República do Canabistão

Episódio 1

Quintal, churrasqueira. OGRO (o careta) prepara a carne. ESTELA (a hippie), SAGAZ (o bobo) e LÚCIA (a raisonneur) preparam e fumam um.

ESTELA. Sagaz, tem uma seda aí?

OGRO. Vocês já vão fumar isso de novo? Daqui a pouco a polícia aparece aí.

SAGAZ.[dá a seda]  A gente dá uma cervejinha pro guarda.

LÚCIA. Relaxa, Ogro, a guerra é aos pobres.

OGRO. Ah, quer dizer que você defende bandido?

SAGAZ. Ué, você vai ser advogado pra defender bandido, não?

ESTELA. Pô, gente, que vibe mais errada. Estamos vivendo a Era de Aquarius…

SAGAZ. Ainda bem que eu sou Peixes, então.

ESTELA. Caramba! Nunca tinha pensado nisso? Eu sou Leão, vou me afogar (risos). E vocês? De que signo são?

SAGAZ. O Ogro fumando tanto careta só pode ser Câncer. A Lúcia…

LÚCIA. [interrompendo] Na verdade, Ogro, a ideia é que com a legalização das drogas a figura do traficante deixaria de existir, e o comércio seria legal, em drogarias.

OGRO. Vocês querem vender DROGAS nas DROGARIAS? Como assim?!

SAGAZ. Não vende PÃO na PADARIA?

ESTELA. Vamos celebrar Shiva então, gente?

LÚCIA. Opa, é uso religioso então?

SAGAZ. O meu uso é medicinal.

ESTELA. Sério?!

SAGAZ. Foi a única coisa que curou minha caretice refratária.

LÚCIA. Você ainda deixa ele te enganar, Estela? Acende logo.

OGRO. A maconha é o primeiro degrau para as outras drogas.

SAGAZ. Isso é verdade. Eu guardo o pó em cima do armário e preciso usar um quilo de fumo como degrau para alcançar.

LÚCIA. Ogro, a maconha é a droga mais usada, de longe. Isso significa que a maior parte de seus adeptos não migraram para cocaína ou crack. A maconha é, na verdade, ótima porta de saída, ajudando no tratamento de viciados.

ESTELA. A maconha é o primeiro degrau para a iluminação!

OGRO. Maconha como tratamento, tá louco? A maconha mata neurônio.

SAGAZ. [mano] Aê mano, alguma coisa esse neurônio deve ter feito, também, tá ligado?

LÚCIA. Isso é uma fabricação, Ogro. O que mata mesmo é abusar da birita como você faz.

ESTELA. E a ressaca? Só a erva pra dar jeito…

OGRO. Se legalizar, vai aumentar o consumo.

SAGAZ. É simples, a gente aumenta a produção.

LÚCIA. Na verdade, Ogro, isso é improvável. Quem quer, hoje, já consegue. Se legalizar, talvez as pessoas tenham menos medo de experimentar, mas quantos vão adquirir o hábito é uma questão de predisposição individual. Os jovens da Holanda usam menos maconha do que a média europeia.

OGRO. Mas a maconha causa até esquizofrenia!

SAGAZ. Olha, eu sempre fumei pra ficar doido.

LÚCIA. A verdade, Ogro, é que quem tem o gene que predispõe à esquizofrenia pode ter a doença disparada pelo uso da cannabis, mas estamos falando de 1% da população.

ESTELA. Ai, gente, a maconha me ajuda muito a NÃO ficar louca!

OGRO. A maconha tira a motivação.

SAGAZ. Ué, maconha não é crime? Todo crime tem uma motivação.

LÚCIA. Outra invenção, Ogro. Há um bocado de gente dinâmica, produtiva e criativa que usa. Quando a pessoa abandona suas atividades, a explicação vai ser encontrada na psique, e não na substância.

ESTELA. Quem não tinha nenhuma motivação legítima eram os proibicionistas!

OGRO. Todo mundo sabe que a maconha causa alucinações.

SAGAZ. É verdade, eu acho que posso ver um asno na minha frente!

LÚCIA. Alucinações foi o que as campanhas de desinformação criaram, como essa noção equivocada. Sem comentários.

ESTELA. Gente, se maconha fosse alucinógeno, quem ia precisar de ácido ou cogumelos!

OGRO. A maconha causa perda de memória.

SAGAZ. Ou seja, não fumem perto do computador, isso danifica o disco rígido.

LÚCIA. Esse mito provavelmente se origina nos “brancos” que o maconheiro pode ter às vezes quando sob o efeito. Pesquisas mostram que não há dano permanente às funções cognitivas.

ESTELA. Eu devo admitir que não me lembro da última vez que passei um dia sem fumar.

OGRO. A maconha provoca taquicardia.

SAGAZ. Ih, tá acabando a munição…

LÚCIA. Um susto provoca taquicardia.

ESTELA. Ou um amor à primeira vista!

OGRO. [irritado] A maconha destrói a família!

SAGAZ. Pô, minha família destrói minha maconha sempre que eles encontram.

LÚCIA. Será a maconha ou a intolerância que destrói essas famílias?

ESTELA. Eu aposto 50 gramas que o álcool destrói muito mais famílias.

OGRO. Até parece que vocês não bebem.

LÚCIA. Bebemos. Mas não defendemos a proibição do álcool.

ESTELA. É proibido proibir!

LÚCIA. A divisão entre drogas legais e ilegais é arbitrária. Até adoçante faz mais mal que maconha.

OGRO. Ah, tá. Então por que iriam proibir?

SAGAZ. Pra ganhar dinheiro traficando?

LÚCIA. São basicamente três razões; a primeira o é controle social. No Brasil, a proibição sempre teve caráter racista, pois a planta veio com os negros africanos; nos Estados Unidos, era hábito tanto de negros quanto de mexicanos.

ESTELA. La Cucaracha… La Cucaracha… ya no puede caminar…

ESTELA e SAGAZ. Porque no tiene… Porque no tiene…

ESTELA, SAGAZ e LÚCIA. Marijuana que fumar.

OGRO. Olé!

LÚCIA. Não, sério, a segunda é comercial: a planta da maconha tem muitos usos industriais, de têxteis a combustíveis, e era conveniente para a indústria petroquímica, que introduzia fibras sintéticas na época, tirar a concorrência do caminho.

OGRO. Teoria da Conspiração?

SAGAZ. Conspiração contra a piração.

