Novelas

Chão

1

Atrasado para uma consulta médica, deparei-me com um semáforo amarelo. Eu estava um pouco longe, cheguei a acelerar, mas vi que era arriscado demais: havia fiscalização eletrônica. Maldisse a sorte, mas pensei que esses médicos sempre nos fazem esperar mesmo. Olhei instintivamente para o carro à direita, eu estava na faixa de fora; era um coroa gordo. Olhei pra fora da minha janela e tinha um sujeito vendendo pano de chão. Barba por fazer, cabelos grisalhos desgrenhados, uma camisa azul, que conhecera dias melhores, calça de moletom cinza, rasgada no joelho direito, e tênis de corrida que deviam ter dado a volta à terra. Passou por mim apregoando tantos por tanto, e recusei maquinalmente. Mas voltei a enquadrar seu rosto.

Impossível! Mas não podia haver dúvida. Ele já estava abordando o terceiro carro da fila, buzinei duas vezes, ele percebeu e veio correndo. Era ele. Eu sou bom fisionomista. Cinco anos antes, talvez seis ou no máximo sete, eu tive que esperar numa fila para trocar poucas palavras com ele, elogiar seu livro, e ter meu exemplar autografado. Sei de cor a dedicatória: “a um jovem escritor, perseverança no caminho das belas letras”, em letras de forma, com uma assinatura simples, um traço que subia, descia e voltava para o centro, como duas pás de uma hélice, representando remotamente uma letra L. Seu romance foi um sucesso, muito mais depois que foi adaptado para o cinema, mas eu já o conhecia anteriormente por seus volumes de contos. Tinha um estilo que eu, um humilde aspirante, como a ele confessei, tentava em vão imitar. Sabia usar a informalidade e mesmo a vulgaridade com muito bom gosto.

O livro e o filme lhe deviam ter rendido um bom dinheiro. Talvez por isso tenha demorado para voltar a publicar, mas confesso que nem cheguei a terminar seu último livro: era muito abaixo de seus padrões. De qualquer forma, quem iria esperar que sua decadência fosse tão completa que um admirador seu fosse eventualmente comprar dele panos de chão, em um semáforo qualquer do centro da cidade? Pois foi o que fiz. Não tive coragem de perguntar aquilo que já sabia. Mas perguntei a primeira coisa que veio à mente: você está sempre aqui? Quando ele começou a responder, o sinal já estava verde e o motorista atrás de mim já buzinava. Na hora do almoço e no fim da tarde, foi o que disse. Eram onze e quinze já, o médico ia encher meu saco, foda-se.

Antes de ir trabalhar, passei em casa para buscar meu almoço. Fui até a estante e achei o volume. Tinha pouco mais de trezentas páginas, a edição era bonita, com uma capa escura e acetinada. O nome estava lá, em letras vermelhas, e no frontispício a mensagem de encorajamento. Eu obviamente desisti logo de ter literatura como um ganha pão, aliás nem por diletantismo eu a praticava ultimamente: tornara-me um advogado medíocre que suava para pagar aluguel e prestação do carro; não fosse por minha esposa estava frito. No escritório, nas pausas que fazia lia alguma passagem ou outra. Que verve. A crítica na época o louvava como o Bukowski brasileiro, alguns viam tons machadianos, mas ele nunca foi um imitador, tinha um estilo único. Alterei meu trajeto na volta, aliás, não estava exatamente voltando, não a minha casa ao menos. Tive que encostar o carro, pouco antes do semáforo, para garantir que ficasse retido, liguei o pisca-alerta. Um idiota passou buzinando, vai à merda. No amarelo, arranquei, estava na faixa central e fiquei sendo o segundo da fila. Lá estava ele. Buzinei duas vezes, ele tinha uma expressão de curiosidade ao me reconhecer. Talvez tenha pensado que eu era homossexual e queria propor alguma coisa. Pronunciou um diga patrão seco, algo que soava forçado em sua boca. Eu peguei o livro no banco do passageiro e mostrei a ele.

2

Seu Carrasco!, eu gritava, enquanto ele se afastava, mas sem pressa. Desci do carro, ele me encarou. Você é da tevê? Não! Eu era… eu sou um admirador seu, olha aqui. E afastei a capa para mostrar a dedicatória. Vamos conversar? Ele me fitou desconfiado por uns instantes. O semáforo ficou verde, o motorista atrás de mim, depois outros, começaram a buzinar; gente estressada. Me paga um parmegiana. Claro, entra aí. Seu Carrasco, eu mal pude… Luís. Luís, eu mal pude, eu não acredito até agora… Rapazinho, se você me chamou pra me julgar, pode encostar aí que eu desço e janto sardinha de novo. De forma alguma, calma, eu só quero entender, ajudar no que possa. E se é pra me tratar com condescendência, vale o mesmo. Não, putz… faz assim: eu não vou perguntar nada, você diz o que quiser. E calado ele ficou, com o próprio livro entre as mãos. Até que percebi uma lágrima furtiva que ele enxugou com as costas da mão direita. E olha pra frente! Eu conto, depois que você pagar um uísque.

Deixei o carro num estacionamento privado, era uma região um tanto metida a besta, e tive que acenar desafiadoramente ante pelo menos um olhar de reprovação pela companhia “desqualificada”. Meu orçamento não me permitia comer ali com frequência, mas eu sabia do que Luís sentia falta, e aquele era o melhor parmegiana da cidade. Ele disse exatamente isso, sorrindo pela primeira vez. O maître foi outro a olhar com desdém. Eu pedi uma mesa reservada, ele atendeu contrariado. Dois uísques e duas águas com gás. Duplo, caubói. Dois duplos sem gelo, e duas águas. Sim, com gás. Ele folheava a esmo enquanto esperávamos. Parmegiana para dois. Esse livro, ele começou após a primeira golada, me esgotou. Me consumiu. Foram três anos por conta dele, quer dizer, reduzi minha atividade acadêmica a um mínimo, e nem isso levava muito a sério. Os alunos gostavam, sabiam que iam passar sem dificuldade. Bando de medíocres. Eu tirei férias para fazer pesquisa no Norte, acabou sendo um mês de putaria, o que é exatamente o que eu buscava. Mas aquele envolvimento, aquele entusiasmo, eu nunca mais terei. Então essa situação atual não é apenas pesquisa para a próxima obra?, arrisquei, apesar da promessa. Ele fez vibrar os lábios, sarcástico. Eu posso ser profissional, mas não tão profissional. Não, eu não sou mais escritor… eu não sei seu nome. Vinícius. Pois bem, Vinícius, o que você quer é saber como estou nesta merda. Vamos lá. Você não é jornalista, é? Saquei a carteira e mostrei a identidade de advogado.

Ele respirou fundo. Coito Interrompido foi um tremendo sucesso, como nem eu esperava. Eu me tornei praticamente uma celebridade. Depois do filme então, aí sim começou a entrar uma grana séria. Começaram as desavenças com minha mulher, que insistia para que aplicássemos, investíssemos em tal ou tal coisa. Mas o dinheiro vinha do meu trabalho, e eu sabia muito bem como empregá-lo. Rapidamente me acostumei a usar os serviços de acompanhantes mais caros, ao menos duas por semana. Descobri o jogo clandestino, que foi minha ruína eventualmente. Quanto mais experimentava estratégias para a roleta, quanto mais ganhava duas ou três rodadas seguidas, mais eu aumentava as apostas. Mas estou me apressando. Sinalizou o copo vazio e eu chamei o garçom, que atendeu com uma cara azeda. Não resisti. Saiba que este é um dos melhores escritores brasileiros da atualidade! Mas, meu senhor, eu não disse nada, com licença. Luís me olhou furioso. Não faça isso novamente, você está tentando me humilhar? Desculpa, não suporto esse tipo de… enfim, prossiga. Pois eu era uma celebridade literária, grande porcaria. Isso se refletia na universidade, minhas aulas eram concorridas, eu comecei a ficar arrogante, o velho clichê; mas aquelas jovens de repente se derretendo por mim, como eu ia resistir? Até que deu merda. Porra, ela parecia ter pelo menos vinte e três, não sei se pelo tamanho; era uma delícia de loira, e até que fazia comentários bem pertinentes, também não me tratava com uma veneração basbaque, tinha aquele sorriso sereno. Com essa eu comecei a me envolver, já fazia uns dois meses que a gente se via, quando a polícia me procurou em minha sala. Os pais dela eram evangélicos, ela supostamente também, e quando souberam que sua ovelha de dezessete anos, recém completos, tinha sido seduzida por um velho tarado (e eu reconheço ser um velho tarado), não tiveram dúvidas, e essa foi minha primeira confrontação com a lei. No fim eu só paguei umas cestas básicas, mas obviamente minha mulher ficou furiosa, e a custo me perdoou, e o departamento também não gostou nada. Deixei o processo administrativo correr à revelia, na verdade deixei tudo correr à revelia e não apareci mais lá. Nessa época eu já estava bebendo cada vez mais.

Sempre entrava uma graninha, o livro teve algum sucesso em quatro traduções, mas meu estilo de vida rapidamente consumia isso e eventualmente consumiu tudo, ou quase tudo, que havia acumulado. Eu escrevia cada vez menos, e a qualidade era obviamente inferior, eu mesmo percebia. Eu apenas me repetia, até que cansei de vez. A entrega que eu dedicara à literatura agora eu dedicava à devassidão. Eu me endividei, e passei a acreditar que publicando outro volume, ou acertando o 17 em cheio, tudo se resolveria. A editora achou que meu nome era ouro por si só e publicou um monte de bobagem, novas e antigas – refugo que com razão eu descartara. Eu li, atalhei, é mesmo lixo. Obrigado. Bem, eu comecei a receber ameaças, e resolvi andar armado. Um dia fui pego dirigindo bêbado e o trabuco no porta-luvas me rendeu uma confusão dessa vez bem mais séria com a polícia. Minha mulher teve que pedir ao pai dela a quantia da fiança, mas em mim mesmo ela perdeu de vez as esperanças. Ela tinha como pagar um bom advogado, eu mal podia pagar um parmegiana como este (que estava sendo servido) e o dinheiro que eu mantinha na conta conjunta para manter as aparências ficou todo para ela, assim como o apartamento. Eu disse que nessa situação ele mesmo podia requerer pensão. Ficou olhando pensativo. Chacoalhou a cabeça: não quero nada daquela megera. Vamos saborear este filé em paz, por enquanto. Obedeci.

3

Onde você está, seu mau caráter? Calma Soninha, eu esqueci de avisar, eu… um colega me convidou pra jantar, e… Que história é essa Vini, você detesta todos seus colegas. É, mas ia ter uma confraternização, ficava chato… ficava chato recusar, desculpa não ter ligado, volto daqui a pouco, tá, beijo. Ele me fizera prometer que não revelaria para absolutamente ninguém tê-lo encontrado. Ela vai me encher o saco.

Ele saboreou a única refeição decente em sabe-se lá quanto tempo, em silêncio. Respirou fundo, dr. Vinícius, o senhor tem um cigarro? Eu não fumo, mas pedi ao garçom um maço. Ele sacou uma caixa de fósforos e acendeu um cigarro. O garçom veio furioso lembrá-lo da proibição. Mas eu sempre venho a este restaurante e fumo! Meu senhor, então faz muito tempo que o senhor não vem aqui, e empinou ainda mais o nariz. Ele saiu restaurante afora com o cigarro aceso, suscitando protestos. Eu o segui. Ele fumava na entrada do restaurante, e isso também nada agradava ao maître, que abriu um portão lateral para que ele fumasse nos fundos. Entretanto nós paramos no corredor lateral, e janelas basculantes altas davam obviamente para o salão do restaurante.

Um filé desses só não é melhor que uma trepada. O álcool fez efeito em sua língua. Eu já comi muita mulher, sabe dr. Vinícius, eu pedi que dispensasse o título, que eu já sabia desde sempre ser sarcástico, já fodi muito. Já fodi jovem e velha, magra e gorda, já fodi loira e morena, ruiva e japonesa, já fodi namorada, puta, esposa, amiga. Uma vez, no Pará, jovem, eu conheci uma criatura fantástica: ela me fez gozar três vezes, sem intervalo. O amor de uma profissional tem às vezes essa intensidade, mas é só um divertimento perto de uma boa trepada com alguém que importa… Eu tive muitos amores, meu amigo, eu sou bom de cama, sabe, tenho um talento natural de convencer as mulheres… Ele ia se entusiasmando, e disse, quase gritando, uma frase que não reproduziria aqui. No instante seguinte o maître lá estava para nos expulsar. Eu nunca mais poderia frequentar aquele lugar.

Me dá um cigarro. O senhor não fuma. Só o fuzilei com o olhar e ele me deu. Fazia quase três anos, seu Carrasco. Não me olhe assim, eu te economizei uma grana. Sabe o que a gente vai fazer com essa grana, doutor? Estávamos entrando no carro. Vamos comer umas putas! Ah, de jeito nenhum, eu não posso gastar dinheiro com isso. Mas você já gastaria com o restaurante, de qualquer forma; vamos lá, você já está fodido com sua esposa mesmo. Fazia algum sentido. Com uma condição: você vai responder qualquer pergunta que eu fizer. Eu topo, chapa. Faz o seguinte, pega a perimetral.

Era um lugar horrível, a decoração tão brega quanto sempre, de terceira categoria. As moças eram feias pela maior parte, a caipirinha era caríssima e muito mal feita. Sentamos numa mesa perto do palco. Uma moreninha subiu para fazer strip. Então você diz que também escreve. Ah, muito mal, foi coisa de juventude. Você, parou de escrever? Ele não respondeu, fez sinal a uma falsa loura que lhe veio sentar no colo. Eu estava disposto a lembrá-lo do trato quando ele enunciou um não escrevo mais solene. Onde você mora? Moro em uma edícula sem janela atrás da casa de um padeiro. Você não recebe mais nada pelo Coito Interrompido? Meus credores ganharam meus direitos na justiça. Luís, você já ouviu falar na existência de advogados? Não importa, seu doutor (ele entendeu o pedido ao contrário), eu podendo comer como dá e comprar minha cachaça tá muito bom. Mas você não se esforça pra sair dessa situação? Você poderia ser professor, tradutor, um monte de coisas! É uma opção filosófica, filho. Antístenes. Só o cinismo salva. Porque qualquer convenção social é idiota demais pra ser levada a sério. Incluindo o sexo, e fez sinal a uma mulatinha, que veio render a falsa loura. Com ela ele trocou algumas palavras e em pouco tempo entravam para um quarto.

4

Ele me fez deixá-lo na estação de metrô, não quis revelar onde morava e não tinha telefone. Passei duas horas discutindo com minha esposa. De nada valia meu retrospecto de bom moço, e eu queria manter minha promessa. Ela também conhecia Coito Interrompido, pelo menos o filme, e era um terreno fértil para a semente do boato germinar. Ela insistia em que eu fora encontrar outra mulher, mas pareceu mesmo intrigada com o fato de eu chegar com um fardo de panos de chão, que ele esquecera no meu carro. Dormi exausto. Trabalhei dois dias sem que aquilo me saísse da cabeça. Imagine a quantidade de experiências inusitadas que Luís vivia em sua nova vida de ambulante depauperado. Se ele se dispusesse a narrá-las, com aquele estilo irônico, garanto que ia fazer sucesso, ia tirá-lo da pindaíba. Tinha certeza de que aquela conversa de opção filosófica era empulhação. O problema dele era o alcoolismo, e ele não parecia nem um pouco disposto a abandoná-lo.

Voltei ao cruzamento em que ele trabalhava, não o achei lá da primeira vez. No dia seguinte tive mais sorte. Disse que entrasse, que iríamos a um supermercado. Paga uma dose, doutor? Que escolha eu tinha? Depois de um boteco sujo dali das imediações, fomos às compras. Eu queria ajudá-lo, mas queria também saber onde morava, tinha certa desconfiança de que a história da edícula podia ser um edulcoramento de uma realidade ainda pior. Lembrei-lhe do nosso trato; por uma formalidade, a verdade é que já havia conquistando sua confiança. Perguntei, enquanto punha no carrinho um saco de arroz, há quanto tempo ele vendia panos. Ele disse que não cozinhava em casa. Na verdade, só tinha em mente a prateleira de bebidas. Eu escolhia algumas comidas enlatadas enquanto ele se abria aos poucos. Eu terminei de conquistá-lo com duas garrafas de conhaque.

Bem, com o divórcio eu fui ao chão. Eu já bebia bem, devo ter triplicado a quantidade e diminuído muito a qualidade. Todos os falsos amigos que eu granjeara no meu auge tiveram alguma desculpa pra não me receber provisoriamente, fui parar numa pensão perto da rodoviária. Aí eu dei em cima de uma moça que morava lá, feia, a coitada, mas eu estava bêbado o tempo todo. Enfim, eu fui expulso, e passei algum tempo debaixo de um viaduto. Os inquilinos originais não me acolheram, mas também não me expulsaram. Pedia restos em restaurantes e era escorraçado. Fumava bitucas que encontrava. Aquilo já era um pouco demais, e eu procurei minha ex-mulher, exigindo que ao menos minha máquina de escrever me entregasse. Estava quebrada, não valia quase nada, mas serviu para comprar algumas caixas de balas, que vendia, lá mesmo onde você me encontrou. Eu já comia um pão com manteiga todo dia, estava ótimo. Mas de repente apareceram umas crianças, com o pai delas ameaçando me furar com um canivete se eu não abandonasse aquele ponto. Ah, eu sempre fui bom de briga, doutor Vinícius: ele me fez isso aqui – e mostrou uma cicatriz no antebraço esquerdo – mas quebrei ele de porrada, e virei o rei do pedaço. Na verdade, em pouco tempo eu tinha meia dúzia de moleques trabalhando pra mim, e deu pra pegar outro quarto de pensão. Dessa vez fui eu que não aguentei, estava acostumado afinal com a vida na rua. Foi quando eu comecei com os panos, porque aquilo de vender bala era degradante, sabe? Eu tinha de impor respeito.

E que tipo de coisa inusitada você já viveu nessa vida… na rua?, provoquei. Estávamos pagando a conta. Muita coisa, meu rapaz, é uma vida cheia de interesse a seu modo. Uma vez, no cruzamento onde eu estava trabalhando, houve um engavetamento de três carros. Desceram, irritados, mas logo conseguiram conversar civilizadamente e acabaram descobrindo que um era meio-irmão de outro e o terceiro era primo distante dos dois. Vai calcular a probabilidade.Ou como o dia em que ouvi um carro buzinar, era um carrão, dentro estava um coroa com os olhos fechados, a película não era muito escura; achei estranho mas me aproximei, ele se assustou. Quando eu presto atenção, aparece uma jovem só de sutiã e o tiozão tá recolhendo a artilharia. Guardamos as compras no carro. Teve também a história de como eu fui parar lá onde estou morando, com o seu Fabrício. O padeiro. Ele comprou pano comigo um dia. Puxou assunto, conversamos brevemente, ele sorria bastante. Disse que ia passar ali no dia seguinte com alguns pães dormidos. Passou realmente, e com um sortimento de salgados e doces. Fez isso várias vezes. Ele gostava de conversar comigo, e um dia me questionou o fato de eu parecer ter uma formação intelectual incongruente com a posição social. Eu nem falava de nada intelectualizado, acho que ele se referia a meu português de escritor, que não consegui perder. Bem, eu me afeiçoara ao sujeito, a atenção de alguém nesses momentos, enfim… Eu revelei meu passado de escritor, pedindo segredo total, claro; ele até tinha ouvido falar no filme, prometeu que leria o livro. Aí passou a me trazer roupa velha, também. Eu sabia que ele estava só se livrando de coisas em que tinha que dar um fim, mas era um grande gesto, mesmo assim. Interrompeu a narrativa para dar algumas indicações do caminho, era um bairro afastado. Um dia, prosseguiu, ele me disse que tinha lido e tinha gostado muito do livro. Tinha uma pergunta a fazer: se eu não queria dar aulas de português a sua filha. A perspectiva de algum dinheiro de verdade me fez aceitar, embora não tivesse o menor jeito para ensinar gramática. Começaram as visitas semanais. Era uma mocinha de doze anos, estúpida como um jumento, percebi que não foi só um meio encontrado pelo seu Fabrício de me ajudar. Mas o que me interessou mesmo foi a mãe dela. Ela servia sempre um cafezinho, uns quitutes, uma quarentona com tudo em cima, seu doutor, e me olhava de um jeito! E eu, bem, fazia tempo que o máximo que eu comia era uma dessas craqueiras do centro, quando sobravam vinte mangos. Acontece que a mãe matriculou a filha na natação, no horário logo após as minhas aulas, e passamos a ficar com a casa para nós por algumas horas… o senhor imagina. Continua escutando: eles moram em uma casa com uma edícula minúscula, que estava alugada na época para um metalúrgico. A madama acusou o sumiço de uma joia, pôs a culpa no rapaz e o expulsou. Não sei se por si só, ou se instigado pela mulher, Fabrício me convidou para morar lá, por um aluguel bem camarada. E você está comendo a mulher do cara que te ajudou, interrompi. Mocinho, disse ele abaixando o volume do som, eu disse que se era pra me julgar que me deixasse quieto. Eu gosto de pensar que é uma forma de retribuir a ajuda, se bobear até ele pensa assim. Como? Eu acho que ele sabe. Suspirei, atônito. É aquela casa ali, vermelha.

