farinha. Na cabeça de Jonas, sua resolução ganhava embalo com a sensação de plenipotência que lhe entrava pelo nariz. O assunto da véspera surgiu, entre risadas; ele dissimulou.

Era perto de meia noite quando ele passou bem devagar pelo mesmo bloco, com a janela fechada. Não viu o rapaz. Parou em um posto e tomou uma cerveja. Tentou mais uma vez, nada. Repetiu a operação, desta vez viu o moleque da camisa de time. Eu não mataria uma criança, embora ele mereça. Foi só na quinta tentativa que desistiu e foi para casa. Voltou no dia seguinte e no outro. Estava quase desistindo, mas sempre que manuseava a arma (afeiçoou-se a ela) seu intento se renovava.

Esperou dois dias e enfim conseguiu o que queria. Lá estava o rapaz, e estava na rua: esperava os carros encostarem para vender ali mesmo. Engatilhou a arma e parou bem devagar, longe dele, que veio andando até o carro; tempo em que ele ainda conseguiu fungar no seu tubinho, para dar firmeza. A mão esquerda acionou o vidro elétrico e a direita puxou o gatilho, quase ao mesmo tempo.

A polícia o alcançou em cinco minutos: estavam sempre por ali e os clientes do bar forneceram a placa. Sentado no chão da cela, esperando para ser apresentado ao delegado, Jonas finalmente concluiu o que sua consciência tentara insinuar: veja aonde essa porcaria me levou, eu me fiz de idiota muito mais do que ele; eu podia ter aproveitado a oportunidade, buscado ajuda, eu poderia conhecer aquela paciente, quem sabe, casar, ter filhos, comer e dormir como gente normal, passear no parque. A grade se abriu e ele foi posto ante a autoridade. Depois das formalidades, o delegado adotou um tom afável, disse que Jonas estava de parabéns por livrar a sociedade daquela escória, mas infelizmente não adianta matar um, vem sempre outro no lugar, e que, embora ele não pudesse sair com fiança, com um bom advogado daria tudo certo. A prisão foi a melhor, ou a pior, clínica de reabilitação que Jonas poderia ter. Não voltou a usar, e se aquela paciente precisou achar outro dentista, tenho certeza que ele se arranja qualquer hora.

Quarto Olho

O show de rock de uma banda consagrada estava sendo gravado para lançamento em RV, então mil câmeras e sensores haviam sido espalhados pelo ginásio. Não que isso fosse muito diverso da vida nas ruas naquele fim de século. Mas ali, além de toda parafernália instalada no recinto para registrar o evento, também os frequentadores precisavam usar dispositivos magnéticos na cabeça, nas duas mãos e nos dois pés. Dessa forma, todos os usuários da RV do show, em qualquer parte do mundo, e bem depois do fim da banda e da morte de seus integrantes, poderiam com a ajuda da máscara viso-auditiva e dos sensores corporais vivenciar a experiência tal qual ela aconteceu . Mais do que isso, o RV-espectador podia também interagir com os presentes, convidar amigos on-line ou salvos em ROM, pedir músicas, e até mesmo, para quem saiba usar códigos piratas, deixar toda a plateia nua, ou a banda, ou usar todas as drogas que existem e outras que nunca existiram.

Os cinco integrantes da banda Quarto Olho, duas mulheres e três homens, estavam no auge da fama, e vinham sendo comparados aos lendários Mutantes por serem reconhecidos nas fontes históricas do rock, dos dois lados do Atlântico Norte, e receber elogios de gente grande no meio. Sua música era um misto de pós-psicodélico com afro-latinidades, um grande caldeirão em que se expressavam bons instrumentistas em contagiantes composições. Carla Z  era percussionista, ela e sua esposa tecladista Déa Dia eram as líderes, ainda que todos os membros compusessem, como o guitarrista Lelo Exu e o baixista Grudi, ou Toni Terra, o piloto dos efeitos digitais, sendo que os três também dobravam na percussão. O visual deles refletia as influências ecléticas e incluía de dread locks a saltos agulha, de tie-dye a turbantes, de meias-arrastão a camisas de flanela, de trajes de malandro a batas africanas. No fundo do palco havia um painel multicolorido em que se misturavam elementos como capoeiristas e naves espaciais.

A banda entrou no palco, levando a plateia a gritar como louca. No meio a ela, espremida num oceano de corpos, estava Ruana. A jovem, de calça e top tão pretos quanto os cabelos amarrados, com a barriga de pele escura cravada de um piercing, tinha combinado de encontrar uma amiga lá, mas não tinha tido resposta às mensagens. Sua expectativa era enorme, a banda pouco vinha ao Brasil agora, e o dinheiro do ingresso foi duro de ganhar, como intermitente na lanchonete fast-food. Ela estava terminando seus estudos, ou antes não teria condição de prossegui-los no caríssimo ensino superior, e dado o leque de ocupações precárias que a esperava, decidiu que trabalharia como rodie para o Quarto Olho. Naquele dia ela ia tentar entrar nos bastidores, de qualquer maneira, para lutar por isso.

Um acorde seco e distorcido da guitarra de Lelo inaugurou a apresentação acompanhado das congas de Carla Z, com Grudi e Toni tocando caxixi e ganzá. A introdução parecia ser improvisada, e terminou numa nota de suspense, na qual se ouvia o alarido do público, para desabar numa levada forte e sincopada. Ruana sentiu a vibração do telefone, era uma mensagem de Lisa. Déa começou a cantar uma antiga canção de pescadores, Carla tocava cajón, e Toni mandava no abê. Lisa dizia que estava perto do house mix, e para lá foi Ruana, mesmo lamentando que ao deixar a beira do palco não mais conseguiria voltar. Foi preciso abrir caminho pela multidão densa até chegar à torre da qual se controlava o som e, após procurar pouco, Ruana encontrou a colega da lanchonete com cabelos azuis, que trocava beijos lascivos com um rapaz andrógino.

Lisa sentiu um puxão pela jaqueta e nem poderia dizer se veio antes o abraço ou a pergunta: “E aí, trouxe?” Puxou dois tubos plásticos do bolso interno e os exibiu na mão direita, enquanto as duas iniciaram uma espécie de dança ritual, o que só era possível porque ali a turba já rareava. Cada tubo preto, similares às canetas esferográficas que se viam nos museus, tinha um botão vermelho de um lado e um estreitamento seguido de uma pequena abertura do outro, cotinha uma agulha ejetável com uma dose de neuromax. Esse era o nome popular da droga que ampliava a atenção e intensificava todas as capacidades cognitivas durantes suas duas a três horas de efeito. Perfeito para uma missão como a de Ruana. Ela se aplicou na lateral da lateral da barriga, e recolheu a agulha pelo mesmo mecanismo antes de descartar o tubo na lixeira. O segundo tubo ela guardou no bolso para um reforço mais tarde, caso fosse necessário.

Narigadas

Todas minhas fotos tiradas no tempo do filme estão numa caixa de sapato, enquanto as digitais se perderam pelo caminho. Pois eu me peguei passando as vistas pelos instantâneos ontem, enquanto bebia um vinho. A primeira namorada, é claro; a praia com amigos da faculdade durante a greve; o curso de inglês na Califórnia; elas vinham em álbuns de envelopinhos plásticos, e enquanto eu passava um destes, percebi que estava mais pesado. Olhei o álbum por cima, era um que continha fotos muito antigas, da escola, e era possível perceber que havia uma foto a mais entre as que eram exibidas, eu tocando bateria na festa da turma e eu desmaiado de bêbado na festa da turma: havia uma foto “proibida”? Puxei-a com as unhas com certa antecipação, e o mistério se desfez: figurávamos eu e o Délio fazendo caretas, eu com o cabelo grande armado, ele sem camisa e baseado na boca, ambos numa barraca de praia, o que mal se via, pois era noite. A foto deixou meus olhos vermelhos – digo, não apenas as escleróticas, injetadas de sangue – de modo que eu parecia uma assombração. Foi aquele dia em que a gente foi parar em Nova Almeida. O dia em que a gente experimentou colírio.