LÚCIA. Não, é sério. Esse cara, o Aslinger, foi quem proibiu a maconha lá com campanhas de mistificação, era ligado à DuPont. Eu te mando o link. Falam sobre o papel dos Rockefeller, também…

ESTELA. Teoria da Corrupção, isso sim.

LÚCIA. Só terminando, tem o problema do moralismo, é claro. Na nossa tradição, o prazer é condenável.

OGRO. Mas enquanto for proibido, é proibido. Vocês financiam a violência.

SAGAZ. Eu não financio não, eu pago à vista.

LÚCIA. Cara, o usuário é uma peça nessa engrenagem sem dúvida, mas por total falta de opção. Plantar pode dar muitos anos na cadeia, nossos jardineiros são verdadeiros heróis.

ESTELA. Todo maconheiro é um herói! Seja marginal, seja herói!

OGRO. Bah! Gente, acabou a cerveja. Vamos comprar mais?

SAGAZ. Vai financiar a Ambev?

LÚCIA. Eu parei.

ESTELA. Também.

OGRO. Só a saideira.

SAGAZ. Saideira é pra sair do bar, você já está em casa.

LÚCIA. Você vai de carro? Não faça isso! Ogro! Henrique!

ESTELA. O livre arbítrio é tão tolhido quanto abusado.

(corta)

área interna. telefone toca

ESTELA atende (música, não se ouve a conversa)

sua expressão indica espanto e então desespero

desliga

ESTELA [chorando]. Gente! O Henrique se acidentou.

SAGAZ.

LÚCIA. A culpa é minha.

SAGAZ. Claro que não, Lúcia. (abraçam-se)

ESTELA [chorando]. Está em estado grave, tomando morfina.

close em SAGAZ  que ergue uma sobrancelha

 

Episódio 2

Sala. OGRO na cadeira de rodas, MÃE DO OGRO (DONA TÊMIS), SAGAZ e LÚCIA.

MÃE. Meninos, meninas, muito obrigada, eu preciso ir. Cuidem dele. Desculpa filho, mas eu não posso perder esse congresso.

OGRO [com dificuldade, em toda cena]. Tô bem, mãe.

SAGAZ. Eu garanto que ele vai se comportar por um mês, dona Têmis. Pode deixar que eu busco o carro no conserto também. Quem não tem conserto é ele.

OGRO. Vai se foder.

MÃE. Rique!

LÚCIA. Espero que ele nunca mais pegue o carro bêbado, né?

entra ESTELA

ESTELA. Carro bêbado? Até o carro é viciado em álcool?

SAGAZ. Ih, bebe até gasolina.

MÃE desvanece. ESTELA a socorre.

LÚCIA. Que houve, dona Têmis?

MÃE [arfando]. Não é nada. Quando eu tomo Rivotril logo cedo me cai a pressão.

SAGAZ. Joga fora os comprimidos e adere à onda medicinal, dona.

LÚCIA. Não, Vítor, não é assim que…

OGRO [ansioso]. Cala a boca.

ESTELA. Não, gente, nós temos que falar abertamente, ué.

MÃE. É, o Henrique comentou alguma coisa… Eu nem acho errado, sabe…

SAGAZ. Errado é deixar de aproveitar essa planta fantástica!

LÚCIA. Isso é verdade, Têmis, além do uso por prazer, a planta também é matéria prima e um remédio muito eficiente e versátil, além de ser pouco tóxico.

MÃE. Mas maconha não é tóxico?

SAGAZ. Eu peguei um fumo aí que é um veneno.

ESTELA. Veneno é o que eles misturam na maconha.

LÚCIA. Exatamente. Se legalizar, poderemos controlar a qualidade. Tóxico é só um nome popular para as drogas ilícitas, mas elas são muito diferentes. O que é fato é que a maconha – e o LSD também – têm baixo grau de toxicidade. Ninguém morre por usar maconha, ou ácido.

MÃE. Ah, mas daí a liberar geral, é difícil, né?

SAGAZ. Geral já liberou, dona, você que não sabe.

ESTELA. Se quiser comprar, é mais fácil que pão.

LÚCIA. É o contrário, Têmis, queremos que o mercado tenha regras, e recolha imposto. Criança não poderá comprar, e hoje pode. E o mais importante é perceber que o combate às drogas tem feito muito mais mal do que as próprias drogas, especialmente a plantinha.

MÃE. Acho que tem que liberar só o remédio, aquele do Fantástico.

SAGAZ. Tipo liberar o suco de laranja e proibir a laranja?

ESTELA. O uso medicinal pegou carona com o recreativo e roubou o carro.

LÚCIA. Os avanços são graduais, Estela. Mas na minha visão é muito pouco mesmo legalizar só o CBD, porque reafirma a noção de que o uso recreativo é condenável.

SAGAZ. Recreativo, não, preventivo.

ESTELA. Ritualístico.

LÚCIA. Ou privativo. Eu acho que não temos que fingir, eu gosto de “recreativo”.

SAGAZ. Recreativo. Recreativo é jogar dominó. Eu levo isso mais a sério do que qualquer outra coisa, como é que é recreativo?

MÃE. Mas como é que vamos impedir que as pessoas fumem?

OGRO. Seu voo, mãe.

MÃE. Como?

OGRO. Seu voo.

MÃE. O papo tá bom, Rique. Eu tenho ainda tempo pra queimar.

SAGAZ. Por que a senhora não disse que queria queimar?

ESTELA. Vou bolar um.

OGRO. Não…

MÃE [rindo]. A piada é boa, mas eu não tenho coragem não.

LÚCIA. Então, Têmis, sobre sua pergunta, a primeira coisa a ter em mente é que apenas uma pequena parcela dos usuários de maconha faz uso problemático, ou seja, a maioria segue normalmente sua vida. Então não se trata de impedir o uso. Precisamos é evitar o abuso, o que não estamos fazendo com o álcool, aliás.

SAGAZ. Eu não abuso dela, sempre a tratei com todo respeito.

ESTELA. Você pode proibir o isqueiro, ou a seda, ou o oxigênio…

MÃE.  Não sei, gente, sempre ouvi que isso era perigoso.

SAGAZ. O único perigo é rodar, dona.

LÚCIA. Isso mesmo, o perigo está mais na sociedade do que na planta. Perigoso é frequentar biqueira. Os males que se atribuem à maconha são quase todos inventados, não têm base científica.