5

Tomamos um corredor lateral e entramos em sua casa, que de fato era minúscula e sem janela. Era um cômodo só, com uma pia e um vaso, uma cama e uma estante com algumas peças de roupa, várias latas de sardinha e um garrafão, de pinga certamente. Flagrei também um exemplar de Quincas Borba, e perguntei o que fizera do resto de seus livros. Eu doei a uma biblioteca comunitária, esse aí é só pra hora das necessidades, um velho hábito. E o do jogo você teve que abandonar? Às vezes eu jogo dominó a dinheiro na praça tal, mas não é a mesma coisa. Bateram na porta. Ele abriu, era a dona Carmen, conforme ele me apresentou. Era mesmo uma coroa bem aceitável. Não, não estamos precisando de nada, obrigado. Ele me ofereceu da pinga, eu aceitei, mas era de péssima qualidade. Eu hesitei, mas tinha que entrar no assunto alguma hora: e a bebida, Luís, não será o que te impede de sair dessa condição? Ele me olhou furioso. Mas falou com franqueza. Eu me acostumei a esta vida, rapaz, não vejo muita saída. Eu não sirvo mais para escrever, era a única coisa… Por que não?! Interrompi o trabalho de acomodar as compras na prateleira. Tudo isso que você tem vivido é material perfeito para literatura! Eu não quero aparecer em público como alguém de quem as pessoas têm que sentir pena, ou mesmo um exemplo de superação, e ademais eu já estive lá, eu sei como esse meio é uma fogueira de vaidades… Mas todos são, Luís, você joga o jogo sem se deixar contaminar o quanto possa. Você acha que eu adoro meu escritório de advocacia? Bah, você faz parecer que viver na rua tem sido tão divertido que merece ser contado num livro. É uma vida dura, rapaz, um aprendizado. Eu não disse nada disso Luís… Ele me interrompeu, agora queria contar mesmo sem ser questionado.

Trabalhando nos semáforos você não tem banheiro, não tem água fresca, você não ganha um tostão quando chove o dia todo. Eu cansei de dormir faminto, e sujo, minha higiene por muito tempo foi com um caneco de água e um sabão em barra que eu tinha que fazer durar o máximo, só nas áreas mais vitais. Fora o frio: quando eu fiquei embaixo do viaduto, por sorte era verão, mas ainda assim algumas noites eram geladas. Eu já tinha vendido minhas roupas melhores, e me virava só com um conjunto de moletom distribuído por uma organização de caridade, este aqui aliás, e mostrou a calça rasgada. O papelão não estava resolvendo muito, aí eu encontrei nos fundos de um supermercado o motor da câmara frigorífica, e aninhado ali eu conseguia dormir. No terceiro dia me acharam e me acordaram com um balde de água gelada. Era frequente também que me roubassem a mercadoria, por mais que eu tentasse escondê-la; experimentei usar os panos como colchão, mas eles ficavam contaminados da minha sujeira, imprestáveis. Isso tudo sem contar o desprezo com que você é tratado o tempo todo; hoje eu já não ligo, mas… Não, Vinícius, eu não quero aparecer e contar que passei por isso.

Algum orgulho ainda lhe restava então, e isso era bom. E isso não enriquece ainda mais o relato? Aliás, você pode simplesmente dizer que fez tudo como pesquisa para o livro, vão admirar sua coragem. Ele pensou um pouco. Eu não quero mais escrever sobre mim mesmo, Coito Interrompido me esgotou, eu já disse. Faz o seguinte: escreve você, Vinícius, disse, dando uma palmadinha em minha perna. Eu assino, te dou uma porcentagem. Eu fiz um gesto de exasperação: eu não sei escrever como você, Luís, não tenho seu estilo, não tenho seu talento! Eu confio em você, você escreve, eu dou algumas sugestões. Não aceitei uma segunda dose. Era já de noite, e ouvimos o barulho do portão lá fora. Seu Fabrício, ele explicou. Conversamos um pouco sobre como é comum o recurso ao famoso escritor fantasma; fomos interrompidos por alguma altercação dentro da casa, mas não demos muita importância.

A ideia começava a me agradar, era um desafio: a mim mesmo, já desiludido do ofício da escrita, e à obstinação dele em aceitar sua condição aviltante. Luís, olha, pode funcionar sim. Mas eu não quero uma porcentagem, em quero outra coisa… Bateram à porta. Era o seu Fabrício, Luís nos apresentou brevemente. Eu percebi que ele mantinha uma mão para trás, e que no bolso de sua calça havia um volume. Seu Luís, eu queria te perguntar: isso aqui – e revelou, na mão que escondia, uma cueca – já foi meu, eu me lembro quando levei pra você; como foi parar no meu quarto? Ora, seu Fabiano, deve ter sido algum equívoco da Carmen e… Equívoco? Equívoco foi tentar ajudar você seu vagabundo! Ela já confessou tudo – e sacava um revólver enquanto proferia outros insultos. Eu pulei da cama onde estava sentado e me interpus entre os dois, tive que segurar o braço direito do padeiro, que lutava para se livrar. Luís deu um safanão em nós dois que nos levou ao chão, e aproveitou para escapar pelo corredor. Eu desarmei meu adversário e segui meu antigo ídolo e recente amigo, jogando o revólver por cima do muro.

Quando apareci em casa com um ambulante maltrapilho, ele mesmo não objetou a que eu finalmente contasse tudo a minha esposa. Ela achou a história fantástica, assim como a ideia do livro. Foi ela mesma quem convenceu o pai a pagar pela clínica de reabilitação, que era a parte no trato que Luís teria que cumprir, a única retribuição que eu exigia pelo meu trabalho, que no fim foi um prazer. Nos trinta dias em que esteve internado, eu o visitava duas vezes por semana, com um gravador. Ele mesmo, para passar o tempo lá dentro, começou a redigir contos, no papel mesmo; eu li e achei ótimos: outro estilo, a mesma elegância. Também fiz as vezes de seu advogado, recuperei os direitos de todos seus livros e arranquei uma pensão da esposa. Quando tudo isso saiu, ele deixou o sofá da nossa sala, para uma quitinete que ele já podia pagar por si mesmo – um adiantamento da editora foi também providencial. Nossos encontros continuavam, ele não pedia para alterar muito, acabavam sendo conversas animadas, regadas apenas a chá. O livro ficou pronto, foi publicado e fez sucesso imediato. Ele deu entrevistas, aceitou minha ideia de alegar que a mendicância foi só um laboratório. Depois de algum tempo, os mesmos produtores de Coito Interrompido propuseram filmar Chão Por Leito, mas queriam mudar o título. Luís Carrasco voltou a ter uma vida materialmente confortável, voltou a comer muitas mulheres, só não bebia nem jogava. O material que ele produzia enquanto eu me passava por ele também foi publicado mais adiante, na mesma época em que meu próprio volume de contos foi parar nas prateleiras com um prefácio dele.

Não consta, senhor

1

Ele se sen­tia des­con­for­tá­vel naquele ambi­ente. Uma enorme sala de espera com gente de todo jeito, algu­mas cri­an­ças fazendo alga­zarra, e um calor medo­nho. Um único ven­ti­la­dor girava no teto, mofando de todos. Do lado direito um tele­vi­sor dis­traía a mai­o­ria — a ele só inco­mo­dava — e no esquerdo havia um pai­nel ele­trô­nico que indi­cava as senhas cha­ma­das. Entre os dois, uma dúzia de pos­tos de aten­di­mento com um fun­ci­o­ná­rio de má von­tade e um ter­mi­nal de com­pu­ta­dor. Tal­vez fos­sem eles a pro­vo­car nele um mal-estar; não sua exis­tên­cia física ali, já que eram quase oni­pre­sen­tes, mas o fato de que estava ali jus­ta­mente para pres­tar con­tas àquele por­ten­toso sis­tema que nada o agradava.

Sua senha apa­re­ceu no visor, que o dire­ci­o­nava para a posi­ção sete. Cui­da­do­sa­mente colo­cou o mar­ca­dor na página que lia — deu-se um tempo para con­cluir o pará­grafo —, fechou o livro e com um sus­piro ergueu-se, cami­nhando até a cadeira de plás­tico azul, enquanto um rapaz magrelo do outro lado do bal­cão de fór­mica cinza já tocava pela ter­ceira vez aquela cam­pai­nha ele­trô­nica irritante.

— Calma! — aborreceu-se ele.

— São tem­pos rápi­dos, senhor. (essa era a frase feita da moda, come­çara com uma publi­ci­dade de com­pu­ta­do­res, acho)

— E, no entanto, vocês não pare­cem estar che­gando a lugar algum — permitiu-se uma de suas tira­das ácidas enquanto se aco­mo­dava na cadeira.

O rapaz não quis saber de sua pre­sença de espírito:

— O que o traz aqui, senhor?

Ele pen­sou que irri­tar ainda mais o menino com uma bla­gue cir­cense do tipo “o ônibus me trouxe” não seria boa ideia — com toda razão.

— Olha, eu não quero nada de vocês — pre­fe­ri­ria não estar aqui —, mas um fun­ci­o­ná­rio de vocês esteve em casa me entre­gou este docu­mento… aqui (tirando-o do bolso), que me ame­a­çava de dana­ção eterna se eu não comparecesse.

O fun­ci­o­ná­rio ergueu a sobran­ce­lha esquerda e ence­tou um meio-sorriso, mais que ama­relo, em res­posta à iro­nia, estava mais pre­o­cu­pado (e sin­ce­ra­mente curi­oso) em ver de que docu­mento se tra­tava. Sua pri­meira obser­va­ção foi:

— Mas não há nome nenhum aqui!

— Per­fei­ta­mente, está ende­re­çado ao “Residente”.

— Aqui diz ape­nas que o senhor pre­cisa com­pa­re­cer a um posto do DCCC para regu­la­ri­za­ção do fornecimento de água. Isso é muito simples.

— Espero que seja, eu pre­ciso regar as rosas ainda pela manhã.

— Tudo bem, senhor, vou con­sul­tar seu arquivo. Seu docu­mento, por favor.

— Pois não (tira do bolso um papel com a plas­ti­fi­ca­ção se desfazendo).

O rapa­zola assustou-se e quase que gritou:

— É sem chip!

Alguns fun­ci­o­ná­rios sus­pen­de­ram o que faziam para olhar, che­ga­ram mesmo perto para con­fe­rir aquela aberração.

— Sem chip, amigo, eu sou do século passado.

— Mas é obri­ga­tó­rio! Desde… ora, há muito tempo!

— Dez anos apenas.

— Então o senhor sabe.

— Sei.

— E não regu­la­ri­zou sua situação?

— A mim não faz falta…

— Tudo bem, vou fazer uma busca. Seu nome com­pleto, por favor.

— Afonso Affonso Afonso.

— Isso é sério ou é piada, senhor?

— Aqui meu docu­mento, pombas!

— Tudo bem, tudo bem…

— O Affonso do meio é com dois efes.

Após alguns instantes…

— Senhor, seu nome não consta no sis­tema, como pode?

— Você que me diga. Você quer dizer então que eu não existo?

— Hum… boa per­gunta. O sis­tema diz que não… no entanto eu estou te vendo na minha frente.

— Eu podia ser um holograma.

— Vou cha­mar meu supe­rior, senhor.

2

Afonso ergueu os olhos e deu com o ven­ti­la­dor galho­feiro; sus­pi­rou pro­funda, len­ta­mente. Não podia dizer que não vinha pronto para abor­re­ci­men­tos. Mais que isso, pare­cia que ali esta­vam dis­pos­tos a des­truir a vida pela qual ele optara.

Como ele disse, nas­cera no século pas­sado, e vivera uma época de uma tran­si­ção tec­no­ló­gica muito intensa, à qual não opôs muita resis­tên­cia de iní­cio: tinha ende­reço ele­trô­nico e tudo. Mas, a par­tir de deter­mi­nado momento, pareceu-lhe que tudo ia ficando subor­di­nado à ele­trô­nica, aos sis­te­mas e seus inú­me­ros ter­mi­nais: uma fic­ção cien­tí­fica e dis­tó­pica ia se mate­ri­a­li­zando. Ele mesmo era um empre­gado do governo e as roti­nas ciber­né­ti­cas já toma­vam pelo menos um terço de seu dia. Foi-se abor­re­cendo cada vez mais, até que ven­deu o pouco que seu pai dei­xara (menos o nome excên­trico) e arran­jou um case­bre na saída da cidade, pas­sando a se dedi­car ape­nas ao que cos­tu­mava ser um hobby: a pin­tura, além — é claro — de suas rosas. Foi-se des­li­gando da para­fer­ná­lia: não tirou iden­ti­dade com chip, e quando o governo con­cluiu o sis­tema inte­grado de cadas­tro civil — que regia tudo — des­co­briu um dia que não podia abrir conta no banco, pois ele sim­ples­mente “não cons­tava”. Achou ótimo e seguiu pin­tando e cui­dando de rosas, o mar­chand que lhe com­prava as telas fazia-lhe tam­bém as com­pras e ele não mexia com dinheiro. Diga­mos que era um jovem senhor tão excên­trico quanto o pró­prio nome.

De repente chega o tal supe­rior, que em vez do colete azul à caixa de fast-food por­tava uma camisa lis­trada empa­pada de suor e uma gra­vata da mesma cor do colete, da cadeira e de quase tudo ali; era alguém já mais velho, de óculos, mas ainda com uma cabe­leira cas­ta­nha, cheia. Sentou-se onde ficava o rapa­zola, que ficou espi­ando tudo por sobre seus ombros, atento.

— Meu nome é Sal­da­nha, bom dia.

Só agora Afonso se deu conta de que o rapa­zola não tinha nome. Olhou seu cra­chá, que só dizia “em treinamento”.

— Bom dia… Des­culpe a curi­o­si­dade, Sal­da­nha é nome ou sobrenome?

— Sobre­nome. E o seu?

— Afonso.

— Nome ou sobrenome?

— Os dois.

— Sr. Afonso, o Pedro aqui…

— Pode me cha­mar só de Afonso. (ele se rego­zi­java com a raiva mal con­tida do superior)

— Ele me disse que o senhor… não está no cadastro!

— Antes de mais nada, seo Sal­da­nha, eu não gosto de ser cha­mado de senhor.

— Per­dão. Mas como você pode não estar no cadastro?!

— Isso você é que tem que me dizer.

Sal­da­nha ado­tou um tom didático.

— Bem, veja­mos: todos foram cha­ma­dos a fazer a nova iden­ti­dade — e o prazo foi bem longo — mas o Pedro aqui me disse que o senhor não tem iden­ti­dade com chip.

— Não mesmo. E senhor é o escam­bau. Tá me cha­mando de velho?

— Per­dão. Enfim, houve um con­tin­gente resi­dual que foi pro­cu­rado, na ver­dade envi­a­mos uma carta por mês…

— Eu me mudei.

— Pois é, mesmo assim, no fim fica­ram alguns regis­tros sobrando. O que nós fize­mos? Ali­men­ta­mos o banco de dados com a infor­ma­ção de que dis­pú­nha­mos e gera­mos pelo menos um número para cada um deles, mesmo sem expe­dir o chip. Ou seja: o senhor deve­ria estar no cadas­tro de qual­quer forma. Já faz quase uma década que anun­ci­a­mos a digi­ta­li­za­ção total da população.

— Como?! — esta última expres­são feriu os ouvi­dos do romântico.

— Afonso (ele se lem­brou agora), nós fomos uma das pri­mei­ras nações a anun­ciar a digi­ta­li­za­ção total da popu­la­ção, é um orgu­lho nacional!

— Isso me faz pen­sar por que eu ainda não me mudei pra Bolí­via… Mas onde estávamos?

— Bem, eu pre­ciso pri­meiro enten­der por que o senhor… per­dão, você não foi cadas­trado. Isso cons­ti­tui uma sus­peita de fraude, entende? Eu vou cha­mar o ana­lista de sistemas.

Fraude! Aquilo pare­cia que seria pior do que suas pio­res expectativas.

3

O desa­gra­dá­vel Sal­da­nha entrou pelo labi­rinto de divi­só­rias bus­cando o tal ana­lista de sis­te­mas e dei­xou o rapa­zola do colete nova­mente em seu posto. Afonso pen­sava nas pobres rosas, seden­tas a essa hora adi­an­tada. O ambi­ente o sufo­cava, e não con­se­guia ficar indi­fe­rente àquele olhar apa­te­tado que o mirava como se fosse a uma aberração.

— Você é novo aqui? — arris­cou para que­brar o gelo.

— É o cra­chá, não é? E esse colete estú­pido. Olha, (bai­xando a voz e olhando em volta) eu detesto esse tra­ba­lho. Eu tô há dois meses aqui, mas se pudesse eu explo­dia tudo. Minha mãe que encren­cava com eu ficar o dia inteiro no computador…

Afonso sor­ria satis­feito em ver a ines­pe­rada meta­mor­fose do rapa­zola. Ao menos a situ­a­ção toda ganha con­tor­nos mais interessantes.

— … (sus­su­rado) eu sou hac­ker, sabe?

Afonso, que sen­tava de um jeito torto, com as per­nas cru­zada e um braço por sobre o encosto da cadeira, quase caiu ao ouvir aquilo. As coi­sas defi­ni­ti­va­mente fica­vam mais interessantes.

— Escuta, rapaz… como é seu nome afinal?

— Pedro.

— Você não acha que pode me aju­dar aqui, então, Pedro?

— (olhando para ver se eles vol­ta­vam) Claro, ora! Você é como um heroi para mim, sem chip! Ima­gine o que dá… (conteve-se) A fazer o quê, exatamente?

— Não sei, mas você sabe mexer no sis­tema, pode ser útil afinal.

— Me avisa então quando tiver um plano, então.

Essas últi­mas pala­vras já foram pro­nun­ci­a­das à medida em que entra­vam na sala Sal­da­nha e um tipo cor­pu­lento e com óculos escu­ros, o ana­lista de sis­tema. Ele usava camisa preta por fora dos jeans; e os cabe­los engo­ma­dos com gel. Os dois cochi­cha­do­res se recom­pu­se­ram e sua cons­pi­ra­ção ficou para depois. O ana­lista tomou a cadeira e o Sal­da­nha ficou-lhe às cos­tas de um lado; Pedro ten­tou ficar do outro lado, mas foi enxo­tado e sumiu pelos cor­re­do­res. O ana­lista já che­gou com um ar ame­a­ça­dor e após enca­rar Afonso uns ins­tan­tes, começou:

— Afonso Affonso Afonso. Como é que você me explica esse nome?

— Nunca vi nin­guém ter que expli­car o pró­prio nome. Aliás, qual é o seu?

— Pode me cha­mar de Mar­ti­nho. Eu sou da infor­má­tica. Mas me diga, estou curi­oso: como alguém con­se­gue ter um nome desses?

— Tudo bem. O sobre­nome do meu pai era Afonso. O da minha mãe, Affonso (com dois efes). Eles tinham um senso de humor pecu­liar e esco­lhe­ram me bati­zar Afonso. Na ver­dade, minha mãe que­ria Affonso (com dois efes), e eles tira­ram na sorte.

— Ficou bom assim, palíndromo.

— Eh… na ver­dade o palín­dromo de Afonso Affonso Afonso seria Osnofa Osnoffa Osnofa.

— Como?

— Nada. Mas afi­nal, há algo de errado em ter um nome estra­nho? Quanta gente por aí não tem nome estranho?

— Não se trata dito, senhor Afonso… ah, per­dão, você não gosta de ser cha­mado de senhor. Enfim, a situ­a­ção aqui é mais com­plexa, Afonso: você não tem nenhum tipo de cadas­tro conosco…

— Mas eu mos­trei meu docu­mento! — interrompeu.

— Seu docu­mento é do tempo do papel, e não me inter­rompa mais. Como eu dizia: nenhum tipo de cadas­tro, um nome estra­nho, e um nome estra­nho que, curi­o­sa­mente, cons­ti­tui a única falha no sis­tema já detectada.

— Como assim? Mas eu não tenho culpa…

— Veja só: o sis­tema pre­cisa de duas entra­das para reco­nhe­cer a entrada: nome e sobre­nome; como no seu caso são iguais, ele até busca nomes inter­me­diá­rios, mas o duplo efe é des­car­tado como pos­sí­vel falha de digi­ta­ção, então são três nomes iguais, a entrada é rejei­tada; mas ocorre que per­ma­nece um cadas­tro fan­tasma, pois todos os dados estão cor­re­tos, a falha foi só cata­lo­grá­fica. Foi isso que acon­te­ceu quando da migra­ção; e não acon­te­ce­ce­ria se você tivesse vindo fazer o chip; o fun­ci­o­ná­rio que ten­tou te cadas­trar não ten­tou resol­ver o pro­blema e deu um jeito de enco­brir o pro­blema. Então você meio que existe, mas não existe. É um fan­tasma no limbo. Aonde quero che­gar? É bem pos­sí­vel que alguém tenha des­co­berto e se apro­vei­tado desse cadas­tro fan­tasma — que como todo bom fan­tasma é inde­tec­tá­vel — para come­ter frau­des, e de fato ocor­re­ram algu­mas nunca solu­ci­o­na­das, e devi­da­mente aba­fa­das, é claro, pois nos orgu­lha­mos de um sis­tema a prova de frau­des, ou falhas.

— Escuta seo Mar­ti­nho, (Afonso tre­mia) não me importa seu sis­tema, suas frau­des e falhas. Eu levo uma vida sim­ples, com minhas telas, minhas rosas. Eu só vim aqui por­que eu recebi este papel (tirou-o do bolso, cada vez mais amas­sado) e eu fiquei com medo que cor­tas­sem a água. Agora eu sou de repente um criminoso?

— Exa­ta­mente, Afonso, o senhor já pagou a água?

— Eu nunca recebi a conta!

— Jus­ta­mente. Escuta Afonso, está dando meu horá­rio… eu só vim expli­car a você como ocor­reu a fraude, ou falha claro, são ape­nas sus­pei­tas, sabe, não fique ner­voso. Nós con­ver­sa­mos com o supe­rin­ten­dente (e o Sal­da­nha ace­nou com a cabeça, sua única inter­ven­ção) e ele vai con­ver­sar com você.

Nesse momento entra­ram dois segu­ran­ças na baia, cer­cando Afonso.

— Por favor não se assuste, é pro­ce­di­mento padrão. Os dois vão acompanhá-lo até o gabi­nete do superintendente.

4

— Eu só quero saber por que estou sendo tra­tado como um cri­mi­noso de guerra! — impacientou-se pela pri­meira vez Afonso ante o ques­ti­o­ná­rio — por que não dizer admo­es­ta­ção — do superintendente.