Não o colírio, o velho Moura, que embranquecia as escleróticas sempre tão sanguíneas para facilitar o trato social, não. Colírio ciclopédico, que só muito tempo mais tarde, quando me informaria um pouco, eu saberia que contém alcaloides de tropano, coisa fortíssima. Ciclopédico no nariz, já virou até música, mas eu naquele dia não fazia uma puta ideia do que se tratava. Sei que saí da minha aula de sábado e usei um orelhão para ligar para a casa do Délio; eu morria de medo que o pai atendesse, que não gostava da minha cara. Minha meta era só fumar um baseado, coisa de fim de semana, então. Ele só disse que corresse até lá, e que tinha novidades. Era um dia de inverno, a temperatura amena o bastante para que a viagem de ônibus até o centro da cidade costeira fosse assaz agradável, e após apear e subir um pouco eu tocava o interfone. Délio desceu. Tirou do bolso um pequeno frasco e começou a explicar o que sabia a respeito do ciclopédico; fungava-se pelo nariz e ficava-se chapado, era tudo que sabia. Explicou ainda que uma tal farmácia não exigia receita e que seus colegas da vizinhança recomendaram muito, o que para mim era um critério suficiente para provar substâncias como quem se arroja a uma piscina sem saber se tem água. Eu confessei que não tinha almoçado, ele insistiu que subisse, eu era super sem jeito, mas fui. Por cima do frango a gente combinou de ir à pedra do macaco, e mais por gestos que por palavras combinou de dar a narigada só mais tarde.

No caminho do ponto havia um café expresso, e eu parei para tomar um. Me lembro disso agora porque o Délio comentava muito meus hábitos, dada uma certa disparidade de classe. O coletivo nos levou a outro bairro, donde se acessava a pedra do macaco; era um destino já velho conhecido, e apesar de sempre ficar devendo ao Délio, naquele tempo pernas e pulmões ajudavam muito mais a galgar as trilhas e escalar a rocha até as cavernas que pareciam os olhos do macaco. Após um descanso, Délio fez um monstro de baseado, como costumava, ao menos na fartura, e eu me pus a comer das frutas que a gente trouxera. A conversa foi por aqui e ali e pode bem ter passado pelo metal progressivo, que parecia uma ótima ideia à época. A gente começou a se encontrar a partir de uma banda de rock que nunca chegou a existir, na verdade. Aí ele começou a contar as histórias dos seus vizinhos com o colírio, de que ouviam orquestras, viajavam a outro plano, recebiam a visita de espectros, e eu fiquei ansioso por uma experiência intensa, e não preocupado. A mocidade. A descida foi com o sol caindo e o café na loja de conveniência mereceu novo comentário. O combinado foi que cada um iria a sua casa tomar banho para depois cair na lama. Rua da Lama, é como chamavam.

Assim foi feito. Eu cheguei antes e me instalei no lugar combinado; pedi uma cerveja, o Délio nem bebia. Ele chegou e tirou do bolso um daqueles, o cara era bom mesmo; eu pedi que escondesse, sempre fui grilado. Ele levou um indicador ao nariz e perguntou se eu estava pronto; eu estava, ou pensava que estava, mas a primeira questão era onde resolver aquela peça de artilharia que Délio exibia com tanta desenvoltura em público. E isso não foi difícil solucionar, havia umas formações rochosas interessantes não muito distante dali, e lá fomos. Enquanto a gente fumava veio gente se aproximando, e foi meio tenso, mas se revelou que era mais maconheiro, e Délio os conhecia, ainda por cima. Foram eles que contaram sobre a festa em Nova Almeida. Délio ofereceu do colírio a eles, que passaram. Aí aproveitou e me chamou para tomar logo. Pois que seja. Vi o amigo fungar duas vezes de cada lado e fazer cara ruim, aí funguei eu duas de cada lado, é amargo, e devo ter feito cara ruim igualmente. Tinha uma ponta pra acender e dali em diante era pura expectativa; finda a ponta voltamos à Lama. Passou-se alguma atividade corriqueira de encontrar gente e trocar algumas palavras, em algum momento a gente estava numa mesa já nem sei mais como e tinha uma morena de cabelo curto linda, tatuada no pescoço, imagina, naquela época; eu sempre fui tímido.

Não havia passado meia hora da fungada mas a gente já reclamava: não deu nada. De repente alguém tinha um violão, e nós nos juntamos a uma turma que se instalou nas mesmas pedras onde estávamos mais cedo; foram vários clássicos de heavy metal e hard rock até que bem tocados, e uns tantos minutos de impaciência dos ciclopédicos. Da próxima vez eu vou dizer que minha cultura é ciclopédica. Não pode ser, não mudou nada. Eu vou dar mais duas. Eu também. Fungamos os dois, pouco depois os amigos do Délio insistiriam sobre Nova Almeida e lá iríamos ao ponto, dispostos a uma tripla jornada até os arrabaldes da galáxia. Todos mantiveram relativo silêncio nos ônibus, nos terminais, e eu mesmo já quase dormitava quando chegamos a Nova Almeida. Nada? Não sei, alguma coisa, e você? Acho que também. Pois bastou o trecho entre a descida do ônibus e a festa para que batesse tudo de uma vez.

Meus braços pesavam. Meu corpo pesava. Tudo pesava. Nem imagino como ia minha silhueta desenhada pela iluminação pública no calçadão. Délio, sem pilha pra festa. Também. Fomos a um trecho tranquilo de praia. Meu irmão, que porra é essa? Cada um se deitou na areia, e eu de minha parte me sentia feito de chumbo, e não havia nada de agradável na onda. Fumar faria bem ou mal? Fumamos. Se bem ou mal fez, ao menos decidimos cair na festa e foda-se. Era uma aglomeração de gente em trajes despojados, de classe média alta basicamente, e foi ao menos uma distração ver as mulheres bonitas. Eu apostei comigo mesmo que conseguiria uma cerveja, e consegui uma cerveja; mas ela desceu estranho, como se houvesse óleo em minha garganta. Comentei com Délio. Nunca mais, disse ele, que não suspeita de Poe. Que troço ruim. Mas, bravos guerreiros que éramos, prosseguimos adiante, com banda de reggae e tudo, até que topamos um grupo com quem começamos a conversar. E havia essa morena, de olho verde, mas seu cabelo era de um preto tão falso que ficava meio ridículo; pois conversando eu descobri que ela estudava na mesma escola, e eu sempre a achei linda, o que ela é, tintura e tudo. Dali a pouco o céu foi providente e todos os demais saíram, certifiquei-me de que Délio estava bem, e parlamentei mais um tanto com Fernanda, antes de arriscar um beijo, que funcionou.

Eu a envolvi com os braços, e sorvia seus lábios macios, sentia seu perfume. Todo mal estar do colírio havia desaparecido, e era como se nós flutuássemos no meio do nada. Então eu senti uma pancada na canela, e depois outra, e toda aquela cena evanesceu. Era o Décio me chutando e me tirando do torpor ou sono em que me encontrava, dizendo que me procurou por toda parte, que diabo eu tinha que me esconder na cabana dos salva-vidas, que era melhor voltar para casa. Será que eu encontrei mesmo a Fernanda aquele dia? Eu nem comentei nada, dormi no ônibus e fui recebido ao raiar do dia por pais preocupadíssimos. Quem tirou a foto e como ela chegou a mim eu já nem me lembro.

Corre

Você conhece a regra de ouro: os incomodados que se retirem. Essa não é a regra de ouro, a regra de ouro é não faça aos outros aquilo que não quer que façam a você mesmo. Exatamente, não fique reclamando da minha fumaça se não gostaria que eu reclamasse da sua… caretice; sei lá, vai estudar lá no quarto, na varanda, não importa, este aqui é meu ritual.

Os dois moravam juntos havia três meses, e a tensão latente indicava que provavelmente igual período não se passaria antes que se rompesse a parceria. Ambos haviam respondido a um anúncio de um terceiro estudante que alugara o apartamento e acabou se mudando e deixando os dois estranhos no ninho. Sílvio era metódico e estudioso, fazia alguma engenharia que já não me lembro; não se mudava porque estava atarefado demais com o curso e o estágio em um laboratório para se preocupar com isso. Já Cássio era um bon vivant maconheiro e relapso que fazia mestrado em literatura e não trocaria aquele lugar perto do campus por nada.