ESTELA. Seguro é beber e dirigir, né Ogro? Henrique, quer dizer.

OGRO. Humpf.

MÃE. Verdade, né? Hipocrisia pura. Dizem que é uma droga leve.

SAGAZ. Não é não, R$50 de maconha é muito mais pesado que R$50 de pó.

LÚCIA. É como eu disse, Têmis, a maconha tem baixa toxicidade e baixo poder de causar dependência. A abstinência de café é mais séria do que a de maconha!

ESTELA. Tem muito mais viciado em coca-cola do que maconheiro!

MÃE. Eu tomo dois litros todo dia.

OGRO. Mãe, vai perder…

MÃE. Calma filho. Eu vou experimentar.

OGRO. Mãe!

MÃE. Não, eu vou sim. Sempre tive colegas que fumam, eu achava o fim do mundo. Mas sabe o que? Um dia eu li o artigo de um deles e era simplesmente brilhante. Ora! Vocês têm razão.

OGRO. Que vergonha…

(ela fuma, tosse; aplausos)

SAGAZ. Bem vinda ao restante de sua vida!

ESTELA. Mandou bem, dona Têmis!

OGRO. O que o papai vai dizer!

LÚCIA. Olha lá o machismo… Você lembra quando ela disse que não tinha coragem? Aposto que tinha medo do marido conservador.

MÃE. Ah, o Arnaldo é linha dura mesmo. Militar, sabe?

SAGAZ. Filho de ogro, ogrinho é!

ESTELA. A sociedade é uma fábrica de ogrinhos.

MÃE. Não estou sentindo nada.

SAGAZ. Mentira, está sentindo a expectativa.

LÚCIA. É normal, às vezes a pessoa só vai sentir na terceira, quarta vez que fuma. Seu cérebro está se acostumando à ideia.

ESTELA. Volta de novo, dona Têmis.

MÃE. Eu vou sim, depois do congresso. Queria ficar ao lado dele, mas não posso.

SAGAZ. Fica tranquila que a gente vai espezinhar ele com muito carinho.

LÚCIA. Vai, lá, Têmis. Eu vou chamar o táxi.

OGRO. Mãe, não vai contar nada…

SAGAZ. Ela vai contar as horas para fumar de novo.

ESTELA. Deixa cada um decidir, Vítor, não força. É a cannabis que escolhe as pessoas, não o contrário. Somos os eleitos de Shiva.

SAGAZ. Então eu sou um sacerdote. Amém.

MÃE. Você é um barato, Vítor.

SAGAZ. O barato é louco, dona, e o processo é lento.

LÚCIA [entra]. Taí o táxi.

ESTELA. Isso é quase um hai cai.

MÃE [despedindo-se]. Bem, meninos… e meninas, vocês são todos um amor. Na volta conversamos mais. Cuidem bem desse moleque pra mim. [p/OGRO]E você, agora que passou o susto, vê se dá valor à vida.

OGRO. Já sei disso, mama.

SAGAZ. Não bateu nadinha?

MÃE. Não sei, estou um pouco… não sei.

ESTELA. Tenha uma ótima viagem, Têmis!

Saem todos, ESTELA empurra a cadeira.

corte

MÃE gargalhando dentro do taxi

TAXISTA. Pra Onde, senhora?

MÃE. Pra Saturno!

 

Episódio 3

Em frente à casa. OGRO na cadeira, SAGAZ, LÚCIA E ESTELA, recebem TÊMIS.

ESTELA. Olá, dona Têmis! Que saudade!

TÊMIS. Foi só uma semana! E não me chame de dona mais!

SAGAZ. É a dona dos nossos corações!

LÚCIA. Que pieguice, Sagaz, não parece você.

ESTELA. Deve ser porque é sincero.

TÊMIS abraça OGRO

TÊMIS. Como tá, filhão?

OGRO [fala normal]. Melhorando, mãe, fez boa viagem?

TÊMIS. Fiz, Rique. O congresso foi uma chatice, mas não podia faltar.

SAGAZ. É assim mesmo, a gente faz o que é obrigado e é proibido de fazer o que quer.

OGRO. Não vai começar, Sagaz!

ESTELA. E aí, bateu aquele dia?

TÊMIS [rindo]. Bateu? Eu fui até o aeroporto rindo e cheguei rindo em Vitória. Achavam que eu era louca.

SAGAZ. Estava louca.

LÚCIA. Mas foi bom?

TÊMIS. Foi ótimo! Ótimo! E a fome? Eu pedi três sanduíches no avião, a comissária dizia “nós vamos pousar”, eu disse que queria pouso e pasto. Ela não entendeu [risos].

LÚCIA. Foi muito irresponsável deixar você sozinha, ainda bem que deu tudo certo.

ESTELA. Vamos entrar?

entram. corte.

OGRO. O Betinho ligou mais cedo. Disse que a casa está uma zona sem você.

LÚCIA. O mundo é dos homens, mas a responsabilidade é das mulheres.

SAGAZ. Seu irmão não é milico também, porra? Tem empregada no quartel?

OGRO. Cuida da tua vida.

ESTELA. Posso bolar um?

SAGAZ. E precisa autorização agora? Licitação, publicar no Diário Oficial?

close em TÊMIS, sorrindo matreira.

TÊMIS. Estava esperando por isso.

SAGAZ. Não disse? Eu soube desde o início que o Ogro tinha escolhido os piores cromossomos.

OGRO. Não fala mal do meu pai, vagabundo.

SAGAZ. Vagabundo? Não fui eu quem bombou Cálculo I três vezes.

ESTELA. Meninos, chega. Cadê o dechavador?

LÚCIA. A seda tinha acabado, não?

SAGAZ. Não pode ser, a seda acabou? É só ir ao bar da esquina!

ESTELA. Eu só fumo em papel de arroz!

SAGAZ. Minha cara, eu já fumei papel de pão, de caderno, de bíblia, de sapato, de bala de coco, de fax, de extrato…

ESTELA. Tá bom, tá bom, sedanapo tá ótimo!

LÚCIA. Espera aí, gente, esta é uma ocasião especial, vamos bongar.

SAGAZ e ESTELA. Bongada! Bongada! Bongada!

LÚCIA sai.

OGRO. Mama…

TÊMIS. O que é bongar?

SAGAZ. Bong, Teminha…

OGRO. Teminha?!

SAGAZ. …é um tipo de cachimbo que permite dar uma megabola e ficar megachapado. Agradeça por ter professores assim.