Supor­tara a humi­lha­ção de ser escor­tado por gen­dar­mes; retri­buíra os fal­sos sor­ri­sos do alto buro­crata com sua calva relu­zente e seu terno bem cor­tado; expli­cou mais uma vez por que não tinha chip; teve mesmo que repe­tir a ori­gem de seu nome; vol­tou a exi­bir o docu­mento antigo e garan­tiu que não sabia nada sobre cadastro-fantasma.

Olhava com ódio os dois fun­ci­o­ná­rios que, após ini­ciar seu cal­vá­rio, postavam-se ali de lado em reve­rên­cia ao supe­rior. Pen­sava em Pedro, o qual vira de volta ao posto no cami­nho até a sala do supe­rin­ten­dente; e come­çava a ter ideias. Mas por outro lado temia o abuso de poder daque­les agen­tes de um Estado dado a um rigo­roso e absurdo con­trole sobre o cida­dão; seu único crime tal­vez fosse ten­tar viver à mar­gem da dis­to­pia, mas de qual­quer forma temia não sair dali livre para rever suas rosas. Havia horas den­tro daquele edi­fí­cio assom­broso, ima­gi­nava que se saísse dali iria pin­tar o por-do-sol, e com gosto redobrado.

— Man­te­nha seu tem­pe­ra­mento, meu caro. É um direito meu enten­der a situ­a­ção, não achas? Veja só: seu cadas­tro é a única falha no sis­tema até hoje detec­tada. Mesmo assu­mindo que você mesmo não tenha res­pon­sa­bi­li­dade pelo fato — ainda que fosse um dever seu pro­vi­den­ciar a iden­ti­fi­ca­ção digi­tal inde­pen­den­te­mente de suas con­vic­ções filo­só­fi­cas — você cons­ti­tui uma ame­aça à cre­di­bi­li­dade de todo DCCC; diria que uma ame­aça à sociedade…

— Mas como assim! — inter­rom­peu Afonso — Eu venho aqui para uma regu­la­ri­za­ção do fornecimento de água e de repente sou uma ame­aça! Eu nunca fiz mal a nin­guém, e já vi que não deve­ria ter aten­dido àquela con­vo­ca­ção… Eu sin­ce­ra­mente só não queria ficar sem água! Aliás, minhas rosas estão agora mor­rendo de sede! Vocês não podem me pren­der, eu não cometi nenhum crime!

Ao ten­tar se levan­tar, foi con­tido pelo Sal­da­nha, que o olhou com ar con­des­cen­dente. Sua ago­nia cres­cia, mas ele sabia que deve­ria se domi­nar para encon­trar uma saída.

— Meu caro, você ficou com impres­são errada! Nin­guém está pren­dendo nin­guém aqui! Não somos da polí­cia, afi­nal! Esta­mos ape­nas bus­cando uma saída boa para todos, não é mesmo?

— Claro! Claro! — res­pon­de­ram os dois subal­ter­nos em unís­sono, ins­ta­dos pelo superintendente.

— Vocês pode­riam bus­car aquele café pra gente, não? — disse o chefe com uma cons­pí­cua pis­ca­dela, daque­las das mais cínicas.

— Claro! Claro! — foi o coro mais uma vez.

Fica­ram tête-à-tête o supe­rin­ten­dente Figuei­redo (mas pode me cha­mar de Car­los) e nosso triste heroi, com ape­nas um segu­rança à porta, a quem bas­tou um sinal para que tam­bém saísse.

— Como eu dizia, meu amigo Afonso, o obje­tivo é achar a melhor saída para todos. Como eu tam­bém já expli­quei, há ele­men­tos para investigá-lo cri­mi­nal­mente por fraude. Mas a quem inte­ressa isso? Serão meses e meses de pro­ces­sos, audi­ên­cias, pape­lada… E tal­vez este­ja­mos des­per­di­çando o tempo do Estado com algo que não passa de um mal-entendido, como você garante.

Afonso cru­zou as per­nas, espe­rando para ver aonde ia a súbita ama­bi­li­dade do superintendente.

— Se eu entendo bem — pros­se­guiu — o que lhe inte­ressa é seguir sem cadas­tro, cri­ando suas rosas na saída da cidade, não é mesmo? Ima­gino que tenha um cachorro?

— Tenho um vira-lata.

— E como é o nome dele?

— Ringo.

— Ringo Ringgo Ringo?

— Não, só Ringo… — E Afonso ia rela­xando aos poucos.

— Pois é Afonso, você não pode viver como o Ringo. Sem regis­tro civil, sem pagar imposto, sem votar… Você é um cida­dão, afinal!

— Eu já fiz parte de tudo isso, Car­los, e pre­firo a vida que escolhi.

— Tudo bem, então acho muito cruel privá-lo de seu sonho, sabe? Poxa, meu dever pro­fis­si­o­nal é processá-lo, cobrar-lhe todos os impos­tos… ou pelo menos criar seu cadas­tro e con­ce­der uma anis­tia, mas é tanta pape­lada, sabe…

— Aonde você quer chegar?

— Bem, é que eu me afei­çoei a você. Veja que inu­si­tado: alguém com três nomes iguais, rá-rá…

— Na ver­dade, o do meio é com…

— Em ter­mos prá­ti­cos — inter­ro­peu Car­los — eu posso ser um cara bacana con­tigo. Mas e você, como pode retri­buir a gen­ti­leza? — e repe­tiu a pis­ca­dela cínica.

Afonso teve um lam­pejo, e ten­tou mesmo não trans­pa­re­cer seu oti­mismo. Pela pri­meira vez for­mava um plano claro e com chance de êxito. Esforçou-se por entrar no jogo do supe­rin­ten­dente Figuei­redo. Sor­riu maro­ta­mente e respondeu:

— Estou enten­dendo, Car­los. Eu já tinha pen­sado em algo assim, sabe… mas a gente fica com pudo­res, às vezes. Mas, sabe? Eu pre­firo dis­cu­tir isso com calma… a gente cer­ta­mente pode se acer­tar, mas… agora estou mor­rendo de von­tade de usar o banheiro! Que vergonha…

— Como assim, rapaz! Não há de que se enver­go­nhar, isso é natu­ral. Só tem um deta­lhe, o segu­rança vai ter de acom­pa­nhar. Não leve a mal.

— Ah, sem pro­blema, Car­los. O impor­tante é resol­ver a parada, hehe.

Figuei­redo levantou-se para indi­car o cami­nho. Aberta a porta, reco­men­dou ao capanga que acom­pa­nhasse Afonso ao sani­tá­rio. Este agra­de­ceu e com satis­fa­ção dei­xou a sala, onde o ar con­di­ci­o­nado estava forte demais, arris­cando mesmo um sor­riso para o segu­rança, que não retri­biu. Tinha um obje­tivo espe­cí­fico indo ao banheiro, mas pen­sou que o pre­ci­sava mesmo era vomi­tar, depois de toda aquela falsa cor­di­a­li­dade entre os dois.

5

Afonso saiu da sala do supe­rin­ten­dente Figuei­redo tre­mendo de ner­vo­sismo. O epi­só­dio todo já lhe des­gas­tara um bocado, mas aquele pare­cia ser o momento crí­tico. Fez um gesto para que o segu­rança seguisse à frente, e rece­beu uma nega­tiva muda. Deu um jeito de ficar lado a lado com ele; sua pre­o­cu­pa­ção era evi­tar que o sen­ti­nela se aper­ce­besse: ao pas­sar nova­mente pelo bal­cão de aten­di­mento, Afonso fez um leve sinal com a cabeça a Pedro. Res­pi­rou fundo, fechou os olhos; quando abriu, cons­ta­tou que tivera sucesso: Pedro res­pon­deu com um sinal de aqui­es­cên­cia, e o segu­rança seguiu seu passo firme. Afonso teve a sen­sa­sa­ção de que por pre­cá­rio que fosse seu plano, era justo e fadado a acon­te­cer que ele esca­passe; mas cada etapa era um desa­fio, e havia várias pela frente.

O segu­rança e seu quase-prisioneiro atin­gi­ram a área dos banhei­ros, e nosso heroi teve sua tor­cida aten­dida: ele se pos­tou ao lado da porta como o pro­ver­bial dois de paus — seria demais acompanhá-lo até o sani­tá­rio! Entrou. Pedro não pode­ria demo­rar demais para não levan­tar sus­pei­tas, e devia agir bem natu­ral­mente: esses eram os pen­sa­men­tos girando na cabeça de Afonso, quando a porta se abriu, e entrou o rapa­zola de colete azul. Pen­sar que à pri­meira impres­são Afonso o tomou por um abo­bado inú­til… Com mais um sinal de Afonso, os dois se reu­ni­ram em um dos reser­va­dos, e foi Pedro que come­çou a falar:

— Eu sabia…

— Shhh! Temos pouco tempo — sus­sur­rou, e assim pros­se­gui­ram a con­versa. Seguinte: você pode entrar no sis­tema e gerar uma ins­cri­ção nova?

— É difí­cil, mas no seu caso… acho que eu con­sigo, reaproveitando…

— Não, uma iden­ti­dade nova, você vai matar o Afonso, entendeu?

— Para quê, se ele nunca existiu!

— Enfim, eu quero que esta minha vinda aqui ao DCCC seja apa­gada, que o Afonso esteja morto há alguns anos; quero um nome novo e docu­men­tos, com chip e tudo.

— Puxa, Afonso, eu ima­gi­nei que você pudesse me aju­dar tam­bém, sabe, sem chip, você pode fazer tanta coisa sem ser detec­tado! Mas olha… quer dizer que você vai fugir então?

Afonso fez uma pausa antes de res­pon­der. Ouvira um baru­lho e que­ria des­co­brir se era o segu­rança bisbilhotando.

— Sim, é a minha saída. Eu sei que agora eles não vão me dar paz. Eu ten­tei enquanto eu pude só viver minha vida, agora eles me des­co­bri­ram. Mesmo que eu aceite a pro­posta de suborno desse supe­rin­ten­dente de merda…

— Ele é um escroto.

— … algo me diz que o sis­tema nunca mais me deixa em paz.

— Eu tenho uma ideia.

— Diga.

— O cadas­tro fan­tasma. Até eles cor­ri­gi­rem essa falha, eu posso me apro­vei­tar dela.

— Você vai per­der o emprego.

— Tal­vez, mas só um hac­ker entende a beleza em der­ro­tar um sis­tema. Ainda mais esse que domina abso­lu­ta­mente cada passo que damos… é um desafio!

— E qual é a ideia afinal?

— Eu crio uma pes­soa: pode ser Pedro Ped­dro Pedro. Ele vai virar um fan­tasma, e aí eu faço o que qui­ser: mato você, crio outra per­so­na­li­dade para você, outra para mim — por que não? E sem usar minha matrí­cula. Eu conheço todo mundo no CPD, ins­talo um link até em casa…

— Ótimo — inter­rom­peu Afonso — o que você quer em troca?

— Hã? Como assim, eu já disse, é o desafio.

— Deixa de balela, porra.

— Tá bom, eu quero ir contigo.

— Você nem sabe para onde eu vou!

— Mas a gente vai der­ro­tar o sis­tema juntos!

— Seu idi­ota, para onde eu vou mal existe computador!

O segu­rança bateu — com o cas­se­tete pro­va­vel­mente — na porta, apres­sando seu refém.

— Estou com diar­reia — gri­tou Afonso, e bai­xou de novo o tom:  minha casa, você fica com ela e faz o que qui­ser, pode casar, criar seus filhos, ven­der se qui­ser. Mas eu quero ir sozinho.

Pedro pare­ceu desa­pon­tado. De repente lhe veio um bom argumento:

— Mas no fim eles tam­bém vão me achar, minha matrí­cula vai ficar lá no cadas­tro do Pedro Ped­dro Pedro. Eu pre­ciso fugir.

— Tá, tudo bem então. Mas vamos logo: meu ende­reço é Rua do Por­tal, 720. Você acha que con­se­gue tudo para amanhã?

— Impos­sí­vel, três dias pelo menos.

— Tudo bem: con­siga os docu­men­tos e apa­reça lá.

— E como você se livra do superintendente?

— Eu dou um jeito. Vai lá, que vai dar na cara.

Fica­ram meio sem jeito no começo, mas aca­ba­ram tro­cando um abraço. Algo como um pai e um filho ado­tivo (antes que se pense alguma calú­nia). Pedro abriu a por­ti­nhola e olhou em volta. Lavou as mãos para dis­far­çar e no mesmo momento o segu­rança entre­a­briu a porta e enfiou o quepe para den­tro. Era uma ame­aça em sua lin­gua­gem muda. Afonso deu a des­carga, desa­bo­toou as cal­ças para fin­gir que as estava fechando, enquanto saía.

— Ufa! Eu devo ter comido alguma coisa…

O gen­darme tirou a cabeça de den­tro e fechou a porta. Foi uma cami­nhada bem mais tran­quila de volta ao gabi­nete do supe­rin­ten­dente Figuei­redo. Afonso já estava a essa altura ten­tando afas­tar a ideia de “filho que nunca tivera”. Por algum motivo, ainda não olhara as horas, e fê-lo agora: eram quase cinco horas, e sendo verão ainda have­ria bas­tante luz. Sorriu.

6

_ Rapaz, estava ten­tan­dando fugir? — recepcionou-lhe o infame Carlos.

_ Pois é, Car­los, eu andei comendo fru­tos do mar… quase que escapo pelo esgoto! Hehe.

_ Dizem que a gente morre pela boca, né?

_ É… escuta…

_ Bateu de repente? Assim?

_ Como?

_ Você pas­sou qua­renta minu­tos aqui, sem pedir para usar o banheiro, e agora vem dizendo que tem diarreia?

_ Uh… claro! O que há de errado, eu tinha ido antes, espe­rando o atendimento…

_ Sim, sim, tudo bem. Espero que melhore. Mas é melhor você não estar tra­mando alguma coisa, seo Afonso.

_ Ora, que boba­gem, Car­los! de forma alguma eu faria isso. Mas como eu que­ria dizer…

_ Errado. Eu que­ria dizer. Eu dizia que você está em encrenca, Afonso, a menos que se dis­po­nha a colaborar.

_ Exato, exato. Jus­ta­mente isso: como você sabe, eu não tenho chip.

_ É claro.

_ Não tenho então conta ban­cá­ria. Na ver­dade, eu nunca mexo com dinheiro… Mas o que me sus­tenta, eu já devo ter dito, é a pintura.

_ Eu não estou inte­res­sado em sua arte. — cor­tou brus­ca­mente Figueiredo.

_ É uma pena, superintendente.

_ Pode me cha­mar de Carlos.

_ Então, Car­los, nem todos apre­ciam arte…

_ Eu não apre­cio a sua arte.

_ Mas você nem a viu!

_ Não inte­ressa. Olha aqui: eu vou aju­dar você, mas só se você me aju­dar. Sabe, uma mão lava outra e tal e coisa. E eu não quero seus quadros.

_ Ora, mas não foi isso que eu sugeri, não se apresse em ler minha mente, Car­los! O que eu ia dizer é que ape­nas quando eu ven­der, ou meu mar­chand ven­der, na ver­dade, alguns qua­dros, é que eu — ou ele — pode­ria repassar…

Figuei­redo rabis­cou um papel e esten­deu a Afonso. Este arre­ga­lou os olhos e asso­biou baixinho.

_ A metade disso — arriscou.

_ Dois terços.

_ Tudo bem. Eu pre­ciso de uns cinco dias. Pelo menos.

O supe­rin­ten­dente sor­riu do seu modo nojento de sem­pre. Esten­deu a mão, reco­lheu o bilhete e rasgou-o uma, duas, três e qua­tro vezes e jogou os dezes­seis peda­ci­nhos no lixo. Mudou de expres­são para ame­a­çar o pintor:

_ Presta aten­ção, Afonso, eu sei que somos ami­gos. (Afonso sen­tiu um impulso de esmurrá-lo) Mas eu tenho que adver­tir que se você trair minha con­fi­ança, eu posso fazer da sua vida um inferno, com­pre­ende? Tudo que eu tenho é seu ende­reço, que deve ser o certo?

_ É o certo.

_ Jus­ta­mente. Eu vou tirar uma foto­gra­fia sua. — e tirou do bolso do paletó um celu­lar, cap­tu­rando o quase livre cons­pi­ra­dor — Para com­ple­tar, você não pode pegar nem um ônibus inte­res­ta­dual sem o chip, então não irá muito longe. De qual­quer forma, meu caro amigo: nem pense em ten­tar alguma gra­ci­nha, ou em vez de fazer vis­tas gros­sas eu vou fazer de sua vida um inferno! Compreendeste?

_ Não há o que temer, eu cum­pri­rei com minha parte do trato.

E Car­los reto­mou o sor­riso cínico.

_ Hoje é terça. Na pró­xima terça eu passo na sua casa. Até lá você, ou seu machão, não importa, terão o dinheiro pronto para trans­fe­rir. É claro que eu não vou usar minha conta. E você não abre o bico com nin­guém, viu? Nem amigo, nem parente, e muito menos imprensa — isso de viver sem regis­tro até hoje, prin­ci­pal­mente. Bico calado. Senão…

_ Minha vida vira um inferno, já sei. Eu gos­ta­ria de ir agora, sabe. Eu não estou preso, né? — arris­cou um arroubo de auto-confiança — Estou muito cansado.

Car­los incli­nou a cabeça e balan­çou o dedo indi­ca­dor em riste, num misto de repro­che e condescendência.

_ Terça feira.

_ Pas­sar bem, superintendente.

Afonso Affonso Afonso igno­rou Sal­da­nha e Mar­ti­nho que obser­va­vam meio escon­di­dos à saída do escri­tó­rio do supe­rin­ten­dente, e tro­cou mais uma pis­ca­dela com seu cúm­plice; mal podia acre­di­tar ao esca­par do pré­dio. Aquela gente ali era muito bem capaz de mantê-lo detido com base em pre­cá­rias sus­pei­tas de má-fé, e sua vida esta­ria bem com­pli­cada, não tendo paren­tes pró­xi­mos ou mesmo dis­tan­tes que dele se pudes­sem ocu­par. Seu mar­chand tinha muito apreço por ele, mas envolver-se com aquele tipo de pepino pode­ria comprometê-lo de alguma forma. Após cami­nhar com esses cál­cu­los na cabeça, fez sinal a um ônibus que parou, mesmo fora do ponto. Todos os moto­ris­tas daquela linha o conhe­ciam e sabiam que ele nunca tinha dinheiro (ou não tinha chip, o que era o mesmo): pegou uma carona até em casa. Eram cinco e trinta. Após reen­con­tar Ringo, que lhe fez uma tre­menda festa, gas­tou gos­to­sa­mente um quarto de hora aguando suas rosas: o can­teiro das bran­cas e então o can­teiro das ver­me­lhas (ele detes­tava tanto as cor-de-rosa quanto as ama­re­las); chamava-as pelo nome: já dis­se­mos que era excên­trico. Tomou um bom banho e mon­tou seu cava­lete em sua varanda, de onde tinha uma ótima vista do bairro todo, extendendo-se por um vale entre duas coli­nas: ele no topo de uma e na outra uma torre de igreja, exa­ta­mente onde se punha o sol naquela parte do ano. Era essa a pai­sa­gem que pin­tara algu­mas vezes, mas naquele dia havia um gosto espe­cial de liber­dade que se refle­tia na tela, que se ia reve­lando a melhor que já pin­tara. Havia um deta­lhe curi­oso que fez ques­tão de acres­cen­tar: de cos­tas, como quem entra em cena, havia uma famí­lia com tra­jes andi­nos, o que pare­cia sem expli­ca­ção alguma, e na dire­ção oposta havia um matuto, de cha­péu e pés des­cal­ços, e ao lado dele um jovem ves­tido à moda do tempo. Tudo isso era muito sutil ante a beleza do horizonte.

Na manhã seguinte Pedro apa­re­ceu, toma­ram café e con­ver­sa­ram. O rapa­zola estava extá­tico, con­tando que con­se­guira, sem muito esforço, rea­li­zar os coman­dos neces­sá­rios para que Afonso Affonso Afonso pas­sasse a exis­tir no sis­tema, ape­nas para mor­rer por uma parada car­díaca repen­tina e ser enter­rado no Campo da Espe­rança. De aci­dente de auto­mó­vel mor­reu Pedro Navarro, tendo o mesmo chão para repouso. Ao mesmo tempo nas­ce­ram Libé­rio Bolí­var e Horá­cio Prado, já com a idade de 45 e 19 anos, res­pec­ti­va­mente, com todo his­tó­rico esco­lar e pro­fis­si­o­nal, e deve­res cívi­cos todos em dia. Pedro, ou melhor, Horá­cio, garan­tiu que em mais três ou qua­tro dias tinha as iden­ti­da­des com chip e pas­sa­porte na mão. Iam-se tor­nando mais e mais pró­xi­mos, e o abraço de des­pe­dida foi bem mais desen­volto do que o pri­meiro que trocaram.

Libé­rio ainda pin­tou mais uma dúzia de telas assi­nando Affonso, nome que já valia alguma coisa, e quando Matheus, seu amigo e mar­chand, o visi­tou na quinta, rece­beu um lote que ele mesmo asse­gu­rava ser o melhor já pro­du­zido pelo artista, junto com a incum­bên­cia de comercializá-lo o mais rápido pos­sí­vel, aufe­rindo ao menos o valor de umas quan­tas mil mer­re­cas, e vol­tando na terça pela manhã com o mon­tante combinado.

Libé­rio pas­seou muito, a pé, naquele fim de semana. Obser­vava os com­por­ta­men­tos das pes­soas e se cer­ti­fi­cava da arti­fi­ci­a­li­dade abes­ta­lhada da vida con­tem­po­râ­nea. Via aque­les zum­bis com tele­fo­nes pes­so­ais, que não dese­ja­vam bom dia ou davam espaço para uma boa prosa. Via o ônibus ficar cinco minu­tos parado por­que as solu­ções ciber­né­ti­cas pare­ciam fun­ci­o­nar ao con­trá­rio. Via catra­cas e lei­to­res bio­mé­tri­cos, lei­to­res de chip, e mil para­fer­ná­lias que regis­tra­vam cada passo do cida­dão, enquanto o crime não pare­cia dimi­nuir, o trân­sito era um inferno, o ar era ires­pi­rá­vel; e, no fim, as ati­vi­da­des públi­cas eram sem­pre algum diver­ti­mento vazio pré-fabricado em outro país. Nin­guém dava valor a uma árvore, as rosas eram impor­ta­das, as fru­tas geral­mente tam­bém o eram, vivia-se até a morte sem ver uma vaca. Plástico, aço, con­creto. Era difí­cil até pin­tar ali. Tinha ainda um sen­ti­mento pela terra em que nas­cera, mas a vira se trans­for­mar sobre­ma­neira. Ia embora.