Seja qual for a interpretação correta da regra de ouro, Sílvio aquiesceu e foi para o quarto estudar, mesmo sem uma mesa, e o companheiro, se podemos chamar assim, terminou tranquilamente seu primeiro baseado da noite enquanto esperava a visita de dois outros estudantes de Letras, um do mestrado e um da graduação. Viu um pouco do noticiário sem muito entusiasmo até que o interfone tocou. Acionou o botão que abria a porta do hall e desligou a televisão. Havia um velho três-em-um com defeito que recolhia o braço na metade do disco; ele colocou um do Louis Armstrong e abriu a porta.

Cumprimentaram-se com ruidosos apertos de mão e meios-abraços e acomodaram-se nos dois sofás surrados enquanto trocavam minudências da vida acadêmica. Vou ter que reescrever todo o segundo capítulo, Fábio disse, irritado, meu orientador pensa que eu não devo falar em Maupassant se não vou analisar todo o realismo francês, que idiota! O que falta a essa gente é flexibilidade, concordou Cássio, se querem receita de bolo, fazer o quê, receita de bolo neles! Eu tô fudido em latim, reclamou Pedro, tenho que decorar umas vinte declinações diferentes. Não há vinte declinações diferentes, protestaram os mais velhos. Ah, não sei, deixa isso pra lá, vamos fumar um ou não? Fábio tirou do bolso da jaqueta (começava a fazer frio) uma caixinha de lata: cara, a gente pegou um três-pra-um que vai estourar sua cabeça! Na mesa de centro havia um dichavador com um smiley no topo, o anfitrião o passou ao amigo e começou a recortar um guardanapo de papel, alguém tem uma seda decente aí? Pedro tirou um livrinho do bolso e destacou uma folha, rasgou um pedaço do papel cartão e dobrou eu um pequeno tubo que seria a piteira. Em instantes, estava acesa uma bomba, e o mecanismo automático interrompeu Black and Blue bem no meio. Cássio virou o lado e a conversa prosseguiu sobre canais de fumo.

Vocês precisam pegar com esse cara, vale a pena! Já estou percebendo. Com certeza, brodi! Na metade do baseado, estavam todos muito loucos. Cássio já tinha fumado, mas dava pra perceber a qualidade superior da brenfa. Eu nunca consegui ter um canal fixo, confessou o mais novo, sempre alguma coisa dá errado. Esse cara é firmeza, eu passo o número; ele traz na sua casa. Eu não gosto disso, observou o anfitrião: traficande subindo aqui, não pode dar boa coisa. O cara é gente boa. Não importa se o cara gente boa, eu não quero começar uma amizade, eu quero resolver meu problema. Pena que o Luizão foi pro xadrez, lamentou Fábio. Eu tô nessa de pegar paranguinha com aquele cara do bandejão, isso não dá futuro, confessou Cássio. Pedro concordou, já peguei muito com ele. Mas não tô podendo pegar a três-pra-um, tive que encomendar um livro caríssimo para a pesquisa. E como vai sua dissertação?, interessou-se o colega mestrando. Sei lá, eu inventei de falar das quatro grandes, mas às vezes parece que só Hamlet dá muito pano pra manga. Mas vai bem sim.

Após um longo silêncio em que cada um ia afundando no sofá e curtindo o jazz, o braço do aparelho interrompeu Hello Dolly e todos meio que acordaram do torpor. Cássio esmurrou a mesa de centro: eu preciso comprar uma picape nova. Colocou um do Tom pra girar e voltou a seu lugar. Foi quando Pedro deu a ideia: cara, o melhor é comprar logo um quilo! Tá louco, os outros dois reagiram. Não, cara, se juntar cinco já rola; sai muito mais barato! Todos se entreolharam e um sorrisinho surgiu-lhes no rosto. E você sabe onde conseguir?, perguntou Fábio. Bem, eu conheço alguém que pegou esses dias, vou conversar com ele. E aquele telefone do lanche, hein? Pediram sanduíches e quando terminaram já era hora do futebol. Mandaram obviamente mais um e conversaram sobre diversos assuntos, o som da tevê desligado e uma bolacha do Coltrane no pino.

Três dias depois, Cássio e Pedro se encontraram por acaso no campus. O mais jovem contou que já tinha o canal certo. O Sérgio e o Sujo estão dentro. É tanto pra cada um. É no Parque Tuiuti. Só você tem carro. Nem fodendo que eu vou lá de carro. Vamos de busão. Combinaram que iriam os dois fazer o corre. Faltava ligar pro Fábio; ele topou na hora. Combinaram para o sábado, era quarta-feira. Na sexta ainda houve uma puta duma festa nas Ciências Humanas, então Pedro estava numa tremenda ressaca quando acordou às sete da matina para encontrar Cássio no ponto de ônibus. Achavam que de manhã era mais seguro. Chegou bem depois do combinado e encontrou o colega lá. O importante é agir naturalmente. Você está carregando uma mochila e é só isso, ninguém vai incomodar a gente, Pedro orientou o outro. Fica tranquilo, eu tenho mais bagagem que você, já fiz muito isso.

Tinham que pegar um até o terminal central e de lá outro. O primeiro demorou vinte minutos para chegar e em mais vinte estava no terminal; esperaram um quarto de hora e aí iniciaram uma longa jornada de quase uma hora até o Parque Tuiuti, uma quebrada perigosa que evoluiu em volta de uma fábrica de cimento quando aquilo era afastado da cidade. No caminho foram vendo formas modernas e urbanismo aceitável dando lugar pouco a pouco ao mais absoluto caos de moradias improvisadas, indústrias poluentes e vias mal-cuidadas. Chegaram e andaram meia hora, perderam-se, até que viram um sujeito com cara de malaco e abriram o jogo; ele os ajudou em troca de uma preza, que estavam comprometidos a dar na volta. O local apontou a porta. Era na verdade um portão de aço esmaltado, no qual bateram e aguardaram uns instantes até que um cara de camisa regata e o peito repleto de tatuagens olhasse pelas barras. Eu combinei com o Robert, Pedro arriscou. O bandido os olhou um pouco e os deixou entrar. Percorreram um corredor estreito, entre um casebre azul e o muro coberto de musgo. Havia mil tranqueiras pelo caminho, mas conseguiram chegar a um pequeno galpão.

O rapaz que os acompanhara apontou um outro, com jaqueta de time de basquete americano, que estava com mais três em uma rodinha, perto de um armário metálico, daqueles de arquivo, antigos, nos fundos do galpão. Cássio olhou para Pedro e fez um sinal que dizia “deixa comigo”; o outro protestou: “fui eu quem ligou”. Nisso chegaram ao grupo; cumprimentos nada sinceros e gírias meio forçadas à parte, Cássio foi direto ao assunto: “a gente veio pegar um metro”. O cara da jaqueta mandou sossegar e pitar com eles, e prosseguiu acompanhando a letra do rap que tocava. Pedro estava de boa, mas Cássio não conseguia relaxar; depois de umas quatro bolas, uma bad trip começou a se instaurar e ele não via a hora de estar longe dali. Fez um sinal ao amigo que dizia “assuma daqui pra frente”, o que era o melhor para os dois. Terminado o baseado, Pedro chegou no líder dos malacos e jogou a ideia: tinha ligado, tinha combinado, e estava ali para fechar negócio. O outro reiterou as condições, Pedro só olhou para Cássio, que sacou do bolso da calça um maço de notas que já havia sido contado e recontado. Na verdade, Cássio queria que todos tivessem dado sua parte de antemão, mas não foi possível, então ele teve que usar o limite de sua conta para levantar a quantia, o que o deixava exposto, até porque não conhecia todo mundo que estava na fita.

O traficante deu o dinheiro a um dos subalternos para contar, abriu a gaveta inferior do armário e tirou um tijolo enorme de maconha. Entregou a Pedro, que ficou embasbacado: é sempre uma visão impactante. Da segunda gaveta, ele tirou uma balança digital, que pôs sobre uma tábua estendida entre dois cavaletes, que fazia as vezes de mesa, e sustentava o som portátil que insistia com a música de gueto à qual os marginais balançavam apenas as mãos apontadas para baixo. Pedro depositou a brenfa sobre o prato: novecentos e cinquenta. Cássio tirou a mochila das costas, pegou o tijolo nas mãos, examinou e teve uma ideia: “alguém tem uma tesoura?” Ela surgiu da mesma segunda gaveta, ele rasgou toda a fita adesiva que empacotava a droga e ficou mais tranquilo: não estava sendo enganado. O traficante ainda insistiu para que fumassem mais um, nisso Pedro se lembrou do mala que os ajudara a encontrar a bocada, e separou um naco, que pôs no bolso. Não vai dar, sabe, temos compromisso à tarde. Mais cumprimentos conforme o código local – mãos espalmadas e depois cerradas – para a despedida, e percorreram o mesmo corredor com o mesmo sentinela para sair. Você nunca esteve aqui, foi a recomendação final.