OGRO. Mãe, me alcança um cigarro?

TÊMIS. Não consegue fumar sozinho? Como fez esses dias todos?

entra LÚCIA com o bong.

SAGAZ. Eu acendi muito careta pra esse careta. Ora lá está! Isso é um bong. Que pena que tenho aula. Me dá o primeiro pega que estou atrasado.

SAGAZ usa o bong, os demais fazem silêncio.

TÊMIS [ri]. Que loucura!

toca a campainha, LÚCIA vai atender.

LÚCIA. É o Bob.

Entra BOB.

BOB. Senhoras e senhores, que belo espetáculo! Vim só fazer uma ponta! Quem é essa coroa gostosa?

OGRO. É minha mãe, seu safado! Mais respeito!

SAGAZ. É impossível fazer uma ponta, Bob. Você faz o beque, aí ele vira uma ponta. Mas chega aí, estamos bongando. [passa para LÚCIA]

BOB. Desculpa, dona coroa gostosa, eu não sabia. Ô Sagaz, e aquele disco do Peter Tosh, hein? Toca ele aí!

LÚCIA [tossindo]. Vai perder a aula.

ESTELA. Esse filho da puta nem precisa ir às aulas, passa com notão.

SAGAZ. Já que vocês se importam tanto com minha vida, eu vou. Mas vou rodar o disco do Tosh antes.

LÚCIA passa para TÊMIS, e a instrui:

LÚCIA. Você tapa o buraco, acende, puxa, enche o tubo de fumaça, solta o dedo e aspira. Mas não enche demais da primeira vez, vai devagar.

BOB. A mãe do Ogro fuma?!

TÊMIS se atrapalha e tosse muito.

TÊMIS. Virge Maria santíssima! É forte! Meu corpo pesa uma tonelada!

TOSH [música]. Legalize it…

TOSH, SAGAZ e BOB. Don’t criticize it…

TÊMIS passa para ESTELA

OGRO. Se eu não estivesse preso aqui…

LÚCIA. Ia fazer o que, Ogro, mandar a gente pagar dez flexões?

OGRO. As vantagens da disciplina… constrói caráter.

SAGAZ. Você aí não pode fazer flexões, mas pelo menos a flexão verbal pode fazer!

ESTELA. Tá bem, Têmis?

TÊMIS [rindo]. Demais, filha! Essa música é muito boa! [levanta e tira ESTELA para dançar, desajeitada; todos riem]

TOSH e TÊMIS. Legalize it!

SAGAZ. Bom, eu tenho que ir mesmo. [despede-se de todos; ad lib; sai]

ESTELA passa para LÚCIA

LÚCIA. Não pense que a gente passa o dia todo fumando, nós temos nossos compromissos. Eu preciso trabalhar na dissertação. Depois da inspiração. [bonga, passa para BOB]

BOB. Louvado seja Jah, nas alturas onde eu quero estar, bendita é a flor da vossa planta, assim na terra como na areia da praia, amém. [bonga]

telefone toca; ESTELA corre para atender

ESTELA. Alô? (…) Sim, sim, ela acaba de chegar. (…) Ela, eh… tá meio ocupada, agora, tá… no chuveiro…

TÊMIS. É o Arnaldo? Passa pra mim! Pode passar.

TÊMIS [assume o telefone]. Fala, queriiiiiido!

ARNALDO [voice over] Meu tesouro, está tudo bem?

TÊMIS. Maravilha, Arnaldo. O Ogro está bem melhor.

ARNALDO. Quem?!!!

TÊMIS. O Rique, Naldo. O Henrique Vilanova Severo, seu filho.

ARNALDO. Você está estranha, Têmis.

TÊMIS. Estranho é você!

ARNALDO. Aconteceu alguma coisa?!!!

TÊMIS. Aconteceu, sim, eu… virei uma borboleta!

LÚCIA. Isso vai dar merda…

BOB. Pô, então, eu vou virar o disco.

ESTELA. Eu ainda tentei…

LÚCIA. Nós vimos, Estela.

OGRO [extremamente ansioso]. Agora não falta mais nada…

TÊMIS [tapando o bocal]. Falta sim, falta ele experimentar!

LÚCIA. Têmis, diz que precisa desligar.

ARNALDO. Estou muito preocupado, amor, não estou entendendo nada!

TÊMIS. Você nunca entendeu nada, passar bem. [desliga]

BOB. Olha, dona, com todo respeito, mandou muito bem, toca aqui.

OGRO. Bob, quando eu melhorar eu te quebro.

BOB. Que agressividade, bro, devia fazer como sua coroa gos… aqui, bonga aí, a gente ajuda.

OGRO. Bonga aí… eu sou um homem de caráter!

LÚCIA. Como quando você engravidou uma moça e a abandonou à própria sorte? Belo caráter.

ESTELA. Gente, tá ficando esquisito, não quero briga aqui nesta sala. Não quero essa ondas cerebrais carregadas invadindo meu corpo.

BOB. Gente, eu vou em boa hora. A paz de Jah fique com vocês. Ou a guerra dos cristãos, o que preferirem.

todos se despedem; ad lib

TÊMIS. Ué, eu não fiz nada. Só porque eu virei uma borboleta vou me incomodar com quem ainda é lagarta? Nunca!

LÚCIA. Então. Têmis, infelizmente que usa maconha tem que saber como lidar com uma sociedade careta. Ninguém aqui queria acabar com seu casamento, e…

OGRO. Nenhum casamento acabou. Mãe, explica tudo, inventa uma história. O papai não pode saber que você…

TÊMIS. Que eu fumei? Eu mal posso esperar para contar pra todo mundo: meus alunos, minha manicure… meu psiquiatra!

ESTELA. Cuidado com esse psiquiatra…

LÚCIA. Verdade, Têmis, médicos têm uma postura ideológica, e a maioria deles é conservadora. Acho que você deve dizer, mas é importante ter um médico com quem você pode ter um diálogo franco… quem sabe você não possa abrir mão do Rivotril? Esses caras patologizam até a primordial angústia humana.

TÊMIS. Angústia? Deixa isso pra outra hora, eu estou feliz!

ESTELA. No momento, você está chapada, felicidade é mais complicado.

TÊMIS. Eu estou feliz no meio de tantos jovens felizes. E é só maconha, ué. Vocês não usam outra droga.