Foi o sobri­nho do supe­rin­ten­dente Figuei­redo quem apa­re­ceu em sua casa na terça. Sem demora, foram todos até um ter­mi­nal — havia um bem perto, em um posto de gaso­lina — e com­ple­ta­ram a tran­sa­ção que paci­fi­cava a sanha do DCCC con­tra o último cida­dão sem regis­tro digi­tal. Matheus pediu expli­ca­ções, mas só ouviu a trá­gica notí­cia: seu amigo iria embora. Libé­rio consolou-o; pediu, como último favor a com­pra de uma pas­sa­gem, para este nome aqui — e mos­trou o docu­mento falso, que Horá­cio lhe entre­gra. Matheus ape­nas olhou fixa­mente para o amigo:

_ É claro — disse, após alguns segundos, segurando as lágri­mas e a curiosidade.

_ O que sobrar é todo seu.

_ Tudo bem – abraçaram-se.

Libé­rio foi muito feliz pin­tando os Andes, e veio a se casar com uma índia;  Horá­cio dava aulas de infor­má­tica como volun­tá­rio aos alu­nos de sua namo­rada, e con­ser­tava com­pu­ta­do­res. Infe­liz­mente, passaram-se ape­nas cinco anos até a Bolí­via anun­ciar o cadas­tra­mento com chip obrigatório.

Deus os Tenha

1

Era uma floricultura dentro de um cemitério. Pequena, simples, as opções eram acanhadas, as coroas, feias. Um senhor de terno preto e camisa branca, sem gravata, passou a mão pelos cabelos já quase todos brancos, e disse qualquer interjeição, só para quebrar o silêncio. Ele era magro e usava barba, um belo cinquentão na verdade, um rosto conhecido dos funcionários dali, cujos nomes ele conhecia. Ela se impacientou e bateu palmas, tirou os óculos escuros e enxugou os olhos. Trajada da cabeça aos pés de negro, cor que também tinham a bolsa e os cabelos atados num coque, não tinha muita experiência em enterros: apenas uma avó havia morrido. Não parecia ter chegado aos quarenta, e mesmo numa circunstância como aquelas era uma mulher que chamava atenção. O funcionário apareceu, pediu desculpas, enxugando as mãos no jaleco. O homem grisalho havia chegado antes, mas fez sinal para que ela pedisse. Ela agradeceu, disse ao rapaz que haviam errado o nome de seu marido na coroa, que ele em vida detestava ser chamado de Leandro, era um desrespeito. Ele se desdobrou em perdões, garantiu que ia providenciar outra faixa e pediu que ela escrevesse o nome em um papel. Ainda teve que ir lá nos fundos buscar uma caneta. Ela não agradeceu, acenou com a cabeça para o senhor e voltou ao velório. Ele pediu um vaso de crisântemos amarelos, escolheu um menos murcho, pagou e se dirigiu ao túmulo velho conhecido.

Depois daquele dia, ele seguiu sua tradição de mais de dez anos de visitar mensalmente o túmulo de sua mãe, todo dia onze; ela iniciou a mesma rotina, mas no dia dez. Dez meses se passaram, no décimo primeiro, ela por  qualquer contratempo não pôde visitar o túmulo do marido no dia de sua morte, mas foi no seguinte. Quando desceu do carro, ele estava entrando no seu, estacionado logo ao lado. Quando os olhares se cruzaram, houve um estremecimento em ambos: ela não sabia se o cumprimentava, mas se lembrava muito bem dele; ele ficara muito impressionado com a beleza dela, mas julgou que qualquer abordagem seria de mau gosto. Ele experimentou um discreto aceno, ela não conteve um sorriso e imitou o gesto. Ela já se distanciava quando ele criou coragem para falar.

Acertaram o nome dele? Ela se virou, tirou os óculos que lhe cobriam metade do rosto e ele pôde enfim vê-la em todo seu encanto. Usava uma saia vermelha, longa, e uma blusa branca que expunha os ombros, tinha o rosto triangular, queixo um pouco proeminente, nariz fino, olhos castanhos com sobrancelhas bem desenhadas. Ele tinha o mesmo paletó aberto e os mesmos plácidos olhos azuis. Pois é, sorria um pouco nervosa, é uma falta de profissionalismo inacreditável. Ele fechou a porta do carro e acionou o alarme. Já faz um tempo, não? Um ano? Onze meses, ela guardou os óculos na mesma bolsa preta. Você também é viúvo? Separado. Sinalizou o cemitério com a cabeça: minha mãe. Instaurou-se uma espécie de desconforto: iam seguir conversando ali no estacionamento? Começaram a falar ao mesmo tempo: então tá, ela; o que você, ele; pode falar; não, desculpa, eu te interrompi; fala; não, era bobagem; tudo bem, cara ou coroa? Ela riu, ele aproveitou a deixa: vamos tomar um café?

Eu sequer sei seu nome, ela disse, mas sem rispidez. Lúcio Medina, você? Roberta, prazer. Bem, prosseguiu, se você esperar enquanto eu visito o Leonardo, seria um prazer, sim. Você fala como se ele estivesse vivo. Ele está, de certa forma, o meu amor… foi interrompida por lágrimas. Perdão, eu não devia ter… Não, tudo bem, eu vou lá. Eu te espero… na floricultura? Ela sorriu, pode ser. Ele cumprimentou o rapazola pelo nome, ela tinha trazido suas próprias flores, podemos entender. O funcionário se disse admirado por sua constância, em suas palavras, claro. Ele disse que tinha uma dívida enorme, e a pagava em prestações. Ela chorou um bocado no túmulo do Leonardo, desculpou-se por ter perdido um dia, mas ao mesmo tempo em que jurava que seu amor duraria para sempre, estava confusa, e culpada, por aceitar o convite de um estranho. Ela voltara a pôr os óculos quando o encontrou na floricultura, por isso o rapaz talvez nem tenha percebido seu olhar de desprezo, a Lúcio esboçou um meio sorriso. Quando já estavam no pátio, ele disse que conhecia um lugar não muito longe dali, ela disse tudo bem, e entraram cada um no seu carro, o dele um sedã de luxo, preto, o dela um compacto azul. Ela o seguiu.

2

Ela sentia uma excitação mesclada de arrependimento, como podia ter sido tão impulsiva! É claro que sabia a resposta: por mais que a memória do marido estivesse muito viva, ela já começava a se sentir só. Ele sorria com mais um triunfo iminente: na verdade, tinha uma namorada, muito jovem, o que não o impedia de flertar por aí. Em um semáforo, ele, distraído, passou no amarelo, e ela ficou retida. Quando checou o retrovisor e não a viu, proferiu um palavrão e encostou. Por sorte ela o alcançou e seguiram até uma pequena galeria, onde estacionaram. Conseguiram uma mesa numa varanda com muitas plantas, o garçom trouxe os cardápios, mas ele sem os abrir pediu um doppio e um latte. Ela gostou que ele escolhesse por ela, os homens deveriam estar pelo menos aparentemente no comando.

E uma água com gás, dois copos, completou quando o garçom já virara as costas. Bem, eu queria dizer, voltando-se para ela, que lamento muito você ter ficado viúva tão jovem. Trinta e oito não é tão jovem. Como não, é o auge da mulher, ele galanteou. Arrependeu-se, estava se apressando; mas ela reagiu bem. É, fora a pele, eu não me trocaria por mim aos vinte e cinco. Ele não se conteve: mas sua pele é linda, eu não te daria mais que trinta. Ela elaborou um olhar de acanhamento e passou a examinar o cardápio. Posso perguntar como ele morreu? Sim, não há problema. Foi câncer. Ele fez uma careta. Longa batalha, sofrida, suspirou. Ele fumava muito. Mas era novo como você? Ele morreu pouco antes de completar quarenta e cinco. Que tragédia, Roberta. E ficou sem saber o que dizer. Optou pelo protocolo. Com que você trabalha? Eu sou veterinária, mas eu também ajudo minha irmã em sua empresa de festas, uma espécie de consultoria, só que mal remunerada. Ele deu uma risada curta. Os cafés chegaram.

Eu nunca tomei esse café, é bom? Sim, eu espero ter acertado seu gosto; você gosta mais forte? Ah, eu quase não tomo café. Você vai gostar. E você, o que faz? Eu tenho uma construtora. Ela arregalou os olhos, está nadando em dinheiro, então. Nem tanto, mas estamos crescendo; em que bairro você mora? Colinas, perto do viaduto. Naquelas três torres novas? Isso mesmo, como sabe? Foi um palpite; fui eu quem construiu. Eu? É, nós. Nós ou eles? Ela tomou um gole do café saboreando sua provocação. Eles não corstruiriam sem mim, nem eu sem eles. Foi só uma brincadeira. Eu me mudei para lá alguns meses depois da morte do Leo. Fiquei sozinha num três quartos antes que… nós desistimos da adoção quando ele recebeu… e ficou de repente chorosa; tirou uma caixa de lenços da bolsa. Você, tem filhos? Uma filha, vive com a mãe. Eu tenho uma também, na verdade; vive com o pai no Canadá, passa um mês por ano comigo. E você vai sempre ver sua mãe? Foi uma coincidência nos reencontrarmos, não? Eu vou todo dia onze, religiosamente, e olha que não sou religioso. Nossa, eu vou todo dia dez, mas ontem tive que dobrar para cobrir uma colega, fui hoje. Agradeça a sua colega em meu nome. Os dois sorriam um pro outro afetuosamente; ele quase tentou beijá-la, mas não ousou. Que bonito isso, Lúcio, essa consideração. Ah, eu sinto que é minha obrigação, e sinalizou a xícara ao garçom, pedindo outro café duplo.

Ela não era minha mãe biológica, que morreu num acidente, era a melhor amiga dela. Meu pai desapareceu antes de eu nascer. Era uma mulher de temperamento forte, e que me criou com estrita disciplina, o que era verdade também para os filhos biológicos dela. O pior era que ela queria controlar tudo no meu destino: quando jovem eu quis estudar artes plásticas, ela praticamente me obrigou a fazer engenharia, pelo que hoje sou grato. Ela não gostava de nenhuma namorada minha, pegava no pé. Eu não podia chegar tarde nem com mais de dezoito anos. Assim que eu consegui um emprego com um salário melhor eu saí de casa e falei um monte de bobagem para ela. Um tempo depois, ela brigou com o marido, e os filhos, também ressentidos com seu despotismo, tomaram partido do pai. Ela viveu o resto da vida sozinha. O que ninguém soube até que ela morresse foi que ela recebera em algum momento uma gorda herança de um tio solteirão; e ela legou tudo a mim. Só aí eu me dei conta do idiota que fora: aquela mulher aceitou me criar, dedicou, senão seu afeto, seu empenho por vinte anos, a ela eu devia tudo o que era, e agora o que tinha no banco. Bem, eu prometi a mim mesmo visitar sua sepultura mensalmente, e faço isso sem falhar há quase doze anos.

Mas estou falando demais, conte você alguma coisa. Como o que? Ah, você disse que tem uma filha no Canadá, foi um primeiro casamento? Ah, nem chegou a ser um casamento, foi um caso e um acidente. Eu tinha ido lá trabalhar de babá e estudar inglês, logo após terminar a faculdade, não estava achando emprego afinal. Eles tinham um vizinho, bonito, bem sucedido, solteiro. Depois que ele me viu a primeira vez, passou a frequentar a casa o tempo todo. Quando teve a primeira chance de conversar a sós comigo, ele me convidou, todo atrapalhado, para jantar. Eu sentia um impedimento ético, tive uma educação muito conservadora, e disse a ele que teria que fazer o convite na frente dos meus anfitriões, que deveriam consentir. Eles eram pessoas super modernas, e ficaram entusiasmados com a ideia. Nós estávamos juntos havia três meses quando eu descobri que estava grávida, meus pais quiseram que eu voltasse imediatamente, ele queria se casar. Nós brigávamos cada vez mais até a Corin nascer, eu fugi para o Brasil, houve uma disputa judicial e nós perdemos. Saiu até na tevê. Que idade ela tem? Quinze anos, está uma moça linda. Você mal tocou o café, quer outra coisa? Ah, pede uma coca para mim. Claro. E a sua? Como? Sua filha? Ela tem dezenove, Paula é o nome dela, é tão bonita que trabalha de modelo em eventos, mas leva a faculdade de Direito muito a sério. Faz tempo que você se separou? Faz, treze anos. Nossa, e depois que ela soube da herança ela se arrependeu? Ele riu. Isso você tem que perguntar a ela… O rapaz chegou com o refrigerante e Lúcio perguntou a Roberta se ela queria comer alguma coisa, recomendou uma torta de chocolate com amêndoas. Ela aceitou a sugestão, ele pediu um quiche de queijo do reino e tomate seco. Depois da torta eu acho que eu vou, tá? A ele lhe pareceu que era só charme: calma, tá cedo ainda.

3

Comeram, ela reconheceu que era uma delícia, nunca tinha ouvido falar naquele lugar. O Leo não gostava muito de sair, só íamos a restaurantes em algumas ocasiões especiais, e cafés deste tipo eu nunca tive costume de frequentar. Ah, que pena, é uma das coisas boas da vida; especialmente com uma companhia tão agradável como você. Ela sorriu, mas ficou pensativa. Lúcio, não me entenda mal, você é um homem muito… simpático e educado, foi ótimo conversar um pouco, mas eu acho que é prematuro… Faz um ano, Roberta, ele tomou as mãos dela. Não faz ainda. Onze meses, onze meses e um dia, que diferença? Ele significava tudo para mim, Lúcio, não sei, eu estou confusa; preciso pensar a respeito. Nós nos conhecemos no velório dele, seria uma falta de respeito! Eu nunca estive no velório, nós nos vimos na floricultura e sequer conversamos; nós nos conhecemos hoje. Ela livrou as mãos e passou uma pelos cabelos lisos, bebeu o que restava do refrigerante e voltou a mirá-lo. Eu prefiro que a gente… Me dá seu telefone, ele a interrompeu. Você não vai salvar no seu? Não, eu tenho ótima memória. Ela deu o número. Consultou o relógio e disse que tinha de se apressar. Ele pediu a conta e resolveu arriscar. Você disse que não costumava ir a restaurantes; eu conheço um ótimo de frutos do mar, você gosta? Não tenho muito o hábito… E trattoria? Massa? Ela apoiava o cotovelo na mesa e o rosto na mão espalmada, voltou-se a ele segurando o queixo com dois dedos. Me liga na sexta-feira, pode ser?

Ele pagou a conta e despediram-se bem mais formalmente do que ele esperava quando chegaram. Esteve com a namorada naquela noite, mas ela lhe parecia insuportável em sua juventude: deu-se conta que tinha ao seu lado alguém que ele gostava de exibir, e que talvez gostasse mais de seu dinheiro do que dele mesmo. Roberta não lhe saía da cabeça, assim como o número de telefone que ele repetia para não esquecer. Ela estava distraída no trabalho, e chegou a cometer um erro, que por sorte pôde corrigir a tempo: ia receitar um remédio de cachorro para um gato. Leonardo podia ter seus vários defeitos, mas era extremamente carinhoso e dedicado, e o episódio da doença os havia unido ainda mais. Ela não superara sua morte, e sentia sua falta; mas tinha uma vida para viver, outra vida a construir, na verdade, e Lúcio parecia perfeito para ser seu companheiro, até onde ela sabia, pelo menos. Ficou feliz que não o tivesse beijado no mesmo dia, nunca foi de sua natureza, mas decidiu aceitar seu convite para um jantar, quando ligasse.

Chegou a sexta. Ele ligou pouco após o almoço; uma gravação dizia que o número não existia. Ficou nervoso, repetiu várias vezes a operação, com o mesmo resutado. Sua memória teria falhado? Experimentou variações, nada. Em seu desespero, pesquisou por veterinárias com o mesmo nome, achou três, mas nenhuma era aquela, que também nunca disse o sobrenome. Ela achou estranho ele não ligar, e, sozinha em seu apartamento, amaldiçoava-se por ter construído tantos sonhos com aquele homem, também por não tê-lo beijado no café: ele deve ter se aborrecido e desistido de tudo. Ele estava tratando tão mal a namorada que foi ela quem terminou o relacionamento, mas teve raiva da indiferença dele. Vivia esperando o próximo dia dez, que era o único meio que via de rever Roberta. Ela se convenceu de que fora esquecida e foi criando o hábito de beber vinho todas as noites; estava quase bêbada uma noite, quando teve uma ideia: olhou a planta do apartamento, que estava esquecida em algum armário, e achou o telefone da construtora. Na manhã seguinte, não conseguia se decidir a ligar: não é papel da mulher. Uma taça da garrafa que sobrara da noite anterior a ajudou a discar o número. Concivil, bom dia. Eu gostaria de falar com Lúcio Medina, por favor. Desculpe, senhora, aqui é atendimento a clientes. E você pode tranferir? Não é possível, mas vou te dar o telefone da secretária dele. Ela anotou na própria planta e agradeceu, deu a última golada no vinho e discou o novo número. Concivil, presidência, bom dia. Eu gostaria de falar com o sr. Lúcio Medina, por favor. O sr. Medina está em reunião, gostaria de deixar recado? Sim, peça para ligar para Roberta, no número tal e tal. De onde? Como assim? De qual empresa? De empresa nenhuma. Você é parente, amiga? Diga que é a Roberta do cemitério. Roberta do cemitério?! Ele estava se despedindo de alguns engenheiros na porta do escritório, e quando ouviu aquilo correu para tomar o telefone da secretária.

4

Roberta? Oi Lúcio! Espera que vou transferir pra minha sala. Fez um sinal à secretária e entrou. Roberta, eu tentei te ligar, caía numa mensagem. Que número você discou? Ele disse. É vinte e sete, não dezessete. Putz, eu ainda tentei trocar o três por seis, e… poxa, me perdoa. Não tem problema, ela mentiu, mas pense duas vezes antes de dizer por aí que tem ótima memória. Poxa, eu não sei o que dizer, nunca aconteceu… Relaxa, Lúcio, não é o fim do mundo; você está ocupado, não? Na verdade não, eles já se foram. Tá tudo bem contigo?, já faz um tempo… Tá sim, mentiu de novo, sabe como é, o de sempre… Onde estávamos mesmo?, brincou ele. Ah, já esqueci, acho que você ia perguntar alguma coisa. Roberta, você quer jantar comigo? É claro que quero, eu te liguei, não? Que tal sexta-feira? Que tal hoje? Ele sorriu da pressa dela, depois da resistência inicial. É melhor ainda! Massa? Adoro massa. Que horas? Nove? Nove. Quer que eu te busque ou nos vemos lá? Não precisa, eu vou de carro, onde fica? É no Araucária, entra no site que tem um mapa. Qual o endereço? Da trattoria ou do site? Dos dois. Faz uma busca por Nonna Dora, dois enes, a rua é Prospero Tranquili, o número é… espera um pouco… quatrocentos e oitenta. Que cara sortudo esse que se chamou Prospero Tranquili, será que ficou tranquilo depois da prosperidade? Você tem um senso de humor peculiar. E isso é bom? Não tem nada em você que não seja bom. Você precisa me conhecer melhor, então. É o que mais quero. Às nove então? Sim, estarei lá. Um beijo. Beijo, tchau.

Ele chegou com dez minutos de antecedência e pediu uma água com gás. Ela chegou com apenas dez minutos de atraso, isso porque iniciou as preparações uma hora e meia antes. Estava em uma saia verde, justa, pouco acima do joelho, e uma camisa de um azul esverdeado, ligeiramente transparente. Era mais ousado do que qualquer coisa que jamais usara, havia comprado naquela tarde: ligou para a colega que lhe devia um favor. O sapato era azul, aberto, exibindo belos dedos, com esmalte incolor, a exemplo das mãos. O batom era de um vermelho discreto, assim como a sombra verde; completavam o arsenal muitos lápis, pós e cremes. Ele a recebeu com um sorriso e dois beijinhos, disse que estava linda. Vestia um terno risca de giz, preto, camisa branca e uma gravata verde-amarelado, sapatos pretos que brilhavam e um relógio prateado enorme. Puxa, que confusão, não? Nem me fala, eu comecei a desconfiar que você tinha esquecido meu número, aí eu achei o número da construtora na planta do apartamento. Ele riu. Meu telefone está na lista. Ah, eu jogo fora, me acostumei a usar internet. Que bom que deu certo, estou muito feliz que você tenha aceitado. Arriscou um carinho em seu rosto. Calaram-se quando o garçom trouxe os cardápios, ela voltou a pedir o refrigerante favorito, ele pediu bruschettas de entrada. Me diz, você é daqui mesmo? Não, toda minha família é do Mato Grosso, eu vim com  dez anos; depois todos voltaram, menos eu. Uma irmã estava conversando comigo de vir para cá, o Leonardo deixou alguma coisinha, e pensei em montar uma clínica minha, ela ajudaria; mas não consegue se desenrolar. É homem? É, isso e várias outras coisas. Tem mais irmãos? Um meio irmão, a gente não tem muito contato com ele, está no acre. E você? Bom, eu já contei um pouco, da minha mãe biológica eu fui o único, tenho dois irmãos de criação, nós não nos falamos: são uns fracassados que fumam maconha até hoje, provavelmente, não surpreende que ela tenha me escolhido; eles me odeiam, é claro. E seu padrasto, é vivo? Sim, eu dou uma mesada a ele, faço uma visita ocasional, ele já está surdo, não me reconhece também. Que triste. Mas, Roberta, você deve levar adiante essa ideia da clínica, mesmo sem sua irmã. Às vezes me parece que você ainda está num estado de choque e não quer começar uma vida nova. Não é bem verdade, eu não estou aqui com você? Ele repetiu a mesma carícia terna no rosto, mas desta vez escorregou a mão para sua nuca, e deu o primeiro impulso, que ela respondeu com vontade, aproximando os lábios. Foi um longo beijo; ela já sentia falta daquela sensação.