No caminho do ponto de ônibus estava o campo de futebol de terra batida em que haviam deixado o guia. Ele agora estava jogando, com um monte de trabalhadores que chegavam da jornada matutina de sábado. Cássio quis seguir adiante e estar longe da quebrada o quanto antes. Pedro sabia do valor da palavra naquele tipo de contexto, e puxou o colega pela mão para esperar, sentados em uma caixa de eletricidade na base de um poste, o vapor que os ajudara. Intranquilo, Cássio olhava em volta, e de repente sua espinha gelou ante a vista de um carro de polícia. Sem reação, cutucou o amigo com o cotovelo. Fica tranquilo, ouviu, nenhum movimento brusco. Os policiais desceram do carro e empunharam as armas; os jogadores se dividiram entre correr e erguer os braços, mas logo ficou claro que era justamente aquele que eles esperavam que os homens da lei buscavam. Ele parecia se render por um momento, mas de repente alcançou na bermuda uma arma e atingiu um dos policiais na perna. A correria então foi geral, e uma confusão de disparos teve qualquer desfecho que eles não acompanharam, em sua debandada rumo à saída do bairro. Estavam ainda ofegantes ao chegar ao ponto. Dentro do ônibus, depois de meia hora de angústia, trocaram um abraço apertado como nunca antes, e nem ligaram para olhares dos outros passageiros.

E esses dois outros caras, Pedro? Consegue a grana com eles ainda hoje. Relaxa, cara, eles estão desesperados para pôr a mão na marofa; e mesmo se não forem eles, você passa fácil a parte deles. Passar? Eu não sou traficante, porra, eu só quero cobrir o buraco na minha conta! O interfone tocou, era o Fábio, para quem eles haviam ligado do terminal central. Quando ele entrou pela porta, deu de cara com o metro bem em cima da mesa, sobre uma assadeira metálica. Havia ainda um enorme baseado pela metade, que foi prontamente aceso; Cássio escolheu um LP do Tim Maia e todos se esparramaram pelo sofá, celebrando o sucesso da arriscada empresa. Pedro iniciou a narrativa com uma minúcia talvez desnecessária.

Num restaurante do centro, Sílvio, o colega de apê careta, almoçava com um amigo que estava chegando da terra natal deles. Faziam planos de procurar um lugar para dividir e dar fim àquela situação insustentável. Não dá mais, sabe? Eu não gosto de interferir na vida de ninguém, mas todo dia quando eu chego tem quatro, cinco vagabundos fumando e falando bobagem, a sala fica fedendo, eu preciso estudar no quarto… Eu não tenho tempo para procurar imóvel, mas você pode fazer isso.

De volta no apartamento, perceberam que não tinham uma serra de pão, e foram bater no vizinho. A cara de terror da empregada ao ver Fábio com os olhos banhados em sangue fez rir aos três, a situação ficou assaz desconfortável, mas após consultar a patroa a senhora trouxe o utensílio. Estavam no processo de partir o tijolo em cinco, com muito cuidado para que ficassem iguais as partes, quando a porta se abriu e Sílvio entrou com o conterrâneo. Estabeleceu-se mais um embaraço; a expressão dele era de fato furibunda, e ele não se preocupou em cumprimentar a todos antes de se trancar no quarto.

Toda a tarde de sábado foi dedicada a fumar um depois do outro e ouvir metades de lados de discos. Fábio disse que tinha um conhecido que manjava de eletrônica, ia trazer ele para dar uma olhada na vitrola. O problema é mecânico, estúpido, Cássio irritou-se. De certa forma, já achava aquele defeito um charme. E estava tocando um da Alberta Hunter quando os dois elementos faltantes da negociação finalmente chegaram; ambos eram da matemática. Jogaram as notas sobre a mesa, mas ninguém guardou sua pedra, restando a mesma cena de antes, apenas com o volume dividido em cinco. Na verdade, ficavam brincando de empilhar os paralelepípedos ou construir diferentes formas.

A dado momento, os dois caretas saem do quarto e transpõem a porta da sala sem dizer nada. Atrás deles, deixaram um rastro de maledicência. Porra, se livra logo desse cara, incitava Pedro. Não é tão simples, Cássio desconversou. Não se passaram dez minutos até que a porta voltasse a se abrir. Todos estavam cozidos demais para se importar, apenas Cássio olhou, e teve um choque. Três policiais entraram com arma em punho; quando todos perceberam, ficaram petrificados em seus lugares. Ainda tiveram que ouvir insultos do síndico, que cruzou com eles quando desciam as escadas algemados. Cássio e Pedro, que não esconderam terem sido os responsáveis pelo corre, tiveram que cumprir seis meses; os demais prestaram serviços comunitários. Sílvio divide até hoje o mesmo apartamento com seu amigo.

Nos Canos

Teve sorte e foi o primeiro a retirar a bagagem da esteira no aeroporto de Amsterdã. De calça jeans e camisa preta sobre uma camiseta branca, ele pôs os óculos escuros quando saiu para fumar. Não era a primeira vez que Flávio ia à Meca dos pirados, mas desta vez era diferente: João Marcelo estava morando na Holanda. Os dois haviam estudado juntos na USP e mantinham contato dez anos já depois da formatura. Flávio arrastou a maleta para dentro e comprou a passagem do trem, que não demorou a passar; sentou-se e começou a ler, mas, exausto, cochilava, e acordou apenas na estação. João, que morava no interior, tinha um compromisso em Amsterdã e resolveu passar uns dias lá e encontrar o amigo, embora não visse mais muita graça naquela agitação. Trocaram mensagens e se encontraram em frente a uma banca. “Fala mermão, e essa barba?”,”Pois é, tudo tranquilo?”. “Tudo, e por aqui, muita loucura?”, “Sei lá, ultimamente estou mais tranquilo, você deve querer ir correndo pra um coffee-shop, não?”. “Estou cansado, quero um banho; como é esse esquema onde você tá ficando?”, “É um amigo, ele é de boa, disse que você pode pousar lá”. “É holandês ele?”, “Não, é sérvio; mas não se preocupe, ele fala inglês bem”. Flávio sabia bem de que tipo de amigo se tratava, mas evitava o assunto. “Dá pra ir à pé?”, “Claro, é aqui mesmo no Distrito da Luz Vermelha, olha ali a Igreja Velha; é um endereço que os holandeses evitam, o aluguel não é tão alto”.

Chegaram, o sérvio não estava. “Ele faz mestrado e trabalha, o louco, só volta tarde”, “Entendo. Cara, estou exausto, mas até que eu fumaria um antes do banho”. Era o que João já tinha em mente, e buscou no quarto uma lata redonda de onde extraiu um pacotinho daqueles com fecho onde se via uma pequena quantidade de camarões gordos, uma mescla de verde profundo e marrom claro coberta de cristais esbranquiçados, além da seda e de um dichavador metálico. Flávio ficou um tempo admirando as flores, cheirando-as, enquanto o outro preparava o petardo, com tabaco pois a maconha era muito forte, e os dois conversavam sobre os antigos colegas: quem encaretou, quem se perdeu no pó, quem casou ou teve filho. “Acende aí, sente o gosto com ele apagado antes”, ele o fez, elogiou o sabor, tomou uma longa bola e ao expeli-la, sentenciou: “Já estou louco”. Ambos riram, Flávio quis saber: “Qual é esse?”, “AK-47, é dos mais fortes”. Fumaram só até a metade, um foi para o chuveiro e o outro para o computador. Flávio sentia a água morna escorrer como se fosse uma sensação inédita, havia muito não se sentia tão chapado e com uma onda tão limpa e suave. “Isso sim é maconha, disse saindo do banheiro, no Brasil eles misturam merla, cara, você fuma e não fica tranquilo”, “Sério mesmo? Já escutei isso mas não pude acreditar”. “É verdade, cara, já acusou no meu exame”, “Por que você fez exame?”. “Foi no trabalho, cara, aquela história que eu contei”, “Ah, sim, mas ficou tudo bem?”. Flávio fez um gesto de enfado como quem diz “não quero falar sobre isso”.