LÚCIA. Não é bem assim, Têmis, a gente flerta com outras coisas às vezes. As drogas estão no mundo, cabe a cada um fazer um uso responsável. O Sagaz dá seus tiros, de vez em quando eu tomo um ácido ou um cogu…

TÊMIS. O que é cogu?

ESTELA. Cogumelo, Têmis. Psilocybe cubensis, cresce no esterco de vaca. É alucinógeno, ou enteógeno.

TÊMIS. Enteógeno?

ESTELA. Permite o acesso a outros níveis de consciência.

LÚCIA. É uma onda muito forte, mas é seguro. Enfim, voltando ao assunto: são várias as drogas, e o ideal é que todas sejam legalizadas eventualmente. Imagina que só a maconha seja legalizada, os traficantes vão fazer um [sinaliza aspas] “marketing” agressivo para vender as que ainda são ilegais.

TÊMIS. Mas você quer legalizar o crack? O crack cria zumbis.

OGRO. Tem que internar esses noias.

ESTELA. Tinha que internar você. Pelo menos eu não ia trocar fralda de ninguém.

LÚCIA. Veja bem, o crack é uma questão difícil. Primeiro, o problema de quem está na rua usando crack não é o crack, é estar na rua. O crack é sintoma. Tem gente em boa posição social que usa suas duas pedrinhas depois do trabalho e vai em frente. Outra coisa, o crack não deveria existir, ele existe porque o refino da cocaína está nas mãos do crime. Durante a lei seca nos Estados Unidos, as pessoas bebiam álcool com plastificantes, o chamado jake, que as levava à loucura e à morte. Ele sumiu com o fim da proibição.

TÊMIS. Ninguém nunca me disse isso! Bem galera, pintou uma fome…

ESTELA. Fome, não. Larica. Isso encerra a lição de hoje. Nós vamos preparar um frango ao vinho com risoto de cogumelo pra você.

TÊMIS. Cogumelos alucinógenos?

LÚCIA. Não, essa é uma lição avançada. É shitake mesmo.

 

Episódio 4

Quintal. TEMIS no chão, cantando; SAGAZ bola um beque; ESTELA e LÚCIA jogam xadrez.

SAGAZ. Criamos um monstro!

LÚCIA. Normal, Sagaz. As pessoas passam a vida represadas.

SAGAZ. Por isso eu tenho meu vertedouro.

ESTELA. Vertedouro? Isso é um Amazonas!

OGRO. Mãe, levanta daí…

TEMIS. Catch a fire…

SAGAZ. Opa, Tetê, agora!

close em OGRO contrariado

LÚCIA. Cheque-mate!

ESTELA. Eu nunca vou ganhar da Lúcia.

SAGAZ. Se for campeonato de riponguice…

OGRO. Mãe!

TEMIS. Diga, Rix!

OGRO. Rix?! Vem aqui, mãe!

TEMIS [levanta] Faaala, bebê!

OGRO sussurra. TEMIS gargalha e empurra a cadeira para dentro.

SAGAZ. Estela, dá uma olhada na fraldinha enquanto o bebê troca o fraldão.

LÚCIA. O que a gente faz com ela?

ESTELA. Nada. Espera ela ir embora.

LÚCIA. E quanto tempo ela vai ficar?

SAGAZ. Por mim ela ficava e o Ogro voltava para o Sargento Severo.

ESTELA. Quem é Sargento Severo?

LÚCIA. O pai dele, não ouviu ela dizer o nome completo do Ogro ao telefone?

SAGAZ. A patente é que eu inventei. Não deve ser mais que isso.

LÚCIA. Sei não, o Ogro tem grana.

SAGAZ. General Severo, então. Marechal Severo, torturador da ditadura!

Entram TEMIS e OGRO.

OGRO. Eu ouvi, Sagaz, tá anotado, viu?

TEMIS. Ih, o Arnaldo torturou sim, conta com o maior orgulho.

LÚCIA. Sério mesmo, Temis?

SAGAZ [sério]. Tem coisa mais séria?

ESTELA. atende o celular, conversa em off.

TEMIS. Eu não costumo falar sobre isso. Tenho colegas, amigos mesmo, que foram presos na época. Mas sabe como é, eu me casei muito nova… e militar sempre teve um encanto, não?

LÚCIA. Também não é todo militar que é torturador; é uma profissão muito digna… em vários aspectos.

ESTELA. Gente, a Gabi me chamou pra jogar basquete, alguém topa?

OGRO. Eu topo! [riso geral]

LÚCIA. Hoje, não, amiga.

SAGAZ. Eu vou ficar aqui com a Temitchka.

OGRO. Sagaz…

SAGAZ. Lisonja sua, senhor.

ESTELA. Então vou indo. [todos se despedem dela, ad lib]

OGRO. Mama, posso conversar com você? Em particular? [TEMIS empurra a cadeira para dentro]

LÚCIA. Que situação, Sagaz!

SAGAZ. Se a situação é ruim, a oposição é ainda pior.

LÚCIA. Fala sério agora: você está tentando comer a mãe do Ogro?

SAGAZ. Olha, acho que uma ogra não é exatamente um ser humano. Ninguém poderia me acusar de canibalismo, poderia?

LÚCIA. A Temis não é ogra, é uma criatura muito sensível.

SAGAZ. Mas seu coração é Severo!

LÚCIA. O safado tá mesmo gamado na…

SAGAZ. Claro que não, Lúcia, não seja boba; estou só torturando o Ogro.

LÚCIA. Igual o Marechal Severo?

SAGAZ. Igual não, pior. Eu não espero nenhuma confissão dele.

TEMIS e OGRO voltam, visivelmente tendo discutido.

TEMIS. Ai, gente, esse meu filho… É uma criança ainda. Como é difícil criar filhos! É muito complexo.

SAGAZ. De Édipo.

TEMIS. Vamos fumar?

LÚCIA. Que aluna aplicada!

SAGAZ. Vamos fumar, sim, e não será debalde! Quer dizer, vai ser de balde!

TEMIS. Balde?!

OGRO. E eu não tenho escolha, tenho que assistir tudo isso. Não posso nem ligar pro papai. Não é estranho que ele não ligou de novo, mãe?

TEMIS. Explica isso melhor, Sagaz.

OGRO. Ela nem me ouve mais.