Bom, o gnocchi à bolonhesa é uma especialidade, o penne à carbonara também, do que você gosta? Ah, gosto muito de lasanha. Eles têm uma aos quatro queijos que é divina. Você vem sempre aqui então? Sim, eu gosto bastante. E quantas mulheres você já trouxe aqui? Só duas, ele deveria dizer dezenas, minha ex-esposa e você. Mentiroso. Haviam juntado as cadeiras e ele a abraçava pela cintura, ela mergulhou a cabeça em seu ombro. Então lasanha para você e penne para mim. Vinho branco? Sinalizou ao garçom e fez os pedidos. E como é a vida na construtora? Ah, trabalha-se bastante, temos cinco unidades em construção agora, são centenas de empregados… Você abriu com o dinheiro da herança? Sim, na verdade eu tenho cinquenta por cento mais um, e três outros engenheiros entraram com o restante; um estudou comigo, na verdade. Você estudou aqui mesmo? Sim, na federal, e você? Também, mas certamente bem mais tarde. Está me chamando de velho? Não, Lúcio! Estou dizendo que já tinha quase trinta quando comecei a estudar. O que você fazia antes? Trabalhava no shopping, vendedora; era um inferno, não tinha fim de semana. As bruschettas chegaram, ela as elogiou muito; pediram água para limpar o paladar e seguiram se beijando. Faz muitos anos que você se separou, nunca quis… Casar de novo? Não. Por convicção ou por que não conheceu ninguém? Ele se desvencilhou o abraço e respirou fundo. Olha, teve uma pessoa com quem eu me envolvi de verdade, mas foi logo depois do divórcio, eu não queria ouvir falar em casamento, até experimentamos morar juntos, mas foi o bastante para que fosse pelo ralo. De lá para cá, não sei, às vezes me parece que foram apenas preenchimento, não significavam nada, nem duravam muito. Eu fico pensando que elas só querem meu dinheiro, e é o mais provável. Você acha que eu só quero seu dinheiro? Não, você não, você… transmite segurança. Mais um longo e vigoroso beijo. E você, desde que ele se foi… não aconteceu nada? Mas é claro que não! Que pergunta, se você nem queria sair comigo! Eu nunca nem aceitaria aquele café se você não tivesse me impactado tanto desde a primeira vez. Eu te impactei? Nossa, eu me lembro até hoje como você estava linda de luto. Pára, Lúcio, isso já é demais. Tudo bem, me desculpa. Olha, eu até estou usando minha camisa da sorte. Você tem uma camisa da sorte? Bem, é a camisa do dia em que eu te vi pela primeira vez, e pela segunda também. Mentira. É sério. Os pratos foram servidos, e a conversa íntima deu lugar a comentários sobre a aparência dos pratos da Nonna Dora, logo a elogios ao sabor, aí então Roberta ergueu a taça e fez uma confissão. Sabe, eu tenho tomado muito vinho ultimamente. Ah,vinho faz bem. Não, eu tomo meia garrafa todas as noites, isso me preocupa; eu mal bebia antes. E por que então você acha…? Ansiedade, é claro. Eu estava esperando alguém me ligar… Roberta, eu quero te agradecer por ter tomado a iniciativa de me procurar, hoje eu vou salvar seu telefone. Assim que terminaram de comer, a primeira coisa que fizeram foi registrar o número um do outro na memória.

5

Eu tenho ótimos vinhos em casa, sabia? Ah, é, espertinho? Tá achando que eu caio nessa? E música, você gosta de quê? Ah, de MPB, basicamente. Roberto Carlos? Sou apaixonada por Roberto Carlos. Eu tenho a coleção completa, até o Louco Por Você, o que ele proibiu; custou uma fortuna esse LP. Ele estava digitando a senha do cartão. Tá um pouco tarde, meu turno amanhã é pela manhã… Vai ser só uma garrafa, eu prometo. Beijaram-se. Pediu licença para usar o banheiro. Lá fora ele explicou: só acontece que eu moro um pouco longe, você não quer deixar o carro em casa? Ele ficou admirando as torres que “ele” construiu, fez questão de descobrir o apartamento dela. Dirigiram quase meia hora para chegar ao condomínio dele.

Você já ouviu este disco? Não, mas já ouvi falar, é bom? Não é o melhor dele, mas eu gosto. Beijavam-se no sofá enquanto as taças esperavam na mesa de centro. Depois de um tempo ele se permitiu percorrer o corpo dela com a mão livre, ela cravava as unhas no pescoço dele, ele pressionava o crânio dela com as duas mãos e beijava com mais volúpia, passou ao pescoço, à área atrás da orelha, dava mordidelas no lóbulo; ela arrancou-lhe de vez a gravata e abriu alguns botões da camisa da sorte para acariciar os pelos em seu peito, ele sussurrou que fossem para o quarto. Ele providenciou uma luz indireta, trocou o Rei por um smooth jazz e ligou o ar condicionado, ainda que não estivesse quente. Beijaram-se e tocaram-se mais um pouco, sentados na beirada da cama, primeiro, e depois deitados; ele tentou abrir a saia dela, não conseguiu, ela o fez facilmente, revelando uma charmosa lingerie verde, o que já era mesmo o melhor palpite dele a partir da transparência da camisa, que ele desabotoou sem problemas. Enquanto a beijava na orelha, ficou claro que ela gostava, ele passeava as pontas dos dedos pela parte interna das coxas dela, ela tinha fremidos de desejo, até que se virou por cima dele, ainda de calça, cavalgando-o; seus longos cabelos negros caíam sobre o rosto dele, faziam cócegas, ele a segurava pelas ancas e erguia a cabeça para tentar alcançar seus lábios, ela fez uma brincadeira de dominadora, dando e tirando, até que escorregou para trás, desatou-lhe o cinto e abriu-lhe a braguilha. Dentro da cueca, o membro de Lúcio, nem grande nem pequeno, latejava – sua ida ao banheiro antes de sair do restaurante o resguardava de qualquer imprevisto; ela o tirou para fora, brincou com ele com a mão e depois com a boca; ai, Roberta, faz assim, faz, ele gemia. Ela se ergueu, tirou o sutiã, tinha seios pequenos muito bonitos, auréolas escuras; rodou para o lado e tirou a calcinha também, foi a vez de ele saborear seus seios e então suas coxas e por fim os lábios que não falam. Não falavam havia muito tempo, mas naquele momento diziam venha e me penetre agora mesmo. Ele entendeu e subiu por cima dela, iniciando movimentos vigorosos que lhe arrancavam ais e uis; ora apoiava-se nos braços esticados, ora desabava todo seu peso sobre ela, o que a agradava muito; depois de um tempo, ela ficou apoiada sobre as mãos e joelhos sobre a cama enquanto ele, em pé, encaixava os dedos na bacia dela, trazendo seu traseiro contra seu falo, ela olhava para trás com um sorriso lascivo que lhe realimentava o ímpeto: puxou-a pelos cabelos. Ela estava muito excitada, seus fluidos ajudavam os dois a nem perceberem o preservativo. Quando se sentiu cansado, ele se deitou e ela enfim o cavalgou de fato, os cabelos voltavam a cair sobre o rosto, ele voltava a se erguer, buscando agora seus seios. Ela começou a intensificar os gemidos, que já pareciam mais gritos, até que um sorriso beatífico lhe invadiu o rosto; ele pediu que ela se deitasse e a cobriu, penetrando-a de modo rápido, animalesco, até que ele explodisse em prazer, com urros graves, guturais.

Deitaram-se lado a lado, exaustos demais até para dar qualquer atenção um ao outro. Foi ela quem falou primeiro: eu cheguei a pensar que nunca mais ia sentir isso. Bom, eu há muito tempo não sentia com essa intensidade. Verdade? Claro, e para você, também foi bom? Nossa, preciso dizer? Não deu para perceber? Ele se virou de lado, apoiado em um cotovelo; vaidade e excesso de confiança fizeram-no cometer uma grosseria, agravada por um equívoco imperdoável. Então, eu transo melhor que o Leandro? Ela ergueu o tronco. Leandro? Leandro?! Eu não acredito que você foi falar isso, e ainda troca o nome, você também! Pulou da cama e começou a procurar as peças de roupa, que ia vestindo enquanto ele tentava consertar a burrada. Roberta, me desculpa, foi uma brincadeira sem graça, eu sei, vamos conversar. Ela estava irredutível, terminou de se vestir e determinou que ele chamasse um táxi, passou na sala e bebeu meia taça de vinho em um gole só. Reiterou a ordem. Ele pensou que o tempo de um táxi chegar era o suficiente para ela se acalmar, e chamou. Ela foi até o som e pegou o disco do Roberto Carlos, apoiou-o na estante e o quebrou com o sapato. Ele não quis insistir, esperou em outro cômodo até que o tocasse a campainha, deu uma nota ao motorista e não conseguiu arrancar nem um boa-noite. Assim terminou o primeiro encontro de Roberta e Lúcio. Nada que rosas brancas não resolvessem no dia seguinte, entretanto.

Digno de Nota

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Minha memória mais remota é da tranquilidade de uma grande sala sem janelas, a temperatura era sempre mantida um pouco fria; eu ficava acomodada com minhas colegas, lembro que eram muitas delas, bem juntinhas umas das outras, o que nos mantinha aquecidas. Eu não conseguia ver muito ali empilhada como estava, mas podia ouvir passos sempre que uma porta muito pesada se abria, o silêncio retornando depois que ela se fechava com uma pancada assustadora. Me contaram depois de onde nós tínhamos vindo, da capital, onde éramos impressas em série, quase iguais, só nosso número diferia. Não sei se era boato, mas fazia sentido: todas nós carregávamos a figura de uma onça, coisas que chamam de marca d’água, a mesma fitinha e o mesmo número cinquenta, em algarismos e por extenso; também duas assinaturas, bem pequenas, e uma frase falando num tal de Deus. Bem, como eu disse, minha memória só alcança até aquela sala confortável, mas registra muita coisa desde então; se não for lhes ocupar o tempo à toa, eu poderia contar algumas.

Um dia ouvimos um barulho diferente, um estrondo que assustou a nós todas. Aquelas com uma visão privilegiada narravam o acontecido e todas espalhávamos suas palavras. E o pânico era geral: uns homens encapuzados haviam aberto um enorme buraco numa das paredes e estavam sequestrando minhas amigas aos milhares, jogando-as dentro de sacos pretos que eram levados para dentro do buraco. Eu não fiquei tão assustada: aquela vida monótona estava me deixando neurótica, e mal podia esperar para ver o que ia acontecer. Não demorou a que eu fosse parar em um dos sacos, e aí fomos chacoalhando por um bom pedaço até sermos arremessadas em outro lugar, onde esperamos um pouco. Ouvíamos barulhos de gente, mas na época não éramos capazes de entender nada, e eles pareciam não nos escutar: foi aí que eu descobri que a voz da cédula vibra numa frequência inaudível para os humanos.

Fomos transportadas uma e outra vez, aí ouvimos sons do que eu descobriria depois ser algo chamado música, sons de vidro se quebrando, muita gente falando e umas coisas diferentes que eles fazem com a voz, depois eu aprendi que eram gritos e risos. Tudo era aprendizado para mim, todos aqueles sons novos, só a escuridão total que não me agradava. Um dia me tiraram do saco e me puseram em uma caixa um pouco rasa, que fazia um barulho de metal quando fechava. Pude ver muito pouco do ambiente, parecia ser um galpão; eu obviamente não conhecia essa palavra, ou palavra alguma, mas depois eu explico como aprendi língua de gente: vou contar sem ficar me interrompendo com isso, ou vamos longe demais. A caixa, que era uma mala, foi carregada por um homem que assobiava até um carro grande, que ficava tremendo e fazendo barulho. Quando paramos, ele desceu com a mala, conversou muito tempo com outro homem de voz fina, depois os dois conversaram com uma mulher e nos levaram a um lugar onde abriram a mala e passaram a desfazer os maços em que estávamos atadas e a contar uma a uma: foi meu primeiro contato com os números, a primeira coisa que aprendi em língua de gente. Lembro quando a mulher me pegou e olhou contra a luz, vi que estávamos em uma sala delimitada por divisórias que não iam até o teto. Era a maior sensação de liberdade que eu já tinha experimentado, estava feliz. Vi que só contaram e analisaram dois maços, e aí passaram a retirar da mala e a contar os maços inteiros. Houve mais alguma conversa e então o homem que me trouxe pegou mais quatro maços e deu dois a cada um dos outros. Eu estava em uma pilha em cima da mesa, o homem que me trouxe foi embora e nunca mais o vi.

Depois a mulher me colocou numa caixa verde, com um painel de botões na frente, e voltou a escuridão. Pensando bem, não foi meu primeiro cofre, porque a sala de onde fui levada era nada menos que um imenso cofre. Ficamos lá conversando, metade de nós ainda muito assustada, a outra metade terrivelmente excitada com um mundo inteiramente novo. No dia seguinte, abriram o cofre e nos jogaram em um saco de pano, dois na verdade, e entramos em outro carro que fazia barulho, dava para ouvir a mulher da véspera e um outro homem. Rodamos até chegar a um lugar onde fomos recebidos primeiro por uma moça de voz irritante e depois por uma senhora rouca, que falava enquanto caminhava até uma sala onde fomos postas em uma mesa e expostas à claridade fluorescente de outra sala de divisórias. Aí eu passei pela experiência mais inusitada. Nós éramos colocadas em um aparelho e escorregávamos uma em cima da outra em uma velocidade estonteante. Aconteceu outras vezes depois, mas, como eu já disse, tudo era descoberta. Ainda ouvi a voz das duas mulheres enquanto minhas colegas eram acomodadas em mais um cofre, este maior que o anterior. A porta se fechou atrás de nós, mas se abria às vezes ao longo do dia. Estávamos em companhia de cédulas que não conhecíamos, até umas verdes, diferentes, com rostos de sujeitos esquisitos. Eu não sabia então que lugares como aquele seriam como uma casa, a que voltaria várias vezes ao longo de minha vida útil.

2

Passou um bom tempo, eu ainda não tinha uma noção exata de dias, em que aquela porta se abria a intervalos, deixando entrar alguma luz; às vezes retiravam algumas de nós aos maços, às vezes traziam mais. Fiquei muito amiga de uma cédula azul, que trazia um peixe estampado; ela também era bem jovem e nenhuma de nós sabia que ela tinha o dobro do meu valor, talvez por isso ainda não fosse esnobe e arrogante como outras que encontraria depois. Uma vez, logo que a porta se abriu, entrou alguém na sala e a moça deu um grito; a outra pessoa era um homem. Ali eu aprendi um som que os humanos fazem para pedir silêncio; dali em diante só ouvimos gemidos abafados, que não sabia dizer se eram de prazer ou desespero, e um grunhido ritmado, que foi se intensificando até dar lugar a uma respiração ofegante. Eu estava extasiada. Que mundo interessante!

Até que um dia me levaram, através de um pequeno corredor; por instantes pude ver quatro cabines com um computador e um vidro separando aquela saleta de um salão grande, repleto de gente. Fui depositada em uma gaveta, com outras colegas iguais a mim, e pela primeira vez conheci outras cédulas: vermelhas, que traziam uma arara, roxas, com uma garça, outras azuis, mas com o desenho de uma tartaruga; havia também uns pedaços redondos de metal, de vários tamanhos. Foi com a experiência de minhas novas vizinhas que fui aprendendo cada vez melhor o que eram os números, e pude entender enfim que eu era uma cinquenta. Ou o que significava 8499A, que era o fim do meu número de série, e como me chamavam até então; aquelas veteranas me puseram o apelido de Tata.

Eu tinha ficado no fundo da pilha, e várias vezes a gaveta se abriu até que eu fosse retirada; tchau Tata, boa sorte no mundo, desejaram as colegas. Fui entregue a uma velhinha, eu já conhecia cada vez melhor os humanos, e sabia que ela era mais velha; já começava a ser capaz de interpretar a entonação da voz deles, e vi que ela era muito educada, assim como a caixa que eu mal pude conhecer. Fui guardada em uma bolsinha que fazia um estalo seco ao fechar; quando ela se abriu, fui parar em uma lata de biscoito, e fiquei lá muito tempo. Eu ouvia o rádio ligado quase o dia todo; às vezes ouvia uma jovem que conversava com ela; ficava cantando e lavando louça. Uma vez eu ouvi a porta abrir e se fechar, a velha saiu. A jovem deixou a limpeza da casa e fez uma enorme bagunça no quarto, abria todas gavetas e revirava todas as caixas, até que abriu minha lata. Fui para em um bolso de calça. Dali a pouco a velha voltou, eu entendi da conversa que a moça precisava sair mais cedo, algumas palavras eu já reconhecia. Ela pegou um ônibus, depois outro, e chegou em casa onde duas ou três crianças faziam algazarra.

Conversou um pouco com um senhor aparentemente idoso, e ouvi barulho de cozinha; mais tarde chegou um homem, as crianças fizeram mais algazarra. Aí ela me tirou do bolso, eu e mais várias iguais a mim, e eles começaram a discutir até os gritos; nós ficamos largadas sobre a mesa, então deu para ver tudo, até quando ele começou a bater nela. Ela chorava estendida no chão quando ele meteu a mim e a mais três colegas no bolso da camisa e pôs as restantes numa gaveta no quarto. Saiu gritando mais um pouco, caminhou em uma rua em que havia barulho de ônibus e entrou em um lugar onde havia música e as pessoas falavam alto. Um pouco como o galpão por onde eu tinha passado. Passou lá muito tempo, e dava para ver quando ele levava um pequeno copo à boca, estava com muita sede. Aprendi mais algumas palavras, que eles repetiam o tempo todo, só depois fui descobrir que eram palavras sujas. Ele praticava uma brincadeira com bolas sobre uma mesa e um taco de madeira; eu via tudo quando ele curvava o corpo para frente. Quando já era tarde (eu já aprendia a medir o tempo), ele nos tirou do bolso, os amigos dele se juntaram em torno, parece que era muito dinheiro; mas eu acabei voltando para o mesmo lugar, e se juntaram a nós umas notas menores amassadas e fedorentas. Despedi-me da Cláudia, que me acompanhava desde o grande cofre da minha infância.

Quando chegou em casa, pronunciou uma frase que, pela movimentação que se seguiu, entendi que significava uma ordem  para esquentar a comida. Aprendi muito de língua de gente ali, todos falavam alto e onde eu fiquei, na mesma gaveta com as outras, era muito perto da sala; devia ser uma casa pequena. Ouvi outras brigas violentas e choro, algazarra dos meninos, e o idoso, que falava sozinho quando o casal saía. Todo dia o homem recorria à gaveta, e fomos ficando poucas rapidamente. Um dia eu voltei a ser escolhida, e passeamos no bolso de sua camisa aberta. No caminho para o bar (palavra que logo aprendi), ouvimos alguém abordá-lo, pelas costas, e pedir o dinheiro (palavra que aprendera muito antes). Ele se virou e entrou em luta com o ladão: foi ferido; eu via lá do chão onde havíamos caído.

3

O bandido nos recolheu com a mesma mão ensanguentada que segurava o canivete. Correu até um beco, guardou o canivete num bolso e a nós em outro, e pulou um muro. Ouvi barulho de água, estava lavando as mãos. Depois percorreu uma distância e escalou um portão de ferro; alguém abriu a porta e gritou, uma mulher, ele a ameaçou e saltou para o chão. Correu até um daqueles lugares com música, talvez fosse até o mesmo. Deu para escutar ele pedir a tal branquinha umas quatro vezes, até que as vozes cessaram de súbito, passos pesados se encaminharam a ele, eram dois. Começaram a questioná-lo rispidamente, sua voz era trêmula, e arrastaram-no para fora. Meteram a mão no bolso onde eu estava e tiraram a Sílvia, a Joyce, a Tânia e a mim, entendi quando reclamou que era “só isso”, repartiram-nos entre os dois e lá fomos pra outro bolso, todas amassadas. Pudemos ouvir o rapaz sendo espancado por vários minutos, e então entramos no carro que fazia um barulho gozado, que ouvi várias vezes aquele dia. Quando saí do bolso, estava em um supermercado, e o homem que me tinha tomado por último pediu um pacote de cigarros: foi quando fui parar em outra daquelas gavetas divididas.

Depois disso eu circulei um bocado. Comprei livro, cachorro quente, gasolina, servia de troco quando alguém aparecia com uma garoupa (e o funcionário sempre reclamava); conheci carteiras, bolsas e outros bolsos malcheirosos, descansei em caixas-registradoras, voltei ao banco, quer dizer, não o mesmo, outros, até o dia em que fui parar na carteira de um sujeito aparentemente rico. Tinha a companhia sempre de outras onças e garoupas, e como ele nos deixava em um balcão na sala, dava para perceber que a música era diferente, as pessoas falavam baixo e cada uma de uma vez. Foi o período em que eu aprendi palavras mais complicadas. Um dia alguém me tirou da carteira, e não era ele: devia ser seu filho, que usava uma jaqueta de tecido sintético colorida, em cujo bolso eu fui parar, sozinha. Ele desceu o elevador e entrou no carro, arrancava fazendo barulho com os pneus e escutava uma música repetitiva muito alto. Desceu do carro, andou alguns passos e cumprimentou alguém numa linguagem que me era estranha; foi muito rápido: ele me pôs na mesa e recebeu alguns pacotinhos plásticos. Estive na carteira do sujeito de fala engraçada algum tempo, um dia eu o ouvi conversar com um daqueles sujeitos com botas, que tinha uma risada cínica, e eu mudei de mão mais uma vez.