João Marcelo preparou um jantar vegetariano, ambos comeram e em seguida fizeram a ponta de digestivo. Todo o tempo, as caixinhas do computador emitiam as dissonâncias e o radicalismo do jazz de vanguarda que João conseguira que o amigo apreciasse também. “Eu queria fazer alguma coisa diferente, sabe?”, “O que, drugs?”. “É, eu nunca fiz sálvia, nem amanita, nem… lembra quando você contou que pesquisou um processo para purificar herô?”, “Cara, eu prometi não fazer mais isso, mas se você quiser… o Miro faz de vez em quando. Sálvia e amanita é fácil, vende nas head-shops”. Flávio se levantou e foi até a janela, estava claro ainda, o relógio do micro dizia pouco mais de oito horas, ele aproveitou e arrumou o seu. “Quer fazer uma sálvia hoje à noite?”; João pensou, e fez um esgar que queria dizer menos “você é louco” do que “lá vou eu de novo”. Suspirou e passou a mão pelo cabelo pelo amigo sentado ao seu lado no sofá velho: “Quer ir lá então?”. Caminharam pelas ruas já repletas de tipos calculadamente estranhos, um passou correndo, gritando besteiras em português; “Brasileiro é foda”, concordaram os dois. Entraram em uma lojinha à beira do canal, uma porta de vitrais psicodélicos sob uma placa colorida dizendo “Use Sua Imaginação”. João observou: “O mais irônico é que se todos seguissem o conselho da placa talvez ele ficasse sem clientes”. “Você está ficando moralista, porra?”, “Sei lá, já não estou bem certo de que drogas estimulem a imaginação, a criatividade”. Enquanto falavam, aguardando a vez de serem atendidos, Flávio percorria as prateleiras fascinado: cogumelos embalados a vácuo, ervas das quais nunca ouvira falar, uma infinidade de acessórios para fumo… rodopiou sobre o calcanhar com um sorriso embasbacado. O vendedor, livre, os atendeu em bom espanhol, João fez a negociação. “Vamos levar amanita também?”, Flávio sussurrou, sem motivo aparente. “Amanita é meio sombrio cara, vai com calma”. O outro ficou meio decepcionado, escolheu uma seda e jogou no balcão. “Você gosta de plástico?”, “Não é plástico, é celulose, e eu gosto, queima devagar”. “Eu não me adaptei”, e ao funcionário, “um pacote de cat-nip também”. “O que é isso?”, “Erva de gato, eu costumava misturar no beque quando não estava fumando cigarro, deu saudade.

Chegaram de volta com a escuridão quase completa, e Miroslav estava em casa. A conversa passou para o inglês daí em diante. Após a apresentação protocolar, Miroslav virou a cadeira do computador, onde estava, enquanto os dois se estabeleceram no sofá. Os dois estranhos passaram um tempo falando sobre o que faziam, um contou de quando foi ao Brasil e o outro garantiu que queria muito conhecer Zagreb; o sérvio o corrigiu: Belgrado, e todos riram. Flávio comentou que gostava muito do Kusturica, o outro sorriu satisfeito, disse que gostava de música brasileira e começou a citar nomes. “Vamos fazer um no plástico, então?”, “Achei que você não gostasse”. “Não é que eu não fume, o Miro também gosta”. Flávio fez questão de comandar o processo, usando para a piteira o livrinho de papel-cartão que ganharam de brinde. “Miro, nós compramos sálvia”, “Mesmo? Cara, eu ainda tenho um relatório para preparar… não sei.”. “Dá ressaca no outro dia?”, “Pode dar dor de cabeça, mas é só”. “Me disseram que a onda é curta e intensa”, “Sim, são alguns minutos longe do planeta, depois passa”. “Mesmo assim, eu não teria concentração para trabalhar depois… foda-se então, vamos lá”. Flávio se levantou, bateu palma com palma com o novo e com o velho amigos. “Tem mais alguma coisa, Miro, diz pra ele, Flávio”, “Sim eu… pensei…”. “Fala, cara!”, “Em tomar nos canos”. O sérvio não entendeu a tradução literal e fez uma careta. “Herô, heroína endovenosa”, e passou a elencar algumas gírias em inglês que conhecia. Miroslav olhou para um e para o outro, coçou a cabeça. “Eu posso te ajudar, mas eu tenho medo de… de desenvolver um hábito disso. Você tem certeza de que quer entrar nessa?”, “É tranquilo, não se acha para vender no Brasil, é muito raro”. “Certo, eu vou tentar meus contatos”. “Bem, cabeção, quer chapar de sálvia, vamos lá, mais tarde a gente desce para umas cervejas”. Flávio esfregou as mãos entusiasmado e o amigo foi buscar o cachimbo.

Sentado no Sofá, Flávio segurava ansioso o cachimbo de vidro, João logo ao seu lado. Criou coragem e acendeu o isqueiro, dando uma boa tragada. João estava pronto para segurar o cachimbo, que ele abandonou ao colapsar e apagar por alguns segundos. A primeira coisa que sentiu foi um gosto ruim, depois sua cabeça turbilhonou e ele pareceu atravessar algum portal, sentiu uma nítida descontinuidade no tempo e no espaço. Ele se achava agora no que parecia ser outro planeta, em que tudo parecia ter cores vivas e formas psicodélicas; as pessoas eram como os humanos, exceto pelas cores da pele e do cabelo. Aos poucos foi ficando claro que ele estava no meio de uma movimentada metrópole, e ele decidiu pedir informações, embora não soubesse exatamente quais, a uma senhora que passava. Não soube em que língua falava, na verdade nem sentia ser ele mesmo. A senhora respondeu algo que ele entendia de alguma forma, mas não fazia nenhum sentido, e ele percebeu que se tratava na verdade uma das bruxas de Macbeth. As cores ficaram mais intensas, começaram a dançar e a se mesclar até evoluir para um branco completo. Flávio dormiu cerca de trinta segundos, tempo em que coube toda sua viagem, e acordou sobressaltado, levantando como se feito de molas. “Quem são vocês? Onde estou? Quem sou eu?” Os outros caíram na gargalhada, Flávio pareceu confuso por mais um minuto, até que foi recobrando sua experiência fora do mundo.

“E aí, foi bom?”, “Estou meio tentando entender, mas foi lindo”. Flávio tentou explicar o que viu, inventando detalhes. A essa altura, uma dose já estava pronta para João, ficando o amigo encarregado de aparar o cachimbo. Ele apagou por uns quinze segundos, acordou com um olhar perdido. “Você tá bem?”, “Cara, sim, é só que… a sálvia sempre faz isso comigo”. “Isso o que?”, “Não sei explicar”. Miroslav se aproximou, perguntou se estava tudo bem, foi com João até a cozinha para tomar um suco. Flávio estava assustado, a ideia toda tinha sido dele. Em pouco tempo João estava ótimo e fazendo um beque enquanto tranquilizava o amigo. “Não foi exatamente uma bad, foi mais uma trip estranha, e é muito frustrante não conseguir entender nada”. Fumaram ao som de Zappa e desceram os três pela escada, terminando a ponta. Os bares por perto eram muito caros, então eles caminharam até um supermercado; a cerveja não vinha muito gelada, mas saía mais em conta. Voltavam com os dois pacotes quando foram abordados por um sujeito magro de jeans e jaqueta preta. Era uma rua escura, ao longo de um canal. “Coca, ácido, herô?” Os amigos se entreolharam, depois olharam para Miroslav, que acabou inspecionando o produto e dando de ombros. “O risco é seu, eu tenho um canal de coisa boa, mas nada garante que eu consiga amanhã”. Flávio desembolsou trinta euros e sorriu ao guardar o saquinho com bolinhas amarronzadas, o traficante não sorriu de volta.