SAGAZ. Vais aprender na prática, Temizzia, não precisa de nenhuma equação de hidráulica.

entram. LÚCIA empurra a cadeira, SAGAZ beija TEMIS sem que ninguém perceba.

corte. interno. LÚCIA, SAGAZ e TEMIS em volta do balde. OGRO tenta se manter alheio, ouve música.

TEMIS. Que maluquice é essa?

LÚCIA. É simples, Temis, um balde com água, uma garrafa cortada e a um buraco na tampinha. Beque no buraco, garrafa na água, enrosca a tampinha. Pegou? Agora, puxe a garrafa para cima… ela se enche de fumaça; você desenrosca a tampinha, mete a boca empurra a garrafa pra baixo. Presta atenção.

TEMIS [gargalhando] Deixa eu, deixa eu. [tenta fumar, se atrapalha, consegue eventualmente e tosse muito] Puta que pariu! [riso quase geral]

LÚCIA. Na verdade, isso a gente só faz de vez em quando. É meio extremo. Acho que não deve ser bom pro pulmão. Até o beque mesmo faz mal. A gente tá pensando em comprar um vaporizador.

TEMIS. Uai, eu tenho um vaporizador. Funciona que é uma beleza, limpa a cozinha…

SAGAZ. Tá virando uma piadista, né?

LÚCIA. Vaporizador é uma nova – nem tão nova – forma de usar a ganja. Sem queimar a erva, extraindo as substâncias com vapor quente. Elimina o risco de câncer. Se bem que tem pesquisas que indicam até que ela previne. Mas isso é controverso.

OGRO. Mãe! Mãe! MÃE!!!

TEMIS. Diga lá, Ogrinho.

OGRO. O papai não ligou de novo desde ontem, não é estranho? Eu quero falar com ele.

LÚCIA. Temis, isso é sério, ele deve estar preocupado.

TEMIS. Ele que ligue.

LÚCIA. Pois é, meu medo é que ele tenha justamente resolvido [toca a campainha] vir até aqui.

 

Episódio 5

LÚCIA atende à campainha .

SEVERO. Eu sou o pai do Henrique Severo.

LÚCIA. Ora, que coincidência, falávamos do senhor. Não quer se sentar? Eu vou buscá-lo.

SEVERO. Onde está a minha esposa?

LÚCIA. Está dormindo um pouco. Eu já volto [sai].

entra LÚCIA, empurra a cadeira

OGRO. Papai! Que surpresa!

SEVERO. Henrique, meu filho! Está tudo bem?

OGRO. Está sim, pai… por que não veio antes?

SEVERO. Você sabe que estou destacado, filho. É impossível.

OGRO. E como veio agora, então?

SEVERO. Eu obtive uma dispensa extraordinária. Onde está sua mãe?

entra TEMIS recomposta

TEMIS. O que você faz aqui, Arnaldo? Aconteceu alguma coisa?

SEVERO. No outro dia… pelo telefone… você estava alterada…

TEMIS. Era uma brincadeira, Arnaldo, um jogo que jogávamos. Eu tentei ligar novamente para explicar, mas seu telefone não funciona naquela selva onde você trabalha. Você despencou de lá até aqui por isso, mas não veio no acidente do Rique? Belo pai, seu Arnaldo.

entra SAGAZ

LÚCIA. Vamos sentar, gente. Aceitam água, café?

SAGAZ. Eu vou fazer o café. Nós sempre oferecemos droga às visitas.

SEVERO. Como?! Quem é você?

SAGAZ. Eu sou seu servo humilde, o Sagaz/ torço o verbo como outro não faz.

LÚCIA. Vai fazer o café, Sagaz. [sai SAGAZ]

SEVERO. Então está tudo bem, mesmo? Eu fiquei tão preocupado!

TEMIS. Devia ter ligado. Pelo menos agora você está aqui, com seu filho.

SEVERO. A vida de militar é sacrificada. [acha o bong]. O que é isto aqui?

LÚCIA. É um vaso de flores… precisamos de mais flores.

SEVERO cheira o bong

SEVERO. Isso aqui é para usar drogas!

OGRO. Pai, a mãe fumou maconha!

Quiproquó, SEVERO esgana TEMIS que esgana OGRO.

LÚCIA apazigua a todos, SEVERO prossegue

SEVERO. …exijo saber o que está se passando, não tolero…

LÚCIA. Calma lá um instante, Sr. Severo, este é meu quartel e não quero motins.

silêncio morto

TEMIS. E se você quer me controlar, você devia ao menos me comer de vez em quando…

OGRO. MÃE!!!

SEVERO. Contenha-se, Temis, ou eu…

TEMIS. Pois saiba que eu dei pro Clemente!

SEVERO. Logo pro Clemente!

LÚCIA. Vocês dois, acalmem-se. Assuntos pessoais mais tarde. Vamos discutir isso civilizadamente, se ainda der tempo. Permitam que eu conduza o diálogo.

TODOS aquiescem

LÚCIA. Sr. Severo, é verdade que todos aqui em casa, menos o seu filho, fumam maconha.

SEVERO. Eu vou chamar a polícia! [detêm-no]

SAGAZ [entra com o café]. De bandeja para o Marechal. Açúcar mascavo e tudo.

SEVERO. Não tem adoçante?

SAGAZ. Não, isso é cancerígeno, Marechal.
SEVERO. Eu sou o Major Arnaldo Severo do Exército Brasileiro, com muito orgulho!

SAGAZ. Ih, então não torturou ninguém.

SEVERO. O que você está dizendo, seu… seu…

SAGAZ. Seu o que, Marechal, preto ou viado?

LÚCIA olha furiosa para SAGAZ

OGRO. Ei, não fala assim com meu pai, moleque!

brigam todos, acalmam-se

SAGAZ. Major! Limpava as latrinas do quartel nos anos 70.

voltam a brigar, acalmam-se, sentam-se

SEVERO. A juventude não tem mais disciplina!

SAGAZ. O que? Eu estou matriculado em cinco!

LÚCIA. Sagaz, se você fosse sábio você ia lá no quintal fumar um…

SEVERO [levanta-se] Eu vou chamar a polícia! [desfalece]

TEMIS. Arnaldo, Arnaldo! É a glicemia dele! Ele precisa de açúcar. Eu fiz um bolo hoje cedo, está no forno. Corre lá, Sagaz, e busca pra mim. [p/ SEVERO] Está melhor, meu bem?

SEVERO. Um pouco, sim.
entra SAGAZ com o bolo

TEMIS. Aqui, come alguma coisa.

comem TEMIS e SEVERO

SEVERO. Hum… Está uma delícia. É com erva doce?