Passei um tempo com ele, e descobri que aquele tipo de gente se chama policial, descobri porque a mulher dele ficava muito preocupada com sua profissão – a mim, parecia um jeito fácil de fazer dinheiro. Bem, lá na casa deles também havia uma moça que cuidava da casa, e não é que eu reconheci a voz da mesma que havia me tirado da caixa de biscoitos da velhinha? Eu estive com a esposa dele até o dia em que fui dada em pagamento à empregada. Não esperava que ela me reconhecesse, já disse que somos todas quase iguais. Na gaveta dela, não encontrei nenhuma de minhas antigas colegas, nem o marido estava por perto: teria morrido aquele dia? Um dia ela me usou para pagar a padaria, e alguém que parecia ser o dono me pôs na carteira no fim do dia. Em casa, ele jantou com mulher e filhos, e disse que ia sair para uma reunião da maçonaria; escutei ele conversar com uma mulher, discutiam o preço, ela entrou no carro e ensinou como chegar no “ambiente”. Ouvi todos aqueles barulhos que eu já sabia o que significavam, e no fim eu fiquei com ela. Da bolsa dela, ainda a ouvi trabalhando três vezes, até que bem de madrugada ela se encontrou com um tipo grosso, que exigia sua parte do trato. Com ele eu fiquei pouco, por sorte, ele me usou em outro supermercado.

De lá, eu voltei a um outro banco, estive no cofre muito tempo, fiz amizades, até aprendi um pouco do idioma daquelas notas verdes. Um dia levaram a mim e a muitas outras para o caixa, mas eu não fui para a gaveta. Um homem que não aparentava ter todo aquele dinheiro nos pôs em uma maleta e nos levou; quando a maleta se abriu, vi um homem muito elegante, que sorria. Ele naquela mesma tarde se encontrou com outro homem, e pude entender que se tratava de uma licença de qualquer espécie, que aparentemente custava todo aquele dinheiro. Despediram-se de forma muito cortês: como é bom estar com gente de bom nível! Outra pessoa apareceu e me levou até o banco. Veja só, era o meu primeiro banco! Fiquei até emocionada. Muito tempo passei lá, acostumei-me à rotina – a vida na rua já perdera a novidade. Até que ouvimos um barulho enorme, gritos, um tiro foi disparado. O rapaz que abriu o cofre estava pálido, e atrás dele um homem de capuz o pressionava a encher um saco preto. Aquilo disparou em mim uma nostalgia… Aí se ouviu o barulho que fazem os carros de polícia, era bem no exato instante em que o funcionário me tirava do cofre. O homem de capuz se assustou e atirou. A cabeça do pobre rapaz foi estilhaçada, e o maço do qual eu era a primeira cédula ficou encharcado em sangue. Por isso estou aqui, esperando para ser incinerada, por um crime que não cometi. Mas não me importa, posso dizer que vivi muito nesse tempo. E que os seres humanos são fascinantes!

Negócios, Como Sempre

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Lembrou-se dos amigos que o esperariam em vão para um jogo de cartas, logo após tomar a segunda bofetada, com as costas de uma mão enluvada. Obviamente pensava no desespero que viveria sua jovem esposa desde o momento em que foi abordado por três mascarados e jogado dentro de uma van de carga. Foi saindo da sede da empresa, já de noite, numa rua pouco movimentada que precisava tomar para chegar à estação de metrô. O líder dos sequestradores, que em momento algum pôs as mãos nele, voltou a perguntar pelos arquivos. À medida que o veículo fazia curvas, ele, de mãos atadas, era jogado de um lado para o outro. Em seu estado de pânico, era difícil pensar em respostas que lhe ganhassem tempo sem comprometer o segredo industrial de sua recente descoberta. Respondia que não estavam em seu computador portátil, o que era verdade – nenhuma empresa o permitiria – e foi finalmente constatado pelo terceiro bandido, que jogou o aparelho pela janela.

Naqueles tempos, havia uma indústria farmacêutica bilionária, e uma contraparte que não ficava atrás, apenas funcionando no subterrâneo, no nexo do crime organizado. Não só esta fazia troça de patentes de medicamentos comuns, mas lucrava principalmente com drogas ilícitas, que surgiam e eram proscritas a uma taxa assustadora, bem como suprindo uma demanda reprimida por medicamentos controlados. Como sempre, essas drogas nasciam no âmbito científico, com a melhor das intenções geralmente, e escapavam de todo controle: as organizações criminosas tinham bons profissionais, métodos eficientes, e nenhum escrúpulo, como já pudemos constatar. É o caso da serenina, substância sintetizada pelo laboratório onde Jeff Floods trabalha.

A van finalmente parou; a porta foi aberta e ele foi arremessado para fora, caindo de cara num chão de cascalho fino. Um pouco de sangue escorria de sua boca. Recebera pancadas cada vez mais fortes ao replicar às ameaças dizendo que o relatório de sua pesquisa estava no computador central da corporação farmacêutica, sob três senhas das quais ele só tinha uma, o que era invenção sua – mas eles não poderiam verificar no momento. O líder aproximou seu rosto mascarado do dele – Jeff só viu distintamente os olhos castanhos, calmos como os de um sacerdote. De um jeito ou de outro nós conseguimos o que queremos, Sr. Floods. É melhor cooperar. A um sinal, os dois capangas o arrastaram para dentro de uma casa, muito afastada de qualquer outra, de arquitetura antiga; foi depositado em um sofá.

Pediu água. Trouxeram e desataram-lhe as mãos. Como queria agora ter um comprimido de serenina. Verdadeira droga milagrosa, tinha o efeito de desativar os circuitos da ansiedade, e era usada de modo bastante restrito em hospitais psiquiátricos, mas rapidamente os usuários de drogas sintéticas, psicodélicas especialmente, descobriram que o uso associado de serenina garantia uma viagem confortável. Num segundo momento, pessoas que rechaçariam com horror a pecha de “drogado” passaram a municiar-se de um comprimido para qualquer situação estressante. Ligaram uma televisão: beisebol; ele não conseguia prestar atenção. Por momentos intermináveis, ficaram todos lá, em silêncio, ele mal abafando os soluços. Súbito, um quarto homem chega, trazia pizzas. Ele está vindo, anuncia. Revezavam na sua guarda, para comer, e ofereceram o que sobrou. Jeff não tinha apetite, e exausto, acabou adormecendo dali a instantes.

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Acordou sobressaltado com alguém batendo palma bem em frente a seu rosto. Seu corpo doía, pela posição inadequada e pelo rapto violento horas antes. Consultou instintivamente o relógio: passava pouco das três. Haviam posicionado uma poltrona à sua frente, na qual se sentava, encarando-o com um ar de escárnio, um senhor de meia idade, pouco mais velho que ele mesmo; não cobria o rosto. É um prazer enorme conhecer um colega tão brilhante, Sr. Floods. As informações que temos são deveras promissoras. Mas não há por que nos apressarmos, o senhor aceita um chá? Jeff assentiu com a cabeça. E o estranho sinalizou a um dos capangas; traga um copo d’água também. Com muito vagar, cortou e acendeu um charuto enorme.  Eu sei que o senhor não fuma. Aceita talvez um… destes? E sacou do bolso do sobretudo um comprimido azul-esverdeado. Vai ajudá-lo. Jeff esfregou os olhos, espreguiçou-se, e estendeu a mão direita.

Chegaram um copo d’água e duas canecas com a etiqueta do saquinho dependurada para fora. Jeff reconsiderou e disse que não tomaria o comprimido, ao menos por agora. Sabia que o remédio era de uso controlado por bons motivos: teria, ou poderia ter, após cessado o efeito tranquilizador, taquicardia e sudorese, e que se rebatesse a dose teria problemas de sono e eventualmente até paranoia (podia pensar que alguém queria sequestrá-lo, esboçou um sorriso auto-irônico). Como preferir, meu caro. Bem, eu não me apresentei. Nem posso, espero que entenda. Mas pode me chamar de Charles por enquanto. Como disse, eu também sou químico, e tomei a liberdade de dar uma olhada… e fez sinal novamente, ao que trouxeram um computador “de colo”, como dizem. Jeff reconheceu o aparelho e arregalou os olhos; significava que haviam entrado em sua casa.

Jeffrey Portmouth Floods havia abandonado o ramo dos cosméticos para dedicar-se a um doutorado em psicofarmacologia, em uma prestigiosa universidade, e foi prontamente contratado pela Alora Inc. Um de seus primeiros projetos foi exatamente o que lhe traria tamanho infortúnio. Um medicamento que representava uma fonte importante de receitas para a corporação: tinha alto de valor de mercado, seja pela demanda oficial ou pela paralela, mas também alto custo de produção. A ideia era aperfeiçoar e baratear o processo de síntese, e Jeff logrou um avanço decisivo. O projeto era altamente sigiloso, mas pensando bem agora, tivera uma conversa no restaurante da sede – que lhe parecia seguro – em que celebrava seus resultados. Era a única explicação para que a informação, tão recente, tivesse vazado. Os tentáculos da máfia farmacêutica eram implacáveis, e eles também buscavam uma forma barata de produzir a serenina, uma vez que, as coisas como estavam, saía mais barato pagar os costumeiros subornos para obter a droga do que fabricá-la nos laboratórios clandestinos.

Do bolso da camisa, tirou o comprimido e alcançou o copo d’água. O temor pela segurança da esposa o desestabilizava ainda mais. Providenciaram uma cadeira para o computador, e Charles mostrou a Jeff uma tela que ele conhecia bem. Aquela era uma parte acessória da pesquisa, quanto a isso estava tranquilo. Por isso, não hesitou em explicar ao, por assim dizer, colega o processo químico que na verdade apenas evitava a degeneração de uma substância intermediária. Mas a pergunta inevitavelmente veio: como transformar um benzodiazepínico corriqueiro na droga revolucionária, e sem o concurso de uma enzima que apenas podia ser obtida de pacientes em morte cerebral. Jeff insistia no silêncio; Charles se levantou e foi até a mesa onde deixou a caneca e o charuto, em um cinzeiro. Apenas deu de ombros, e Jeff foi brutalmente espancado por dois dos soldados rasos. Jogaram-no em um quarto sem janelas, com nada mais que um colchão e um jarro de água. A um só tempo, estava emocionalmente desesperado e quimicamente apaziguado. Pensava na esposa e como abandonaria tudo para mudarem-se para a América do Sul, uma vez findo o pesadelo. Não pôde dormir o resto da noite, até que abriram a porta na manhã seguinte.

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A tênue luz de uma lâmpada incandescente foi ofuscada por uma claridade de dia. Aquele que parecia ser o líder dos brutamontes pôs metade do corpo para dentro e acenou com a cabeça. Havia duas fatias de pão com manteiga e uma caneca de café sobre a mesa; sentou-se. Charles veio de outro quarto, tomou outra cadeira e desejou bom dia, sem resposta. O senhor recebeu um bônus pela sua descoberta, Floods? Isso representa o que, dez por cento do lucro que eles terão em um único mês? Jeff olhava com ódio para o homem grisalho. Eu não entendo tanta lealdade, sinceramente. Basta que o senhor me explique a síntese da serenina, e sairá ileso. O senhor e… e tirou de dentro do sobretudo uma pequena bolsa de couro vermelha, com detalhes em metal dourado. Era apenas uma confirmação.

Deixem Kathlyn fora disto, seus monstros. Com prazer, Floods, basta me ensinar seu truque. É complexo demais para explicar, ao menos sem todo o relatório. Consiga então o relatório. Eu já disse, ele é protegido por três senhas… Isso é balela, Floods, quer me convencer de que não tem acesso a sua própria pesquisa? Nós conhecemos o funcionamento da Alora. Nós temos gente nossa lá. O senhor pode acessar seus arquivos remotamente, Jeffrey, não é verdade? Ele redobrou o olhar de desprezo, pela intimidade do primeiro nome e por ter sido posto a nu. Apenas em conexões autenticadas. Isso não é um problema; o processamento de dados funciona em fins de semana, o senhor vai ligar e dizer que precisa acessar a base de dados de sua casa de veraneio. Empurrou um telefone através da superfície da mesa. Eu quero falar com Kathlyn! Charles olhou para o líder dos capangas, que sacudiu a cabeça negativamente. Ela está bem, prosseguiu, mas pode não estar em breve. Olhou para o mascarado que acompanhava cada movimento de Jeff, o qual sacou de um coldre uma arma de choque, que aplicou incontinenti ao pobre cientista.

Faça a ligação, Jeffrey! O senhor não tem alternativa. Ele havia caído da cadeira, e levou alguns segundos para se recuperar. Foi auxiliado a se sentar novamente. Tomou o telefone, tremendo. Eu não sei número de memória! Já está aí, basta pressionar o botão verde. Respirou fundo e pensou: que reputação eu posso ter a defender se o que eu quero é mesmo escapar para bem longe? Que futuro eu posso almejar numa corporação que provavelmente daqui a alguns anos vai me demitir para contratar outro jovem promissor por bem menos? Recobrou o sangue frio, depositou o telefone novamente na mesa. Charles, meu caro. O senhor tem toda razão. A Alora não me remunera de acordo com a importância da minha descoberta. E tem mais: daqui a alguns meses quando a nova técnica for adotada em escala industrial, vai ser algum executivo quem vai aparecer em revistas contando sua história de sucesso. Uma coisa se pode admirar na sua organização: a lealdade é recompensada. Sem circunlóquios, Jeff, vá direto ao ponto.

O que eu quero dizer é que, sim, eu posso acessar a base de dados da Alora. Entretanto, por uma medida de segurança, há várias versões do relatório. Charles e o líder dos capangas trocaram um olhar. Eu poderia simplesmente descarregar um dos documentos falsos, inventar uma explicação plausível e salvar minha pele e a da minha esposa. Vocês só descobririam ao tentar produzir. Isso é mais um blefe, Sr. Floods, Charles retomou a formalidade. Se fosse? Vocês só têm um jeito de descobrir, não? E por que então nos diria isso em vez de simplesmente levar adiante a manobra diversionista? Porque não quero mais trabalhar para a Alora. O mascarado-mor, que até então não lhe tocara, pegou-o pelo colarinho; os olhos castanhos já não expressavam calma. Que espécie de truque é essa, Floods? Permita-me explicar.

Kathlyn tomava sol dentro de um maiô verde, sobre uma espreguiçadeira de vime, propriedade de um resort dos mais exclusivos, onde os abonados de um país emergente descansavam da rotina estafante de gastar muito dinheiro. Jeff agora pertencia a esse time, e saboreava um martini enquanto vigiava o filho brincar na piscina. Era proprietário de uma indústria farmacêutica de porte intermediário. Contudo, sua renda maior provinha de outra atividade: protegido pela identidade de respeitável empresário, comandava a produção e a distribuição internacional de um cobiçado fármaco que, graças a ele, podia ser produzido sem grande sofisticação, clandestinamente. Jeff sentiu sincero pesar ao saber que a Alora Inc. declarara concordata. Ele apagara seus arquivos da base da empresa e os vendera a uma rival.

A Passagem

1

Jaime se emputeceu com a festa a dado momento. Bando de adolescentes tardios bem nutridos advindos de famílias de classe média alta se entupindo de maconha e birita e falando “véi” a cada três palavras. Ele era um pouco mais velho, já vivera aquele ciclo uma vez e agora, na segunda graduação, sentia-se um tanto ridículo perseguindo gatinhas de vinte anos. Até se esforçava para se enturmar, mas sempre chegava uma hora em que sua misantropia falava mais alto. Esta era uma delas.

Tinha ido à UnB de carona, seu carro estava quebrado; mas não queria pedir a seu amigo – vá lá, colega – para ir embora e lhe estragar a festa. E mesmo que tivesse crédito no celular provavelmente não ligaria pra pedir um táxi. Ia voltar andando; fazia isso quando estava puto, pra poder ficar maldizendo a sorte. Detalhe: morava na 912. Para quem não conhece Brasília, até o que é perto é longe para ir andando. Era chão pra burro.

Saiu do Teatro de Arena e contornou o Minhocão, que estava fechado, cruzou o estacionamento; na L3 parou no posto e comprou cigarros. Seguiu até a L2, à medida em que repassava todas suas desventuras amorosas recentes. Nem se lhes podia chamar assim, provavelmente, pois eram menos relacionamentos malogrados que quimeras que engendrava dentro da própria cabeça e que tinham o fim previsível. A mocinha da livraria, por exemplo. Dezenove anos. Você, um homem feito… feito de idiota! Era um dos grandes momentos de seu solipsismo. Ninguém vai rir, lembrava do conto do Kundera. Risíveis Amores. Poemas… chocolates… lembrava-se dos primeiros diálogos, em que descobria que aquela criatura que já lhe encantara pela beleza tinha um gosto musical e literário absurdamente compatível com o dele; lembrava-se do dia em que lhe deu uma pick-up de presente: sim, também tinham em comum o gosto pelo vinil. Putinha ingrata. Mas também você queria que ela ficasse obrigada a gostar de você por gratidão? A culpa é toda sua. O cheiro não vem do ralo; não é você que usa o banheiro? O cheiro do ralo vem de você. Ah, vai lá pede desculpas então. Por se apaixonar. Quando atravessava a 407, era a vez da loirinha, que veio a descobrir depois de um tempo ser lésbica (meno male, pensava). A professora veio a lhe lembrar de quando ela defendeu as experiências dos nazistas. Putinha nazi. Bem, era só um rostinho bonito e não tinha nada que ver comigo. Estava superada, mas na época foi uma paixão arrebatadora. Por conta de um olhar que lhe pareceu interesse, no primeiro dia de aula. Bem, tem aquela famosa linha do Bardo, que na verdade é de Marlowe, sobre amor à primeira vista. Eu sou o único idiota no mundo que leva isso a sério. Claro que estava suscetível dado o que viera antes (e já alcançava as 200): tinha pirado em resgatar um relacionamento antigo – que mal se configurara namoro – com a peculiar circunstância de que ela estava em outro estado, e casada. Claro que não serviu de lição, pois quando mal escapara da putinha ingrata pirou em outra mina com namorado. Fora outras de menor importância.

Estava chorando a essa altura. Porra, eu sei que eu sou um cara interessante. Tá bom, meio excêntrico, difícil achar alguém que compartilhe meu universo (como a putinha ingrata, por exemplo), mas porra… Será que me acham arrogante? Eu sei que eu sou bonito também; eu vejo como atraio olhares… olho verde… posso estar gordo, mas caralho… Lembrou do colega de trabalho que era um paquiderme e tinha uma esposa linda – aliás detestava que levassem esposa e filhos para exibir. Estava atravessando o eixinho. Que será que eu estou fazendo ou deixando de fazer que não me permite conseguir uma mina?

Ofereceu-se-lhe então uma alternativa: atravessar o eixão por cima, mais rápido mas um bocado perigoso (ainda havia bastante movimento), ou encarar as fétidas passagens subterrâneas. Provavelmente não foi por prudência, mas para punir a si mesmo que optou por passar por baixo. Era um corredor de uns três metros de largura, coberto de azulejos – vários faltando – cobertos de pixação; o odor era nauseabundo: de urina se estás com sorte, amiúde de merda mesmo. Era também perigoso, mas ele estava tão autocentrado que nem se preocuparia com um possível assaltante ou agressor.

Estava tentando analisar objetivamente sua condição. Ora, se estudava com gente muito mais jovem – e daí provavelmente não sairia nada – e trabalhava num ambiente exclusivamente masculino, estava bem servido. Não gostava de dançar. Preciso frequentar um lugar com gente da minha idade… mas também esta cidade, vai tomar no cu!

Foi então que teve a impressão de ver algo se mover. O túnel não tinha iluminação, a pouca luz que entrava pelas extremidades mal permitia evitar uma mina terrestre de excrementos. Em seguida viu com mais clareza: de fato, o que parecia ser um anão vinha em sua direção e voltou correndo assustado quando percebeu sua presença. Correu atrás do vulto e viu quando ele retirou um pedaço de um azulejo que estava quebrado e pareceu acionar um comando e de repente uma seção da parede girou, como nos filmes de aventura, e o anão, ou o que fosse, entrou pela passagem.

Caralho, faz tanto tempo que eu tomei ácido! Ainda que soubesse que um flashback, ou mesmo uma trip propriamente dita, não podia ser tão vívido. Tudo bem, estava escuro, a ação mais se lhe insinuou do que foi vista propriamente, mas sabia que não era alucinação. Acendeu um cigarro e aproximou a chama do isqueiro da parede até achar o azulejo quebrado; retirou o pedaço solto e viu um pequeno botão metálico, que lhe lembrou os interfones de Buenos Aires (o que lhe lembrou a mina suíça em quem ele também pirara enquanto estava lá, a putinha dos olhos hipnóticos). É claro que não demorou em pressioná-lo. De um golpe, a o chão sob seus pés girou da mesma maneira e ele se viu um novo corredor, perpendicular ao anterior, com uma tênue luz fosforescente que não parecia vir de lugar algum. Jogou o cigarro no chão, pisou em cima e guardou o isqueiro.

Caminhou pelo que pareciam ser uns quinhentos metros, e não se via o fim do corredor, nem tampouco o começo ao se olhar para trás. Percebeu que o inusitado da situação lhe tirava a cabeça de seus infortúnios, e lhe parecia inverossímil que havia meia hora estava numa festa universitária (ainda que dissesse que a UnB não tinha festas universitárias de fato, um saudosismo besta mas com algum fundamento). Também não iria estar em casa dentro de mais meia hora. Não tinha ideia do que podia acontecer. Pronto, estou no meio de um conto fantástico. Parou um instante para descansar, e de repente sentiu a camiseta puxada por detrás. Era um homenzinho calvo e narigudo, com olhos enormes, com calça e colete bordô e camisa branca, e uma gravata borboleta de um vermelho vivo. Não te vi em algum filme do David Lynch? (ele se acreditava muito espirituoso). O anão tirou uma carta do bolso do colete e entregou a Jaime. Era um sete de paus. Quando voltou o olhar a ele, tinha um sorriso meigo nos lábios. Falou numa voz aguda e rouca, com forte sotaque: Agorra que senhorr entrrou… Querr conhecerr… Nosso escrritório? Olhou a carta e as figuras estavam se escorregando e caindo para fora da carta, que ficou toda branca, ao fim. Abaixou-se para pegá-las no chão, mas elas viraram borboletas, que saíram voando, e de repente desapareceram para dentro da parede à sua esquerda. Ele experimentou com o braço e verificou que ela era uma espécie de holograma, que se podia atravessar. Olhou de novo o homenzinho, que lhe fez uma gesto para que prosseguisse. Chefe muito feliz conhecerr você.