Tomaram uma cerveja assistindo televisão, um programa holandês que não podiam entender mas seguia sendo engraçado de tão absurdo, algo entre uma homenagem e uma paródia de todos os clichês do programa de auditório, Flávio contava sobre um programa brasileiro em que o apresentador jogava bacalhau para a plateia. A cerveja já estava bem gelada, puseram algumas em um saquinho e saíram caminhando até o Rembrandtpark, que não era tão perto, mas era bastante agradável e reservado. “João, como é esse processo de purificação? A gente precisa comprar alguma coisa?”, quem respondeu foi o Sérvio: “Fica tranquilo, eu tenho toda a vidraria e a maior parte dos reagentes. Acho que precisa comprar ácido clorídrico, apenas.” João então interveio: “Isso vende em farmácia, amanhã a gente compra. Se fizer o processo à tarde, à noite a gente, ou vocês, tomam nos canos”. “Você prometeu a quem nunca mais fazer?”, “A uma amiga, e a mim mesmo… essa é uma onda sombria, cara; ópio é muito mais doce”. “Nossa, é mesmo, foi uma experiência muito boa, onírica, leve. Eu só quero tomar uma dose mesmo, como você”. “Eu usei três vezes”. “E como foram?”, “É como… é como evaporar. É um atalho para os circuitos do prazer, é como se cada célula do seu corpo sentisse prazer”. Chegaram ao parque, abordaram certa árvore que já conheciam e a subiram. Lá em cima João apertou outro beque. “Amanhã eu vou comprar um tanto e ponho também”, “Relaxa, e cuidado pra sair daqui com alguma coisa”. “O controle está cada vez mais estrito”, interveio o sérvio. Terminaram de fumar falando sobre planos para o futuro próximo, concluíram que ninguém estava bem certo de nada. Flávio insistiu que João passasse no Rio quando fosse ao Brasil, o outro prometeu tentar. Abriram cada um mais uma cerveja e voltaram caminhando, indo direto deitar ao chegar ao apartamento, Flávio no sofá e os dois no quarto.

Acordaram com o sol mais ou menos quente, comeram o pouco pão e queijo que acharam, Miroslav, já há muito no trabalho, havia feito café. Fumaram cada um um cigarro, discutindo o dia: João tinha o tal compromisso na entidade que lhe conferia a bolsa, Flávio ia ao Museu Van Gogh, mas apenas depois de visitar um coffee-shop. “Por falar nisso…”, Flávio pediu autorização para fazer um fino. “Você compra o ácido clorídrico?”, “Poxa, fica bem fora do meu caminho. É perto dos museus, não quer passar lá?” Pesquisaram o endereço, que Flávio anotou. “E não se preocupe, todo mundo fala inglês”, “Eu já estive aqui”. Saíram cada um para um lado, Flávio com o mapa dos coffee-shops. Queria conhecer um novo, e não seria difícil, havia muitos na região; um nome lhe agradou: Stoner’s Extravaganza, entrou. A decoração era um misto de EUA dos 50 e OVNIs-futurismo. A trilha sonora estava muito boa, um jazz-rock com turntables, um barítono solava tonitruante. Ficou em frente ao balcão admirando os spacecakes e spacebrownies, logo em seguida foi cumprimentado pela atendente, que ofereceu o cardápio. Ele pediu uma água e se sentou, analisando as opções. O cardápio tinha várias alternativas; mais uma vez foram os nomes que o atraíram, especialmente dois: Ambrosia e Aurora Borealis, ambas 50-50 indica e sativa; acabou no entanto optando pela tradicional White Widow, que ele conhecia quase que de nome. Preparou um fino, com tabaco, e acendeu; era o primeiro do dia, então a sensação era bem mais intensa, e aquela onda era muito boa. Ficou alisando a fórmica da mesa, enfeitiçado. Não precisou fumar nem metade, guardou a baga no saquinho de tabaco, aproveitou para fazer um careta e sair fumando. Optou por ir caminhando até o museu, para viver mais a cidade. Antes de entrar, contornou o museu até um pequeno parque e deu mais umas bolas. Achou fantástico o museu, que deixara de visitar da outra vez. Faltava pouco para as quatro quando chegou embaixo do bloco de Miroslav. Esquecera-se do ácido.

Flávio subiu e encontrou os dois se beijando no sofá. Fingiu que aquilo não lhe importava e confessou logo seu lapso. “Putz,  que horas são?”, João – que não usava relógio – disse, em português mesmo. Seu parceiro pareceu entender e consultou o relógio: “quinze para as seis”. João foi até a minúscula área de serviço, ocupada plenamente por uma bicicleta do tipo speed, a qual ele trouxe para a sala. “Não tenho certeza se a farmácia fecha às seis ou às sete, mas eu vou correr. Já saindo pela porta, escutou de Miroslav: “você é um speedfreak agora”. Todos riram, era uma alusão à droga que combina pó e herô. Flávio voltou a se desculpar e os outros dois mandaram ele ficar tranquilo.

Sentaram-se no sofá novamente, o brasileiro levemente constrangido, mas a conversa começou a rolar sobre a música que rolava, do Velvet Underground. “É a trilha perfeita para ‘tomar nos canos'”, expressão que o sérvio também já entendia. Uma ponta no cinzeiro foi devidamente acesa, era o AK-47 da casa. “Então você faz mestrado e trabalha?”, “É, um tanto duro, mas eu perdi minha bolsa”. “O que houve?”, “Eu soquei meu antigo orientador”. Flávio escancarou a boca e o outro prosseguiu: “Um cuzão completo, vaidoso, intransigente, machista…”. “Mas aconteceu alguma coisa?”, “Claro, ele disse que ‘alguém como eu’ – aspas que ele fez com os dedos no ar – jamais teria um futuro em computação”. “Pois é, eu nem sabia sua área”, “Enfim, você entende o que ele quis dizer”, “Perfeitamente”. “Eu quase fui expulso, mas só perdi a bolsa e mudei para uma orientadora, e ela é adorável; além de ser, obviamente, alguém ‘sem futuro em computação’ na visão dele”. “O João então também é um intruso na matemática”, “Um intruso respeitado, ao que me parece, o último artigo dele já foi citado sem nem ser publicado”. “Ele é um crânio. E seu trabalho?”, “É num supermercado. Bem tranquilo, as pessoas são ótimas”. “Aqui dá pra viver com uma profissão dessas, no Brasil, é emprego de pobre”, “Imagino”. A trilha mudou para Led Zeppelin, o que animou Flávio. “Tem cerveja aí?”, “‘Opa’, pega uma aí, deve ter” – essa interjeição era uma muleta para João, o outro aprendeu rápido. “E você, o que faz no Brasil?”, “Cara, eu devo confessar que ainda estou na graduação, eu desisti de química, tentei geografia e vim me encontrar nas Letras, eu quero me dedicar a estudar Dostoiévski”, “Fascinante!”. “E eu trabalho também, pro governo, é uma chatice  mas a grana é boa, tem certas vantagens”. Flávio sacou seu saquinho de White Widow e confeccionou um fino, mas com bem pouco tabaco, o que permitia saborear melhor a planta proibida que era tolerada naquela terra. Passaram por diversos assuntos, como a visita ao museu, e criavam uma empatia cada vez maior enquanto aguardavam João Marcelo.

Amsterdã é célebre por ser amigável às bicicletas. Mas no horário em que João saiu, o tráfego era tão intenso que nem ele pôde desenvolver alguma velocidade nem pilotar tranquilamente: qualquer ciclista que saísse do rumo constante derrubaria uma dezena deles. Mesmo assim, às seis em ponto ele chegava à farmácia. Era a única que não exigia até certidão de batismo para vender certos produtos químicos, e só funcionava – como ele ficou aliviado em descobrir – até as sete da noite, ou do dia, no verão. A compra foi rápida, o frasco plástico foi para o bolso da bermuda e a bicicleta de volta para a ciclovia ainda movimentada. Quase chegando, quando João precisava sair da ciclovia e atravessar a rua para chegar ao conjunto de blocos de Miroslav, um engraçadinho achou por bem ultrapassá-lo pela direita, os dois foram ao chão e uma colisão em cadeia, verdadeiro engavetamento, fez até o fluxo de carros se interromper e olhos curiosos concentrarem-se no acidente. João se desvencilhou do emaranhado de rodas e guidons que o cobriam, levantou-se e descobriu que tivera escoriações leves apenas, mas que o frasco de ácido clorídrico havia se aberto, metade do conteúdo perdido. “É o bastante”, pensou, enquanto terminava o trajeto empurrando a bike imprestável. Subiu as escadas, deixou a speed no hall e entrou. Miroslav acariciava a orelha de Flávio, que levou um susto ao ver o amigo, enquanto o outro parecia não se importar. “O que houve?”, disseram os dois quase em uníssono. João Marcelo contou sobre o acidente, espumando de raiva, e pôs o frasco meio vazio ou meio cheio sobre a mesa de centro. “Fica tranquilo, John, toma um banho que eu vou montar a vidraria e começar o processo”, Miroslav apaziguava o amante.