SAGAZ. Exatamente.

LÚCIA olha furiosa para TEMIS

SEVERO. Já estou melhor.

LÚCIA. Eu gostaria de falar com o senhor, Sr. Severo, que é militar. Quando uma campanha se mostra infrutífera, uma guerra obviamente não pode ser ganha, não é melhor abrir mão da ambição inicial e conseguir uma boa paz?

SEVERO. Certamente.

SAGAZ. Quando dá pra conseguir uma boa paz. A paz anda muito malhada por aí.

LÚCIA. O senhor não concorda que aqueles que vemos como inimigos poderiam simplesmente deixar de existir sem necessidade de violência?

SEVERO. Sem o prazer do combate? Não sei.

SAGAZ. Esse aí combateu no máximo a febre amarela.

LÚCIA. Agora me diga se faz sentido atirar no próprio pé para matar um mosquito e ele ainda escapar.

SEVERO. E o que significa tudo isso?

LÚCIA. Que a guerra às drogas não pode ser ganha. Que o melhor ataque ao tráfico é tirar-lhe a fonte de renda. Que o combate às drogas causa muito mais estrago do que aquilo que combate, ou tenta sem sucesso.

SEVERO. Você está falando de drogas! Drogas matam!

LÚCIA. Concordo, sr. Severo. Mas não esqueça que, segundo o Ministério da Saúde, 85% das mortes por uso de drogas entre 2006 e 2010 foram devidas ao álcool, e outros 11% ao tabaco. Maconha, sr. Severo? Zero? Nunca matou ninguém.

SAGAZ. Não é bem verdade. Cordas de cânhamo já enforcaram muita gente!

SEVERO. Mas não deixa de ser uma deturpação moral! Isso ameaça as fundações da civilização!

LÚCIA. O mesmo já foi dito sobre homossexualidade, promiscuidade, ateísmo…

SEVERO. Pois são todos ameaças a tudo que o homem já prezou como sagrado… vocês propõem a barbárie e isso é inadmissível! Eu vou chamar a polícia. [detêm-no] Estamos falando da lei! Da lei!
SAGAZ. A escravidão também já foi a lei.
LÚCIA. A lei pode ser questionada, Severo.
SEVERO. Vocês dão dinheiro para criminosos!
SAGAZ. Mas uma parte vai pra polícia, pros juízes…
LÚCIA. Isso mesmo, a proibição provoca uma corrupção gigantesca. E é uma desculpa para a polícia matar impunemente. É um verdadeiro extermínio o que acontece nos morros e periferias.

SEVERO. Só morrem os vagabundos.

LÚCIA [irritada]. Isso não é verdade, Severo. E mesmo que fossem, nosso país não tem pena de morte, não deveria ter execução sumária. A guerra às drogas é um álibi para matar impunemente. Jovens mortos com tiro na nuca são lavrados como “auto de resistência”.

SAGAZ. Traficante é tão diabólico que enfrenta a polícia até de costas.

TEMIS. Não tem nem uma pontinha aí?

SEVERO. Temis! Francamente…

LÚCIA. Severo, calma. E Têmis, sem provocações. Veja bem, não quero mudar sua visão moral do mundo, só estou tentando mostrar que o uso de drogas existe, quer queira quer não, a maconha é usada há cinco mil anos… O que digo é que criminalizar e militarizar uma questão de costumes é uma estratégia equivocada.

SEVERO. Quem é você para falar em estratégia? Eu estudei estratégia na Escola Superior de Guerra…

SAGAZ. E eu já joguei muito War.
LÚCIA. Pense na Lei Seca americana: as pessoas bebiam mais, as bebidas eram de má qualidade, o crime explodiu, a máfia se tornou um poder paralelo… depois a lei foi revogada. Estamos cometendo o mesmo erro.

SAGAZ. Erro é quando é sem querer…

LÚCIA. Imagine a quantidade de recursos do Estado que são gastos! Juízes, promotores, defensores, tudo isso por processos que não precisariam sequer existir, e às vezes vão até o Supremo por uma bagatela, um fininho…

SEVERO. Não quero ouvir discursos! As drogas devem ser combatidas, pois são ilegais!

LÚCIA. Não conheço a estratégia militar, sr. Severo. Mas eu estudo linguagem, retórica. Você usa sua tese como premissa. No fundo, o que o sr. disse não passa de tautologia.

SEVERO. Você é uma mocinha muito atrevida.

LÚCIO. Peço que o senhor me tenha mais respeito.

SEVERO. Mas e minha esposa? Vocês deram maconha para minha esposa!

SAGAZ. Ela pediu. E várias vezes, até.

TEMIS. Eu sou um indivíduo, Arnaldo.

SEVERO. Eu sei disso, amor. Mas nunca vi uma insubordinação assim…

OGRO. Alguém se lembra que eu estou aqui e estou todo quebrado?!

TEMIS. Eu não sou um subalterno seu, Arnaldo.

SEVERO. Mas você é minha esposa. E como você consentiu que o Henrique viesse parar aqui, Temis Severo?

TEMIS. Eu não fazia ideia de que eles fumavam, Arnaldo. Hoje eu agradeço aos céus.

SEVERO. Eu EXIJO que você venha comigo para casa, imediatamente!

TEMIS. Eu vou voltar pra casa quando o Rique estiver bom.

LÚCIA. O senhor está sendo muito machista.

OGRO. Lúcia, não se mete.

LÚCIA. Você dedurou a própria mãe!

OGRO. Lúcia, não se mete!

LÚCIA. Foi você quem meteu a gente nessa, já esqueceu?

OGRO. Eu já estou farto das suas lições de moral! Você não passa de uma vadia arrogante!

[discutem]

TEMIS. Arnaldo, escuta, eu ia te contar tudo um dia, mas que bom que veio então. Eu tenho muita coisa a dizer que nunca disse.

SEVERO. Mas Temis! Droga? Você? Aquela mocinha de Tambaú…

TEMIS. Eu não sou mais uma mocinha de Tambaú, Arnaldo, eu sou uma professora universitária.

SEVERO. Eu sabia que não devia ter deixado você trabalhar!

TÊMIS. Arnaldo, isso é inadmissível! Olha… não tem jeito, eu quero o divórcio.

SAGAZ. Esse aí já foi legalizado.

OGRO [interrompendo a discussão com LÚCIA]. Tá vendo!