Entrou com confiança pela segunda passagem secreta da noite (terceira se contarmos a do eixão). Achou-se de frente a uma porta adornada, que abriu de pronto: conduzia a uma linda biblioteca, muito britânica, com estantes de madeira e livros encadernados em couro. Havia duas poltronas e uma mesinha de centro, com um cinzeiro; mais no fundo havia uma escrivaninha, com uma daquelas luminárias verdes com armação dourada. Ao lado da escrivaninha havia outra porta. O anão apareceu mais uma vez como que do nada, dirigiu-se à porta e a abriu. Mestre, disse, fazendo uma reverência. De lá de dentro saiu um senhor com ar fidalgo, impecavelmente vestido com um terno de um quadriculado tirado ao ocre, reforço nos cotovelos, um pulover de losangos, num tom um pouco mais claro, e um cachecol creme. Era um pouco obeso, sem perder a elegância, calvo mas com uns fios esparsos no centro da cabeça, impecavelmente penteados para trás. Usava, por fim, uma bengala de madeira escura, com um anel dourado. Tinha um andar um tanto afetado, e dirigiu-se até Jaime olhando-o de cima. Você teve muita audácia, pibe. Tinha um leve sotaque portenho. Putz, pensou Jaime – e disparou-lhe ainda mais o coração – estou frente a frente com… Borges!

O senhor indicou-lhe uma poltrona e tomou a outra. Sentava-se apoiando o queixo na bengala. O anão fez mais uma de suas aparições, desta vez com uma caixa de charutos. Jaime aceitou um, mas não tinha prática. Tragou e pôs-se a tossir feito louco. Borges riu mansamente. E muita sorte também! Não achas? Bem, de encontrar Borges em pessoa, sou muito afortunado mesmo. Mas não faço ideia do que pode estar acontecendo. Que tipo de cogumelo eu devo ter tomado. Calmate, pibe. Jaime desistiu do charuto e acendeu um cigarro. Você tem razão quanto a minha identidade. Se é que se pode falar em identidade aqui onde estamos. O anãozinho deu uma gargalhada estridente e anasalada, pavorosa. Então me explique, por favor, senhor, sou todo ouvidos. Borges rudemente ignorou o pedido e lançou-se a uma digressão. Uma identidade só pode existir quando essa coisa ou entidade é identificada… por si mesma, ou por outrem, no caso em que passa a ter uma conjunto de características que as possa distinguir de outra coisa ou entidade. Nesse sentido, você pôde perceber em mim um conjunto de características que me distinguiu como Borges. Mas o que você não pode perceber, pibe, é que esta é só uma forma exterior que eu preciso assumir, ou digamos que você me faz assumir, para que possamos charlar e fumar este charuto, ou este cigarro. Nesse momento lhe ocorreu que esta biblioteca fantástica tinha algum sistema de ventilação artificial igualmente metafísico, e a fumaça não se acumulava. Estava fascinado de poder ouvir razonar um dos seus autores prediletos. Resolveu desencanar de entender qualquer coisa e embarcar na viagem. Então, você não teria uma identidade, não seria mesmo uma entidade, mas… o cerne do que é, antes que se lhe atribuam quaisquer características? Desculpe o senhor a figura, mas posso arriscar dizer então que o senhor é Deus, (Borges deu uma curta risada entediada) e poderia aparecer em qualquer forma dependendo de quem achasse esta passagem – entusiasmava-se. Calmate, pibe. Não sou Deus, apesar de que, de certa maneira posso dizer que faço o trabalho dele. Deus se cansou há muito tempo de cuidar do mundo, pibe. Está aposentado. Teve a fase de palavras cruzadas, imagine o trabalho de confeccionar um bom passatempo para alguém onisciente. Bem, ultimamente, passa o dia no Facebook (Jaime deu uma sonora gargalhada); imagine o que é ter sete bilhões de amigos. Mas você não acredita em Deus, não é Jaime? Bem, depois de hoje, nem na realidade sei se acredito. E que é a realidade, pibe? Que é a realidade? Senhor, eu sempre gostei em seus contos como a realidade fica em suspenso; como no Imortal, pode ser que o relato todo seja uma fraude, e essa hipótese fica apenas insinuada por uma impressão de um erudito, mas também pode-se acreditar… não importa enfim acreditar; enfim, a realidade é construída na percepção. Muito bom, pibe! Estás chegando bem perto. Deixou o charuto um pouco de lado. Jaime (pronunciava Chaime), você já teve vontade de mudar a realidade? Tá brincando? Só o tempo todo.

Levantou-se com toda sua fleuma; apareceu mais uma vez o anão, que caminhou até a porta ao lado da escrivaninha e a abriu. Por aqui, pibe. Passaram pelo umbral para um ambiente totalmente diferente: do conforto amadeirado e quente da biblioteca para o frio metálico e asséptico de uma saleta banhada em luz branca, onde se podia ver uma poltrona de escritório e, em frente a ela, uma parede coberta por uma imensa máquina, um painel de controles com uma cara de anos sessenta, uma seção de potenciômetros, uma de disjuntores, uma com slots conectados por cabos – como uma central telefônica antiga – além de rolos de fita magnética girando. Jaime se lembrou do laboratório no Frankenstein do Mel Brooks e riu internamente. Olhou para Borges inquisidoramente. Eu disse que tinhas sorte, pibe. Aqui fica uma central de controle do universo. Uma delas. Foi a solução encontrada por Deus para poder se aposentar. Bem, hoje em dia, tudo é terceirizado, mesmo… Pois que… Por que me olha assim? E o senhor vai permitir a mim que mude a realidade como queira? Ora, pibe, você achou a passagem e chegou até aqui, e ademais… os astros lhe são um tanto injustos…. Não crês nos astros, eu sei…. E, por fim, seria muito chato não lhe conceder um pedido e ver o que acontece… Bom, essa é fácil então, eu quero ser um sucesso com as mulheres. Não é assim, pibe; eu não sou o gênio da lâmpada. Essas questões de personalidade e afetividade estão em uma outra central, escondida em qualquer outro lugar do planeta, e fica a cargo do meu colega William, você o conhece. Shakespeare? Precisamente. Pois então, aqui o que me toca regular são os parâmetros gerais da realidade. Se você quiser que os carros sejam movidos a suco de laranja, eu posso fazer acontecer. Se quiser que… Já sei! Quero que churrasco emagreça. Hum… Interessante. Um momento. Sentou-se na poltrona e mudou uma conexão telefônica, girou dois potenciômetros, e acionou três disjuntores. O aparato fazia no processo uma série de ruídos de filmes de ficção científica. Girou na poltrona para encarar a Jaime, que – atônito – se perguntava se aquilo tudo não se passava apenas na sua cabeça (como toda sua vida, aliás). Feito, pibe. A partir de agora churrasco queima calorias. Não crês? Olha, podes… eu gostei de você, pibe; voltemos à biblioteca. Dessa vez, prescindiram do anãozinho. Borges lhe indicou uma cadeira de frente à escrivaninha e foi até uma seção da estante de onde trouxe um cilindro. Tirou de dentro uma folha enrolada, abriu-a sobre a escrivaninha e posicionou a luminária para iluminá-la. Era uma mapa celeste. Mira, pibe, esta aqui é a Proxima Centauri, da constelação de Centauro, e a marcou em vermelho; esta outra é a Sirrah, de Andrômeda, marcou-a e uniu as duas; agora aqui tens a Mehrak, da Ursa Maior e por fim a Beta-Ari de Aries, e uniu também estas duas. Vês que formam duas retas paralelas? Pois só nessas ocasiões é que a passagem está aberta. Assim podes voltar. Não disse que estavas com sorte? Pois é melhor que vás, pibe. Amanhã tens que trabalhar, e eu ainda tenho que ler um pouco. Sentiu uma enorme curiosidade de saber o que lia Borges, mas por alguma razão se furtou a fazê-lo. Sentia-se mesmo cansado. Percebeu que o homenzinho surgira e lhe estendia outra carta. Tomou-a: era uma dama de copas. Lentamente a figura foi escapando da carta e ganhando vida. De repente estava bailando uma valsa com a dama de copas, que tinha um perfume muito agradável; ouvia também a música nitidamente em sua cabeça e foi sendo levado por aquelas sensações até um torpor, do qual só acordou na calçada em frente a seu bloco. Bacana, pensou. Me pouparam a parte final da caminhada.

2

Acordou tentando sacudir a sensação de incredulidade. Um pouco como uma ressaca, que – não sendo tão intensa a bebedeira a ponto de apagar toda a memória – nos faz batalhar um tempo com um vago receio, que pode se converter em certeza, de ter feito merda. Não era o caso, não tinha bebido demais; tinha se emputecido ainda na metade da festa. Além do mais, as lembranças eram muito nítidas; e, por mais que tivessem um sabor onírico, Jaime por fim se levantou convencido de que visitara Borges embaixo do eixão norte. Mas, para ter plena certeza, só tinha um caminho: experimentar se a alteração de realidade operada no improvável painel de controles estava valendo.

Buscou o carro na oficina e foi trabalhar. Tinha todo o tempo aquele sorrisinho besta de quem sabe um segredo. À noite, não foi pra UnB: passou no supermercado e se armou para a guerra. Picanha, quatro peças; um bife de chorizo; frango, sobrecoxas e tulipinha da asa; linguiça toscana, dois quilos; pão de alho, dez pacotes; queijo de coalho, dez pacotes; carvão de dez quilos, álcool, pão… Assaltou-lhe uma dúvida: cerveja estaria metonimicamente incluída no conceito de churrasco? Que se foda: quatro fardinhos de doze latas.

A verdade é que não era a primeira vez que fazia churrasco solo. Adorava o poder que tinha de colocar as músicas mais improváveis – de Tom Waits a Stockhausen – para um churrasco. Tivera más experiências bastantes com situações em que se tentava agradar às visitas, e não conseguia ouvir sequer um Pink Floyd. Acendeu o fogo, colocou um Vandermark 5, e pôs uma toscana para começar; esquenta o fogo, dizem. Enquanto isso foi dar uma olhada no e-mail. Não tinha nada interessante, mas viu que a putinha literária estava on-line. Era uma jovenzinha encantadora: linda, charmosa e inteligente, uma coleguinha da UnB. Tinham conversado algumas vezes, e iniciaram o contato eletrônico ironicamente por conta de um churrasco para o qual Jaime a convidara (e ela não fora); agora ele tinha sempre que se segurar para não incomodá-la o tempo todo. Afinal, ela tinha namorado (sim, outra); e a verdade no fim é que ele conseguira dessa vez não pular de cabeça (mas não queria estragar alguma chance futura). Vai demorar, pensou, olhando a linguiça. Arriscou: e aê!/(pausa prolongada) ei!/(pensou um pouco) não teve aula?/ah, tenho que terminar uns lances do projeto. e vc? /biquei. vou assar uma carne :)/seu vagabundo =)/ cola aí/ não posso/ que moça dedicada… estou atrapalhando/ não, eu tinha feito uma pausa/ vc tem trinta projetos ao mesmo tempo!/ são três :P/ (pausa) viu? vc tá sacando tudo de sintaxe, que eu sei/ imagina!/ eu quero que vc me ajude com os estudos dirigidos/ ué, no que eu possa ajudar, avec plaisir, mademoiselle./:P estou estudando italiano/ ah, ciao bella! :)/ 🙂 é, acho que vou fazer um lanche…/ok, ragazza. che vediamo doppo./si 🙂

A linguiça estava indo devagar, colocou um pão de alho. Largou o computador, estendeu a rede e pegou um livro sobre a história do jazz para ler. Mas mal leu uma página se pôs a ruminar a experiência da véspera. Teve o impulso de voltar à passagem, mas se lembrou da conjunção estelar necessária. Será que se lembrava do nome das estrelas? Tinha uma tal galáxia Andrômeda… Centauro! Putz… devia ter anotado. Voltou ao micro e pesquisou. Descobriu um clube de astronomia em Brasília; anotou o endereço. Foi dormir meia peça de picanha mais tarde, e suavemente inebriado.

No outro dia o despertador tocou cedo. Escovando os dentes pensou: e se a passagem se abrir de novo, vou pedir o quê? Ou ainda: se eu for ao clube de astronomia, vou perguntar o quê? Deitou-se mais um pouco. Eu preciso primeiro verificar o primeiro pedido; mas é bom saber quando se abre de novo o portal. Caramba, eu posso alterar a realidade a meu bel prazer, é uma responsabilidade enorme. Será que essa é só mais uma oportunidade que eu vou estragar? Sacudiu a cabeça e se levantou. Esquentou no microondas os restos do churrasco (devo estar infringindo algum código de ética).

Daquele dia em diante, sempre assava uma carne à noite; matava a segunda aula, ou ficava até de madrugada. No almoço, ia a um desses restaurantes com churrasco e se empanturrava de carne. Pesquisou na internet até descobrir as estrelas que Borges indicara. Visitou o clube de astronomia e consultou o mapa celeste do dia mais inacreditável de sua vida. O presidente do clube, que lhe recebeu muito bem, se chamava Jorge (não conteve uma gargalhada). Mostrou como as quatro estrelas formavam duas paralelas e indagou incisivamente como saber quando aquilo se repetiria. Jorge franziu o cenho, coçou o topo da cabeça e respondeu que era um belo problema, os aficcionados adorariam trabalhar naquilo. Enquanto isso, as pessoas começaram a comentar como estava mais magro; pesou-se: 95. Muito churrasco pela frente. De fato, a mágica não valia só para ele, e as revistas começaram a recomendar a dieta da carne, os médicos se apressaram a explicar que tal aminoácido disparava tal processo metabólico. A carne começou a aumentar.

Nesse período também se deu algo digno de relatar. A putinha literária queria ajuda em sintaxe, como já sabemos; ele repetia a si mesmo “não é flerte, comporte-se”. Marcaram e ela não apareceu, mas ligou mais tarde, justo quando ele apresentava seu seminário sobre os Lusíadas; ele retornou depois. Conversa vai, conversa vem, foram parar no Café com Vinil. Apenas amigos, comporte-se, seu psicopata. Mas a esperança, essa fênix dos infernos… Você está mais magro. Obrigado. E você linda como sempre. Sorrisos constrangidos, cardápios, eu quero uma cerveja, outra pra mim; ele pede um Ray Charles. Passaram a rememorar os tempos de escola, os dela tão recentes, os dele com tantas cabeçadas intervenientes; ele narrou um pouco dessas cabeçadas. Ela disse que optara por letras porque sempre escreveu bem, o que ele não repetiu por falsa modéstia; ambos haviam considerado jornalismo e desistido pelos mesmo motivos. Falaram mal de alguns professores, um pouco da incerteza do futuro e de seus incipientes projetos. Ah, é claro, ela explicou o teor das pesquisas em que estava envolvida. A dado momento ela recebeu o telefonema do namorado. Ele aproveitou para voltar à realidade. Essa putinha só quer me envolver e me fuder no fim. Depois de algum tempo e outros assuntos, chega o tal do namorado. Um brutamontes, musculoso e com ar apatetado. Ele foi político o resto da noite, mas não teve o mesmo sabor o Miles Davis que pediu (nem o filé nem o Bitches Brew).

Musculoso. Sempre achou tão patético isso. Mas as minas curtem. Já sei o que vou pedir ao Borges quando voltar lá. Voltou a visitar o clube; Jorge era todo amabilidades: apresentamos sua questão em fóruns internacionais, gente do mundo inteiro se envolveu. Foi um hindu quem matou a charada. Mas… Jaime, você ainda não me explicou por que é tão importante determinar essa conjunção. Jorge, se eu te contasse, você diria que estou louco. Talvez esteja, talvez sempre tenha sido. É que… Não me diga que é astrologia. Não, não é. Tudo bem, vá lá. Mas nem preciso dizer que é um segredo entre nós. Se você sair contando a toda comunidade, nem sei a confusão que pode dar. E contou. Jorge ficou boquiaberto, sem terminar de acreditar. Levou Jaime até um computador e mostrou a mensagem: faltava pouco mais de um mês para que se abrisse a passagem.

3

Ninguém mergulha duas vezes na mesma merda. Ou não deveria. Jaime tinha a desculpa de um livro que precisava comprar (e era fato que as demais livrarias eram um lixo), mas é bem verdade que queria ver a putinha ingrata. Ainda mais trinta quilos mais magro. Claro que ela não deu a mínima. Trocaram comentários sobre música, lançamentos: gostou do Yes?, shows que aconteceriam: ambos iriam ver o Pearl Jam no Rio (conteve-se para não repetir que começou a ouvi-los quando ela ainda não falava, o que dissera à literária); um pouco sobre literatura, preciso ler Faulkner; gostou do Woody Allen? (ele a convidara e ela recusou); ele falou sobre a viagem, das livrarias de Buenos Aires (não, o Ateneo é só um shopping center), sentiu uma angústia de não poder contar nada quando falou em Borges; comentou (ela só respondia, enquanto arrumava os livros, muito profissionalmente) do festival de teatro que acontecia, que vira uma montagem de Ricardo III (ele se declarara apaixonado no dia em que a conheceu; pela peça, claro); ela disse que talvez fosse; nem pense em convidá-la, você sabe onde isso acaba; tem usado meu presente?; ah, claro!; sabe que eu estou com um coleção de King Crimson formidável, e passou a enumerá-los; ela estava graciosa como de costume, uma saia azul e sapatos da mesma cor laranja da blusa; era esguia e tinha cabelos bem negros, uns olhinhos muito vivos… nymph in the prime of youth, como dizia um dos versos que ela desprezou. Olhou-a nos olhos, suspirou entre inconformado e envergonhado com sua própria estupidez, e despediu-se, saboreando a pele macia de sua bochecha. Sabia o que o esperava: o preço de quinze minutos agradáveis ao lado dela eram dois dias chorando. Ela nem falou nada. Putinha.

Faltava uma semana para a abertura da passagem. Telefonou a Jorge: ele era apenas um pouco mais velho, e solteiro, passou-lhe pela cabeça convidá-lo para sair à noite, queria perseguir umas minas agora que estava magro. E com a molecadinha da UnB estava claro que não dava pra fazer nada. Jorge topou e combinaram um desses pubs com música ao vivo, numa sexta. Jaime achava bom ter alguém com quem conversar sobre a passagem, mas ao mesmo tempo se perguntava que consequências a revelação poderia vir a ter; por enquanto, iam se tornando bons amigos. Você já sabe o que vai pedir? – disse ainda na fila, depois de alguma conversa miúda. Talvez seja melhor a gente não falar sobre isso… E como não? Acha que é pelos teus olhos verdes que estou aqui? Jorge, olha… eu estou vendo essa história se complicar… Mas agora é tarde, meu caro. Além do mais, eu te ajudei, não? É mais do que justo que você ao menos compartilhe comigo. E fê-lo descrever a luminescência fosforescente do corredor, o anão e suas cartas mágicas, e pareceu especialmente interessado no botão que abria a passagem, por detrás de um azulejo quebrado. Porra, Guns ‘n’ Roses, faz vinte anos que eu não ouvia isso; essa não pode faltar nunca. Meu, desencana disso de idade, é só uma crise dos trinta. A dos trinta eu já vivi, esta é a dos trinta e um. De qualquer forma, olha essa molecada de vinte e poucos; você quer ser assim? É, tem razão; eu só preciso conhecer gente da minha idade, mas nesta cidade… Enquanto falavam, Jaime passeava os olhos pelo ambiente que começava a se encher. Tinha uma moreninha de cabelo curto, que não era exatamente gata, mas parecia estar devolvendo seus olhares. Aqui tem umas cervejas importadas bem legais. Jorge não conhecia o lugar; na verdade, não era muito de sair. Jaime encontrara alguém ainda mais misantropo. De repente trombaram a moreninha mais uma vez, e mais uma vez ela ficou olhando. Jorge voltou à carga: vai pedir o que a Borges? A paz mundial? Jaime olhou espantado; só agora percebia como era egoísta. Nã… já até imagino o que ele diria, que o painel não cuida disso, pibe. Além do mais, não estou ligando muito pros problemas do mundo. Você também não tem namorada, né Jorge? Não… eu saí um tempo com uma frequentadora do clube. A gente olhava as estrelas juntos. Que romântico. Pois é; ela não era feia demais, e a gente tinha um interesse em comum. Um dia ela disse que era antiético, balela, eu sei que ela se encantou de um frangote que começou a frequentar o clube, outro dia eu vi os dois, vendo o eclipse. São todas umas putinhas, meu amigo. Só muda o epíteto. Jorge disse que ia ao banheiro. Nosso herói foi até o balcão e pediu uma Amsterdam: uma paulada com 7% de álcool. A morena estava bem ali, junto de sua amiga loira de ar antipático. Jaime criou coragem, aproximou-se e arriscou um singelo “olá”. A putinha o olhou de cima a baixo com um ar de desprezo que o enfureceu. Tocava Day Tripper, e ele riu apesar de si mesmo: she’s a big teaser. Jorge não entendeu quando voltou e o amigo já queria ir embora. Nunca tive saco para este tipo de coisa, cara. Não suporto ter que mendigar a atenção dessas… Putinhas. Exato. Mas isso vai mudar: eu vou pedir ao Borges que as mulheres tenham tesão em cultura e não em músculos. Não é o que você queria saber? Cara, você é maluco. Olha, a música tá boa, vamos ficar vai, relaxa. Ficaram. No intervalo deram uma circulada e Jorge encontrou uma colega de faculdade, e ela estava com duas amigas; uma delas assaz interessante. Chamava-se Bárbara, tinha cabelos ruivos, curtos, usava óculos enormes que lhe davam aura de intelectual. Também era funcionária pública, quem não era naquela cidade!, e tinha feito Letras e Direito; Jaime puxou assunto sobre literatura e ela mostrou saber mais que ele – ou que a putinha da livraria -; ele se exibia com o pouco que sabia de qualquer coisa, ela sorria com ar de interesse, nos dois sentidos. Aliás, interessante palavra, interesse: ele não sabia nada de filosofia, mas lembrou-se do que aprendera em uma aula, e achou por bem tentar impressioná-la: não concordo com Kant quando diz que um julgamento estético deve ser desprovido de interesse; eu não poderia te achar bela, e isso não faz nenhum sentido. Ela lhe sorriu por detrás do canudinho de seu drink, com toda sua amável faceirice. Ele não conseguiu juntar coragem para beijá-la naquele momento e se sentiu constrangido. Quando a banda voltou tocando Led Zeppelin a conversa partiu por esse caminho (ela só conhecia aquele sucesso), ele contou de quando tocava bateria nas festinhas da (primeira) faculdade, ela achava tudo o máximo. Trocaram então um olhar que não dava margem a dúvidas, e ele enfim se aproximou e experimentou aqueles lábios convidativos. Foi uma noite agradável, afinal, um grande alívio na verdade. Trocaram telefones, ele ficou ainda mais feliz quando a banda fechou com The Who, e ele deixou a Jorge e então a ela em casa.