Flávio olhava fascinado enquanto o sérvio misturava as bolinhas marrons do tamanho de cabeças de alfinete no ácido diluído, esmagando-as e mexendo até se dissolverem. Quando João saiu do banho, preparou um cone gigante: “eu preciso”. Quando terminaram de fumar, conversando sobre a batalha burocrática que João não pudera vencer  no compromisso da tarde, já era hora da segunda etapa: com uma pipeta, Miroslav transferiu a solução para outro vidro. “Tá vendo esse resíduo sólido? É sujeira que nego manda pra dentro”, João disse. O amigo eslavo adicionou então hidróxido de amônio à solução, deixando-a branca, acrescentando então etil-éter e chacoalhando vigorosamente. Era preciso esperar, então desceram para comprar mais cerveja e ver o movimento, estava terminando de anoitecer. “Cara, estou tão ansioso”, Flávio afirmava o óbvio: uma constante excitação e um sorriso bobo o denunciavam. Encontraram brasileiros no mercado, e ele não se conteve: “a gente vai tomar nos canos!”; a reação dos amigos foi de clara mas silenciosa desaprovação, os compatriotas só aconselharam cuidado. Voltaram, era hora de retirar a água e adicionar nova solução de ácido clorídrico, de mexer com vontade e, mais uma vez, esperar a decantação. João tirou o rock’n’roll da playlist (tocava The Who) e voltou ao jazz extremo. Isso deve ter distraído Miroslav, que esbarrou no béquer e quase põe tudo a perder. Refeitos do susto, Flávio pediu para participar da feitiçaria: teria que transferir com a pipeta o líquido do fundo do recipiente para uma placa de Petri, e não decepcionou. Descobriram então que além do ácido que João sofrera tanto para adquirir, faltava o fermento em pó, mas isso se resolveu em nova ida ao mercado, ao qual foram tranquilamente pitando mais um. Bem, não tão tranquilamente no caso de Flávio, cada vez mais nervoso. Chegaram de volta e só faltava realmente essa última etapa: o fermento fez a solução borbulhar, e um secador de cabelo eliminou a umidade, após o que restou apenas heroína e sal de cozinha. “A quantidade é um quarto do original, imagina injetar esse lixo todo”, observou Miroslav. Flávio esfregava as mãos.

Tudo estava pronto, então. Miroslav tinha apenas uma seringa e uma agulha, então combinaram que um tomaria o baque e o próximo teria que ferver tudo. Não era o ideal, mas era razoavelmente seguro. “É melhor que eu ajude o Flávio, injete a minha e aí o João…”, “Não sei, Miro. Eu prometi a uma amiga que não ia mais fazer isso. E eu acho que eu perco o controle muito fácil, melhor não”. Flávio então se sentou no sofá, trocou um olhar cúmplice e um sorriso com o amigo, que se aproximou e lhe acariciou os cabelos. Miroslav apareceu com a seringa e a agulha, mais uma colher e um isqueiro zippo, voltando para buscar algodão e um pouco de água. Abriu espaço na mesa de centro e se sentou, “John, pode buscar o garrote, na primeira gaveta do banheiro?”. Com cuidado, depositou uma pequena quantidade da heroína, que se parecia agora com um pó amarelado, sobre a colher, alcançou a pipeta e adicionou algumas gotas d´água. Acendeu o isqueiro com a mão esquerda e o deixou sobre a mesinha, ao seu lado, levando o fundo da colher ao fogo. A droga se dissolveu rapidamente, então ele pôs uma bola de algodão sobre a mistura e em seguida introduziu a agulha nela e puxou o êmbolo. “Esse algodão nem é necessário, porque nós já purificamos, mas é o costume”, “É uma cena clássica”, concordou Flávio, “também, eu devo ter visto Trainspotting umas dez vezes”. Os três riram e quebraram um pouco da tensão. João brincava com o tubo de borracha, e o entregou a Miroslav, que garroteou o braço do estreante. “Eu quero injetar eu mesmo!”, “Hum, sério? isso pode ser perigoso”, advertiu o amigo. João e Miroslav trocaram um olhar, e aquele tentou tranquilizar este com um meneio de cabeça. Então a seringa estava pronta, o braço, garroteado; Miroslav deu as instruções básicas, mas como a veia estava bem saliente, o trabalho foi fácil. Flávio penetrou apele lentamente com a agulha, parou, e puxou o êmbolo para trás com o dedão; o sangue fluiu para dentro da seringa, misturando-se com a solução de heroína. Ele ainda olhou para os outros dois, sorriu nervoso, e pressionou o êmbolo.

Bem devagar, enquanto sentia a substância rapidamente ser levada até seu cérebro, fazendo efeito em frações de segundo. A primeira coisa que sentiu, enquanto mal conseguia tirar a agulha de dentro da veia e descartar a seringa de lado, escorregando do sofá e espalhando-se pelo tapete da sala, foi um formigamento tomar conta de todo seu corpo: se uma lança o trespassasse, seria como se o fizesse a um corpo inerte, e separado do dele. Na verdade, o prazer era tão intenso, um prazer corporal, primitivo, que estivesse ele em qualquer circunstância, se estivesse em um barril de merda, ainda estaria se sentindo muito bem. Ele pensava coisas diversas de sua vida, mas a maior parte era rechaçada como desnecessária, se não nociva, naquele momento. Por um instante, um sentimento de culpa tentou dominá-lo, ele repetia: é só desta vez, não vende no Brasil, e toda a racionalização há muito aprendida. Mas foi um instante breve, e a maior parte do tempo ele teve uma onda límpida, intensamente corporal e, ao mesmo tempo, de algum modo transcendente. João se ria do espetáculo enquanto Miroslav fervia a seringa para tomar o baque por seu turno, quando Flávio começou a descer de órbita e perceber o ambiente a sua volta.

“Fez boa viagem?”. “Ah… eu… não, ótima. Grande viagem”. Flávio olhava para o furo no braço esquerdo: tinha feito, tinha tomado nos canos, e não ia se tornar um viciado, apenas uma boa experiência. Pensou então em fazer um cigarro, mas sua coordenação era ainda errática, e o amigo teve que fazê-lo. Por longos minutos ele permaneceu deitado no chão, mas João trouxe umas latinhas da geladeira e ele se sentou. Miro, um pouco mais experiente, com facilidade fez todos os procedimentos sozinho e injetou sua dose, um pouco maior, e ficou muitos minutos no sofá enquanto os brasileiros conversavam sobre cinema e, por algum motivo, sobre a crise política de algum país do Oriente Médio. Flávio não deixava de sorrir um instante. Quando João percebeu que Miro voltava do país das maravilhas, buscou seu estojo e confeccionou um do AK-47. Todos fumaram sentindo imensa paz, João talvez ainda mais do que os que usaram herô, não obstante seus contratempos com a burocracia e com o tráfego ciclístico.

O dia seguinte era aquele em que Flávio iria embora. Ele arrumou tudo ao acordar, seu trem era às três. João propôs almoçar em um restaurante perto da estação. Entraram, rumaram para um setor aberto, onde era possível fumar, pediram duas cervejas, e enrolaram seus cigarros. “Paris, então?”, “Poucos dias. Aí Lyon”. “Foi bom estar com você estes dias”, “Ora, eu que o digo. Não suma!”. “Eu só passo às vezes um tempo sem ler e-mail, mas…”, “Você sabe que eu eu te considero muito”. “Igualmente, Flávio, esteja certo”, “E avisa quando for ao Brasil”. A resposta do outro foi um aperto de mãos afetuoso. A comida chegou e foi regada a qualquer conversa amena, e a um bom vinho tinto; o café estava excelente. Pagaram a conta e rumaram para a estação de trem, faltavam vinte minutos para o horário. Ainda tomaram outro café antes de ir até a plataforma, onde esperaram pouco tempo, conversando sobre a crise europeia, até que o chamassem para embarcar. Os dois trocaram um forte abraço, beijos nas faces, e tapas nas costas. “Mantém contato!”, “Pode deixar!”. Flávio entrou no trem e procurou seu assento. João voltou para casa para ele mesmo arrumar as coisas, iria mais tarde para sua cidade prosseguir seus estudos. Flávio achou a poltrona e ligou os fones de ouvido tocando Bitches Brew do Miles. Ele até tentava evitar, mas pensava na possibilidade de simplesmente ter tentado dar um beijo no amigo. Mas isso era assunto controverso e ele logo achava outra coisa para pensar.