SEVERO. Isso é uma afronta! Você! Não creio, Temis! São vinte anos!

TEMIS. Justamente, já chega. Eu preciso de espaço.

SEVERO a segura pelo braço e arrasta em direção à porta.
TEMIS. Me solta!

LÚCIA [percebendo]. Que é isso, você está violentando a Temis na minha casa!

OGRO. E a casa é sua?

entra ESTELA

ESTELA. Pessoal, o que está acontecendo? Dá pra ouvir os gritos da rua! Que vibe errada… Nós somos pelo fim da guerra e vocês estão se digladiando? O que houve?

[voltam a gritar todos juntos]

ESTELA. Calma, eu cheguei agora e vou tentar conciliar essa algazarra. Você, Ogro, qual é o problema?

OGRO. Vocês deram maconha pra minha mãe, meu pai descobriu e eles vão se separar. Além disso, a Lúcia acha que é melhor que todo mundo.

ESTELA. Lúcia, o que você tem a dizer?

LÚCIA. Eu estou tentando dar um fim racional a esta discussão. O Arnaldo…

SEVERO. Arnaldo?!

LÚCIA. …está sendo extremamente machista, e o filho dele me chamou de vadia.

ESTELA. Se você quiser ofender uma feminista, Ogro, escolha outra ofensa pelo menos. Sua mãe pediu pra fumar, seja mais maduro. Mas nunca pense que não gostamos de você. [p/LÚCIA] E você, Lúcia, às vezes gosta de controlar, mas tem toda razão em condenar o machismo. Você é a luz desta casa, e é muito querida.

SAGAZ. Eu adoro finais felizes…

ESTELA. O senhor, pai do Henrique, lamento conhecê-lo assim. Do que se queixa?

SEVERO. Minha esposa se insubordinou, usou entorpecente, e agora quer o divórcio. E esse moleque aqui não para de me atazanar.

ESTELA. Quanto a sua esposa, o senhor deve observar o “não julgue para não ser julgado”. Até porque o Ogro, ou Henrique no caso, revelou em uma de suas bebedeiras o problema do senhor com o jogo. Se ainda achá-la culpada, que exerça então o perdão.

SEVERO. Não vejo motivo para perdoá-la. Por que deveria?

ESTELA. O melhor do perdão é não ser forçado. É uma benção dupla, ao que perdoa e ao perdoado. E combina com a farda melhor que qualquer outra coisa.

SAGAZ. Uma meia arrastão combinava mais.

ESTELA. Você, Sagaz, pode ser muito inteligente, mas no fundo é um bobo.

SAGAZ. Melhor um bobo inteligente do que uma inteligência boba.

ESTELA. E você é cruel com as pessoas.

SAGAZ. Eu preciso ser cruel apenas para ser gentil.

ESTELA. A gente sabe, Sagaz. E te quer muito. Mas tem hora pra tudo, bróder! [p/TEMIS] Temis! Querida! Parece que te conheço há anos. Me diga suas queixas.

SAGAZ. Ninguém perguntou minhas queixas.

ESTELA. Perdão, amigo, quais são suas queixas?

SAGAZ. Bem, para começar… o rolo de papel higiênico nunca voltou a ter 40 metros…

ESTELA. Fala sério, Sagaz.

SAGAZ. Então, sério. Eu me queixo de que vocês não percebem que são ainda mais bobos que eu.

SEVERO ri, se recompõe

ESTELA. Temis, diga qual é o problema.

TEMIS. [rindo] Eu me casei muito jovem…

ESTELA. Não, o problema mais imediato. Hoje, agora.

TEMIS. [rindo] O Arnaldo veio até aqui me controlar, disse que eu não devia trabalhar, é um autoritário, um brocha, um…

ESTELA. Tudo bem. Temis, você sabe que ele é militar. Você precisa ganhar espaço na negociação, sem confronto. E, cá entre nós, seu comportamento esses dias não é normal. Você nem fumava até outro dia e quer acompanhar esses veteranos? Você está fumando para fugir da realidade, isso não é legal…

TEMIS. Vocês não fumam para fugir da realidade? [ri]

SAGAZ. Fumar é nossa realidade, donna.

SEVERO ri, se recompõe

LÚCIA. Não é não, Sagaz, todo mundo leva suas atividades a sério.

ESTELA. Então, Temis, peço que pense nisso. Está claro que a maconha foi uma válvula de escape para tensões psicológicas reprimidas. Procura ajuda, vocês dois juntos, inclusive. Você se casou com ele por algum motivo. Espere um pouco e se tiver que tomar essa decisão que seja em termos amigáveis. Aceitem minha sugestão: tem um hotel-fazenda aqui na cidade. Vocês dois ficam lá com o Ogrinho…

OGRO. Ninguém me respeita mesmo.

ESTELA. …até ele poder viajar de avião. Você curtiu, foi bom, mas precisa parar um pouco, juntar as pontas…

SAGAZ. Se juntar as pontas já dá um fino!

ESTELA. Aí vocês voltam pra casa e resolvem isso o melhor que puderem. Pensem quantas vezes já disseram eu te amo.

SAGAZ. Aí foi um pouco demais, não?

TEMIS. Eu nunca dei pro Clemente, Arnaldo.[ri]

SEVERO. E eu nunca brochei sem um bom motivo! [ri]
TEMIS. Me perdoa, então? Vai tentar me ouvir?
SEVERO. Com esse aparelhinho, eu ouço tudo! [ri]
LÚCIA. Desculpa, Henrique, eu me irritei…
OGRO. Eu não penso que você é vadia, Lúcia. Me escapou na hora…

ESTELA. Vamos todos fazer uma roda, dar as mãos. É sério. Todo mundo, vamos. Agora vamos fechar os olhos, respirar fundo.
SAGAZ. Alguém acenda um incenso.
ESTELA. Silêncio. Agora todo mundo imagina uma caixinha. Imaginaram? Agora vamos arrancar todo rancor que está em nós, lá no fundo, e vamos jogar dentro da caixinha. Nós vamos fechar  a caixinha, trancar a caixinha, e jogar essa caixinha bem longe! [gesto]

SAGAZ. Mais cuidado, é lixo contaminado!

SEVERO e TEMIS riem sem parar

SEVERO abraça e beija TEMIS

TODOS se abraçam

TEMIS. [comendo mais do bolo] Bem aventurados os confeiteiros da paz.

 

FIM.