Fogos de Artifício

Estava sendo entediante para Igor, já no segundo dia, uma reunião de família em que as conversas eram quase sempre banais e os parentes quase todos reacionários. Ele lia à beira da piscina, e ainda teve de suportar gracinha de uma tia sobre seu peso, quando veio a notícia de que uma prima sua estava chegando para se juntar à parentada. Todos conhecem histórias de iniciações entre primos, mas dela ele só conseguira constrangimento, muitos anos antes quando eram moleques. Ele a cumprimentou, sem jeito por estar em traje de banho, e estendeu a mão ao namorado dela. “Igor, esse é o Ramon,” disse Tássia, já então uma morena linda. Ele era um tipo meio hippie, cabelos cacheados, e depois de alguma conversa se revelou um interlocutor interessante. Depois Tássia seguiu cumprimentando outros parentes e os dois prosseguiram, discutindo música, descobrindo que ambos tocavam um instrumento e gostavam de rock progressivo, e logo após estenderam-se sobre a vida universitária, surgindo inevitavelmente a pergunta, feita quase em uníssono: “você fuma?”. Obviamente, a resposta de ambos lados foi uma gargalhada que dizia “sim”. Igor tomou a iniciativa: “Eu trouxe um, vamos ali atrás daqui a pouco”. Ficou combinado, e Ramon foi reencontrar sua namorada. Igor não descansou, pôs-se ao trabalho. Era um prensado duro, resinoso, e dichavar o fumo demorava e deixava a mão melada, tanto que foi difícil apertar com a sedinha grudando nos dedos. Mas saiu-se bem. Vestiu uma roupa e pôs o baseado no maço de cigarros. Abriu uma cerveja e fingiu interessar-se por uma conversa ou outra, até que Ramon surgisse, estalando os dedos num gesto que diz “vamos adiante!”. Os dois não se esforçaram em ser discretos, e saíram pela frente da enorme casa até um pátio em que alguns carros estavam estacionados, e que ligava até a casa do caseiro; prosseguindo, chegava-se a uma colina coberta de pasto, no topo da qual havia uma árvore baixa e retorcida. Sob a árvore Igor tentava acender o beque sem sucesso, o isqueiro não funcionava. “Caramba, eu acabei de usar”; “É o vento”. Proteger com a camiseta ou chacoalhar o isqueiro, rodar ao contrário o acionador, nada resolveu, e era preciso voltar. Mas como no caminho havia várias postas de esterco, a segunda pergunta se ofereceu naturalmente, sobre tomar cogumelo. “Cara, é o tempo perfeito, verão, chove e faz sol, deve ter um monte aí pra cima”, provocou Ramon. Igor respondeu olhando em volta e detectando o primeiro. Estava meio ressecado, como se estivesse ali já há um tempo, sendo tostado ao sol dos últimos dias do ano. Mas era inconfundível, com seu chapéu amarelado, de topo marrom, a haste que fica azulada ao se quebrar. O anel em torno da haste já se rompera. Não era um cogumelo bonito, mas tinha um significado: significava que bastava procurar que outros lá estariam. Igor resolveu buscar o fogo e pediu que Ramon seguisse procurando. Ao lado da churrasqueira ele achou uma caixa de fósforos e voltou correndo com ela. Ramon já havia achado mais três. Isso já era o bastante para duas pessoas, sem dúvida, mas eles seguiram vasculhando o pasto enquanto fumavam e cada um achou mais dois. Era uma colheita espetacular, que voltou abrigada na camiseta de Igor até a sede do rancho. No caminho, faziam seus planos, de modo que enquanto o até pouco entediado gordinho metido a intelectual foi esconder seu tesouro do reino fungi, o músico aspirante, que tampouco esperava ser recebido daquela maneira, passou na casa do caseiro e pediu emprestada a sua esposa uma panela pequena de alumínio. Os dois trocavam sorrisos cúmplices enquanto conversavam mais um pouco com Tássia e aguardavam o almoço. Igor comeu pouco e logo após a refeição comunicou à família que iriam a uma cachoeira. Sua mãe recomendou juízo. Ramon se despediu de Tássia, que não se zangou, só pediu que não demorasse.

Cada um se sentou em uma pedra perto da água e fumaram quase em silêncio. O sol começava a descer sobre o morro do outro lado da estrada, mas o calor ainda era intenso. “E aí, bateu?”, “Nervoso”. “Rrrrrr”, “Vamo andar”. Havia uma trilha, mal marcada, em meio ao mato baixo, de uma terra pedregosa, que levava para baixo, certamente até o poço da terceira ponte, ali perto. Ramon queria andar, então Igor o seguiu, e os dois sentiam as pedras sob os pés conforme desciam. Era possível ouvir vozes, de criança, inclusive, e conforme descia Igor se sentia cada vez menos à vontade. Para ele era má ideia ver mais gente. Ramon estava expansivo: “Tá boa a água?”. Foi quando Igor viu a filha adolescente da família, deitada sobre uma pedra de biquíni. Era uma jovem linda e parecia cada vez mais interessada no intruso, que puxava conversa naturalmente, enquanto o pai já se mostrava incomodado. Igor, que se deteve um pouco atrás, pedia que voltassem, mas era ignorado. Até que o pai da moça chamou a esposa, que teve que deixar o banho para escutá-lo e, depois de uma breve discussão, forçar a moça a se vestir com uma desculpa esfarrapada. Para Ramon tudo estava tranquilo, e ele retomou o caminho de volta rindo. “Se esse cara tem uma arma, a gente tava fodido”; “Cara, que morena”; “Mas você tem uma morena linda te esperando!”, e assim subiram de volta até onde estavam pela trilha. Surgiu a ideia de tocar violão, e Ramon sacou-o do estojo, enquanto Igor improvisou uma percussão com as castanhas de uma árvore ali por perto, e os dois percorreram alguns clássicos do rock, de Led Zeppelin a Raul Seixas, inevitavelmente chegando ao Mestre Jonas, “dentro da baleia…”, que Ramon aprendia a tocar, num ponto alto da tarde psilocibística. Ramon pôs o instrumento de lado, nem conseguiu de fato guardá-lo, e se deitou sobre o chão, tentando dizer algo que não ficou claro. Igor fez o mesmo e ficou observando o progresso das nuvens conta um céu que já escurecia, viajando. Foi quando o alarme do carro disparou. Havia um mato alto entre os dois e o carro, e não era possível ver se era só um falso alarme, e no fim aquele barulho ia ficar incomodando. Então Ramon pediu a Igor que fosse desligar o alarme, porque parecia que a onda estava forte para ele naquele momento, e ele precisava entrar numa onda introspectiva. Igor percorreu os tantos passos até onde estava o carro com o controle na mão, e a cabeça por toda parte, seja na paisagem em redor, seja nos conteúdos psíquicos lá dentro, e não detectou perigo nenhum ao se aproximar do automóvel. Abriu a porta do passageiro, só para conferir se todas as janelas estavam fechadas, e deparou-se com a sacola de frutas. Fechou o carro novamente e voltou vasculhando o saco e tentando escolher a fruta que comeria. Escolheu uma mexerica, e à medida que ia jogando a casca de lado, ia enfiando a cara nos gomos suculentos, de modo que quando encontrou o companheiro já precisava lavar o rosto na água, antes de oferecer as frutas ao companheiro. Ramon tomou uma maçã e os dois se sentaram, à beira d’água, conversando. E não tardou para que Igor observasse: “Olha aquelas aranhas ali, como elas formam uma teia coletiva”. De fato, entre duas árvores, as aranhas haviam tecido uma teia em que uma meia dúzia delas se dispunham em um desenho impressionante, contra o sol poente; às vezes umas delas saía de seu posto para comer um inseto e voltava. Os dois só admiravam o espetáculo, até que a Igor ocorreu olhar o relógio.