Idiota como era, e idiota carente, como era pior, ficava alimentando quimeras, e por mais que tentasse se convencer de que, ora, vocês ficaram ontem, amanhã ela fica com outro e bola pra frente… a verdade é que fermentava ali mais uma das suas. O que ele precisava mesmo é de algo significativo, e aquele aperitivo só lhe aumentava o apetite. Se segurou no sábado, mandou mensagem no domingo. Para sua surpresa ela respondeu de modo bastante animador. Na terça ligou e conversaram bastante, ficaram de se ver no fim de semana. Parecia que os deuses galhofeiros davam uma trégua ao nosso querido psicopata. Por isso mesmo, quando chegou a quinta e ele estacionou o carro na 209 – já eram dez e meia, tinha tido prova – e caminhou até a passagem, não era uma panela de fel em ebulição.

4

Caminhava sob uma fina chuva até a entrada da passagem. Seu pensamento se dividia entre o primeiro encontro com Borges e a moça que conhecera. Perguntava-se: estar mais magro teria sido decisivo? Em que medida era sua personalidade que a atraía? Teria resolvido seu problema? Estava pondo esperança demais novamente naquilo que nem se podia chamar relacionamento? De uma forma ou de outra, pensava, que diferença entre este dia e aquele! Na verdade nem sabia mais o que pedir… Se o painel de Borges funcionou, não havia por que duvidar da chave para a nova abertura da passagem, e se a previsão do astrônomo estava correta ou não, ele estava prestes a saber.

Deixar o guarda-chuva no carro talvez não tenha sido boa ideia, e quando chegou à boca do túnel, Jaime estava bastante molhado. Tirou o celular do bolso para acender a lanterna, e na mesma hora – coincidência extrema – ele vibrou com um sinal de mensagem: Bárbara. Não poderei sair no sábado. Putinha. Ligou: não atendeu. Pronto, eu sabia, eu sabia. Sempre o mesmo. Talvez seja ainda pior quando dê um gostinho, alimente uma esperança. Da Nazi ou da Ingrata que posso falar? Nada. Merda. Encostou-se à parede nada recomendável da passagem e não chorou por pouco, mas seria de raiva se o fizesse.

Vamos lá… encontrou o azulejo quebrado, mas achou estranho o fato de que o pedaço que cobria o botão estava faltando. Apontou a lanterna para o chão e lá estava ele. Teve antes uma certeza que uma desconfiança, bastava confirmar. Acionou o dispositivo, o chão girou, achou-se no corredor infinito. Até agora, nada do anão. Foi andando tateando com o braço direito a parede. Andou um bocado mas achou a segunda passagem, e a porta. Detalhe: havia um guarda-chuva ao lado dela, um que não combinava com a elegância do senhor Borges, claro.

Aberta a porta, lá estavam instalados nas duas poltronas J.L. Borges, em um garboso terno gris, e o folgado do outro Jorge, o mesmo que você já estava esperando, o astrônomo diletante; em um banquinho se instalara o anão, cuja gargalhada estridente se destacava das outras. Olharam todos na direção de Jaime, Jorge um pouco constrangido, Borges – estranhamente bem humorado – mandou um Hola, pibe! e o anão levantou-se sinalizando a Jaime que lhe tomasse o lugar.

A velha rotina de auto-vitimização: não se pode confiar em mulheres, não se pode confiar em amigos. Jaime acendeu um cigarro antes de aceitar se sentar, e mantinha a cara fechada. Jorge se apressou a se explicar: Olha, foi mera curiosidade… eu me envolvi afinal, você sabe. Mas estávamos esperando por você. Ah! E a conversa estava bastante divertida, pelo que parece. Pibe, calmate. Antes de mais nada, eu vejo que estás muito mais magro! Bem, isso é verdade; e eu agradeço. Não é necessário, eu não fiz nada! Agradece ao painel… Mas já que falaste nisso, veja isso aqui. Levantou-se e caminhou usando a bengala até uma prateleira de onde trouxe um jornal. Desmatamento na Amazônia Fora de Controle. Veja a data, pibe. Era dali a cinco anos. Todos querem comer carne e perder peso, pibe.

Vem aqui comigo, pibe. O anão se apressou a abrir a porta que levava à câmara com o painel. Borges acionou alguns comandos e de repente o monitor começou a exibir imagens a uma velocidade indescritível. Foram alguns instantes que Jaime ficou ali, mas sua impressão foi de ter visto a totalidade dos relacionamentos humanos. Desde as pessoas que levaram existências inteiras solitárias, perto das quais sua vida era extremamente movimentada, passando por gente que suportou relações de aparência a vida toda, e ficou mesmo uma impressão de que boa parte da felicidade do mundo era mera aparência, pessoas que viviam infernos insuportáveis por causa de outra, muita gente como ele, que vivia dando cabeçada, e geralmente acertava uma, e um exemplo ou outro de felicidade genuína, aqui ou ali.

Jaime levou a mão ao queixo: seu egoísmo lhe era evidenciado uma vez mais. E, no fim, ficar magro nem tinha resolvido seu problema. Não ia mudar o fato de que as mulheres são… enfim, como são; de que ninguém fora ele ia reconhecer nele um certo charme excêntrico; de que o acaso determina tanto em nossas vidas. Não havia nenhum fator da realidade que pudesse mudar ipso facto sua sorte, nem faria sentido pedir que mulheres sentissem tesão por caras com livros (provavelmente ia aumentar ainda mais o desmatamento para produzir papel). Respirou fundo. O anão apareceu ao seu lado com uma bandeja onde havia um copo de uísque.

Foi então que Jorge se adiantou, entrando também na saleta: Eu conversava com o Borges, Jaime, sobre como melhorar o mundo usando este painel. Você sabe, eu me considero um socialista, então o primeiro que veio à mente foi pedir uma sociedade sem classes. Você sabe que ele é um aristocrata e riu da minha cara, disse que alguém precisa trabalhar para que os outros possam criar, eu discordei, aí ele perguntou se eu lavava meu banheiro, eu fiquei quieto; então ele disse que mesmo que se estabelecesse essa sociedade, uns iam começar a acumular e logo teríamos as classes de volta, e os banheiros voltariam a ser limpos. Era disso que ríamos.

Apoiando o queixo na bengala, Borges fitava Jaime e, com uma sobrancelha arqueada e um ar cínico disse: Tu conheces este tipo de fábula, pibe, e a moral é sempre previsível. E não me metas em má literatura de novo. Tirou uma baforada do charuto e completou: agora é a hora do teu pedido.

Acabou ficando esclarecido que Bárbara tivera apenas um contratempo qualquer, e não atendera porque entrara no elevador, e depois foi ele quem entrou no túnel. Saíram algumas vezes, mas não sei dizer se deu em coisa mais séria. Acho que o importante foi que depois de todo o episódio ele conseguia levar a vida com mais leveza. Quando o reencontrei anos depois ele se referiu àquilo como um sonho que tivera, e me contou que sua esposa esperava um filho. A notícia que Borges mostrou nunca foi publicada, e as revistas pararam de recomendar a dieta da carne.

 

 

Dia de um Podólatra

Manhã

Acordou devagar, e pareceram vários minutos aqueles instantes em que, desperto, fragmentos de sonho insistem que são reais e pedem que resolva alguma coisa urgente – era algo relacionado a um código ou algo assim. Olhou pela janela, claridade incipiente iluminava o muro onde se lia “só o cinismo salva”. Deve ser cedo: acordou antes de tocar o despertador, um minuto, como verificou; isso era razoavelmente comum e lhe parecia algo sobrenatural. Tinha que acordar cedo para ir ao dentista: dentista-aula-trampo-aula-prometo-que-vou-correr, passou-se-lhe em um átimo a agenda pela cabeça. Levantou-se como que impulsionado por molas – era um período em que estava bem disposto; livrara-se de uma renitente melancolia eivada de autocomiseração sem nenhum livro de auto-ajuda, apenas mandando tudo à merda mesmo: daí o slogan no muro.

Sua boca seca tinha um gosto insuportável, e escovar os dentes e passar um café era talvez menos um remédio para isso do que uma justificativa para retomar o hábito que o provocava (não que um cínico precise de justificativas, aliás). Apertou distraído o tubo e saiu uma quantidade pletórica de pasta, bastante para escovar os dentes desta engrenagem absurda que chamam de mundo (cedo demais para suas metáforas idiotas, pensou). Vou inventar a máquina de pôr a pasta de volta no tubo e ficar rico; e de quebra vou desmoralizar essa tal termodinâmica. Enxaguou a boca e enxugou-se. Meteu os pés num chinelo e conferiu o tamanho das unhas: ainda não; uma de suas idiossincrasias era esperar que ficassem bem grandes antes de cortar (o prazer era maior e o risco de se machucar menor). Chaleira no fogo, lembrou-se de que não colocara um disco pra rodar; voltou ao quarto e meteu a mão a esmo na seção de jazz: Freddie Hubbard, pôs a bolacha no pino (o ato sexual mais frequente que realizava) e delicadamente depositou a agulha na borda, ligou o mixer e o ampli e… voilà. Uma coisa que ele curtia no bebop era que a bateria quase sempre já entra solando em cima das convenções dos metais. A garrafa, o coador, o pó, despeja… mais um pouco; buscou o maço, cadê a porra do isqueiro? Fechou a garrafa, acendeu o primeiro cigarro do dia no fogão mesmo. Ela vai perceber que voltei a fumar e vai dar um esporro: deixa os dentes amarelados (como se eu já não soubesse). Ligou o micro – o que já devia ter feito, para ganhar tempo; uma falha no seu algoritmo matinal. Tinha uma necessidade patética de aceitação, que se manifestava – dentre outras coisas – em piadinhas que compartilhava esperando a reação dos “amigos” virtuais. Nada. Zero. Desligou a parafernália: melhor assim, só ia perder tempo.

Olhou o relógio: quarenta minutos, são no máximo quinze até lá. Sua serviçal tinha deixado fruta picada, comeu um pouco; tinha cereal e granola, mas nunca comprava leite. Ou pão, ainda que tivesse queijo. Dá tempo de ouvir esse lado. De volta ao banheiro, outro cigarro no cinzeiro, espumou o rosto arredondado; tinha o hábito de pôr a tampa na pia e assim usar a mesma água para limpar o barbeador (eu faço a minha parte, sorriu): barbeou-se uma vez, deu uma tragada e escanhoou-se apenas nas bochechas. Que pele linda que você ainda tem (sempre foi vaidoso). Olhou pra baixo. Recentemente tinha se apercebido de que seus próprios pés eram bonitos. Desde o tornozelo o contorno era harmonioso, sem tendões salientes, uma penugem discreta, o dedão bem desenhado, talvez só um pouco separado demais dos outros quatro dedos, que formavam uma diagonal perfeita. Que conflito: agora eu quero me comer. Mas eu já me fodo o tempo todo, mesmo! A caneca de café estava ao alcance da mão na pia de granito enquanto, sentado no vaso, lia um pouco do Bukowski. Delongou-se mais do que exigiu a fisiologia propriamente dita. Banhou-se cantarolando Beatles. Vestiu-se de jeans claros, uma camiseta vermelha do Trout Mask Replica (um sujeito com máscara de peixe e chapéu de turco), uma camisa também vermelha por cima. Nos pés, um lustroso sapato negro de bico quadrado, por sobre meias roxas. Pôs no pescoço um colar com duas voltas de sementes verdes e na cabeça seu chapéu de feltro marrom. Seu figurino favorito (ele veria aquela…). Escovou-se de novo, mesmo não tendo praticamente comido nada (mais de uma vez sentira o constrangimento de ir ao dentista de boca suja). Acertou a mão na pasta desta vez, pelo menos.

O carro estava mais uma vez imundo com excrementos do pássaros que faziam ninho no telhado. Malditos. Ligou o som; o banco do passageiro estava repleto de estojos de disco, e o traseiro ainda mais. Começou a tocar Eric Dolphy; esse cara devia estar na primeira divisão do jazz, é o maior injustiçado do gênero. Mas já tinha escutado o bastante disso: voltou ao Avant Garde Project: Luciano Berio (adorava escutar essas maluquices no último volume e escrutar a reação das pessoas – carências…). Em dez minutos estava estacionando do lado de fora de um Qualquer-Coisa Center onde ficava a clínica odontológica. No hall, lá vinha uma mocinha bonita, morena de cabelos curtos, acompanhada aparentemente pelo pai, que lançou um olhar na sua direção e sorriu encabulada; infelizmente usava tênis brancos. Agora, demorara para achar um dentista confiável, ou uma, mas era simplesmente impossível escapar da Veja e da Antena 1. A revista bastava não ler (o velho Buk o acompanhava), mas contra a rádio seriam precisos fones de ouvido, precisava lembrar da próxima vez.

Vamos entrando? Um pouco de conversa miúda, o tempo como sempre, esticou-se na cadeira e abriu a boca. Ela não falou do cigarro ainda. Voltou a pensar naquela. Tinha pés enormes, mas lindos. Obviamente os pequenos tendem a ser mais delicados, mas os dela eram muito bem feitos: os dedos roliços – o segundo maior que o dedão – tinham belas unhas pintadas de um inusitado azul claro havia uma semana. Além do mais, ela precisaria deles grandes para transportar quase um metro e oitenta de uma ruiva corpulenta mas ao mesmo tempo esguia como uma cascavel. Seus lábios carnudos estavam sempre pintados com um rubro que valorizava os cabelos, provavelmente tingidos, mas num tom muito natural, escuro. Faziam dois arcos até a altura dos ombros, dos quais ele viu um uma vez, quando ela puxou a camiseta folgada de lado: que ossos! Pode cuspir. O que mais a distinguia, entretanto, eram os óculos de armações enormes e transparentes, onde olhos castanhos claros pareciam perdidos. Esses mesmos olhos um dia, entrando na sala, cravaram-se nos dele, por longos segundos, e desde então repetidas vezes (repassou cada uma, lá com a boca escancarada). Uma beleza fora do óbvio, repetia. Ele tinha um plano para mais tarde. Saiu de lá com a boca torta, até fumar era estranho, e teve que desistir de cantar a música do Genesis que era a única que sempre lhe vinha à mente. Também não havia ninguém por ali para impressionar. Percorreu uma distância enorme, o que por um lado permitia ouvir mais música, e chegou ao campus da universidade. Subiu ainda mais o volume e prestou atenção num grupo de três jovens que passavam enquanto estacionava; a soprano disputava com as dissonâncias do piano e a percussão ensandecida no quesito esquisitice. Uma olhou chocada: estamos bem.

Não se dirigiu diretamente à sala, tinha que buscar um café. No corredor, detectou um, dois três pezinhos bonitos. O bom da podolatria é que as pessoas simplesmente acham que você está olhando para o chão; você pode, por exemplo, devorar com os olhos o pé de uma garota acompanhada, sem nenhum constrangimento. Mas ele sempre torcia para que elas percebessem e demonstrassem alguma emoção, que fosse perplexidade ou até repulsa; às vezes ganhava mesmo um sorriso cândido, e essa era a glória suprema. Por isso acabou desenvolvendo um modus operandi: se o rosto e o estilo em geral agradavam, conferia os pés; sendo bonitos, encarava como um maníaco (sem esforço algum) e só daí buscava os olhos da moça. Às vezes nem isso: bastavam os pés; além do mais, olhar uma mulher nos olhos é mendigar sua atenção, não raro só obtinha uma expressão arrogante de desprezo. Dependendo de seu humor, não via nem o rosto, que podia estragar tudo (e o fazia muita vez). Na fila da cantina, se alguém podia chamar aquela espelunca de cantina, umas sandalinhas de couro o encheram de esperança, mas decepcionou-se logo: o terceiro dedo era maior que o segundo, e isso estragava tudo. Café duplo pra viagem; expresso, é claro. Foi fumar do lado de fora, e elas passavam: tênis, bota, chinelos… putz! Ela se aproximou mais, era morena de cabelos cacheados e longos, um rosto interessante, blusinha branca e saia florida. Os chinelos eram cor-de-rosa, trinta e cinco no máximo, ela era miúda; os dedinhos formavam uma parábola com ápice no segundo, a pele cor de caramelo. Coisa para os dez mais, cinco talvez. Olhou pra cima e ela estava olhando pra ele, mas disfarçou. Virou o pescoço para admirar o movimento das ancas. Velho tarado. Apagou o cigarro e foi andando até a sala.

Dez minutos atrasado, tudo bem. Tinha uma moreninha que estava sempre com o cabelo molhado, às vezes olhava pra ele; estava logo na entrada, e ficou olhando pra sua camiseta. Só uma vez alguém a tinha reconhecido e comentado, foi logo após a morte do Captain Beefheart, na entrada de um show de Zappa Cover, terreno propício. Achou uma carteira e prosseguiu bebericando o café; discutiam um livro muito ruim que o fizeram ler: ia ter de se conter. Gostava de participar das aulas, mas tinha de se policiar: tentava filtrar o que era relevante do que era mera vaidade intelectual. Olhou na direção da morena; ela olhou de volta, rápido. Deve ter namorado. Ele tinha pesquisado: redes sociais e tal, havia uma referência a um Carlinhos (não tinha o menor respeito por homens que aceitam ser chamados por um diminutivo) meses atrás, depois nada; omitia o “status de relacionamento”. O cabelo molhado era porque estava vindo do remo, e ela trabalhava em um órgão vizinho ao seu, inclusive. Nada muito interessante, melhor esquecer. Acabou levantando o dedo e falando alguma bobagem: tinha um jeito muito cordato de alfinetar a professora e toda sua concepção literária, e o fazia com certa elegância nos trabalhos escritos, que eram corrigidos óbvia e infelizmente pela monitora. Aliás, que monitora: a negra mais bonita que já vira não seria exagero nenhum. Acho que nunca vi seus pés, pensou. Virou-se e lá estava ela, mas os pés ficaram eclipsados. Mais dez minutos e eu busco outro café. E um anti-ácido: tinha sempre no carro.

No intervalo, teve uma surpresa, a moreninha dos chinelos cor-de-rosa estava sentada em uma das mesas, com um computador portátil; pediu o café, na xícara agora, e sentou-se defronte a ela e abriu o Bukowski. Volta e meia ria com o livro (isso sempre chama a atenção das pessoas), e às vezes flagrava os olhinhos dela, quase negros, na sua direção. Será a camiseta? Não demorou até que ela se levantasse e sumisse, gingando tão suavemente no caminho. Mais um duplo, mais um cigarro e de volta à aula. Os olhos da morena. Ela também estava de chinelo, azul escuro ou preto talvez; seus pés não eram feios, longe disso, mas também não o entusiasmavam. Ali do outro lado tinha outra bem charmosa, mas que parecia simplesmente não estar lá. Aliás, ele também não estava: estava na aula da noite. Quando percebeu, estava respondendo chamada. Entrou no carro e o volume obviamente exagerado o assustou: à medida em que os ouvidos se acostumavam ele ia subindo; sabia que tinha que mudar isso, afinal um idiota com o volume alto demais é um idiota não importa o conteúdo musical.

Tarde

Chegando ao trabalho, percebeu que estava sem o crachá. Para ganhar tempo, parou o carro no térreo e foi até a portaria expedir um provisório. Foi quando uma morena linda e muito elegante, no que parecia ser um tailleur, mas sem o paletó, ficou olhando fixamente pra ele, embora com ar muito sério. Sapatos de salto: ali raramente via pés. Ótimo, mas não resolve nada, ainda assim eu não como ninguém; não estava entretanto disposto a sentir pena de si mesmo. Desceu pra garagem, estacionou e foi até o setor, lá embaixo mesmo: era o homem do subsolo. Cumprimentou um ou outro colega e foi se trocar; bastou arrancar a camiseta do Trout Mask Replica e fechar a camisa, pôr a calça do terno e a gravata marrom e voilà (o chapéu ficou). Lia, tomava café e fumava; por aquela época era até difícil arranjar um parceiro para jogar ping-pong. Só precisava esperar ser chamado pra trabalhar. Demorou quarenta minutos: Dr. Fulano no bloco A. Escolheu uns discos para ouvir: Miles Davis, fase cool, nada muito estranho com esses figurões. Encostou o carro e esperou dez minutos: mais um pouco e acabaria o Bukowski. Boas tardes e tal, restaurante tal endereço tal. Esse era dos que não falavam; é bom, mas às vezes tinha uma conversa interessante ou outra, um mesmo gostava de debater literatura. Na volta, baixou as janelas e aumentou o volume: olhem para um homem com chapéu e bom gosto, num carro chapa de bronze.

Chegou de volta, pendurou o paletó e subiu para o restaurante. Era lugar de ver mulher bonita. Enquanto fumava na entrada, passou uma por ele com um sapato meio aberto, tinha uns dedinhos lindos, esmalte rosa claro. De rosto era só mais ou menos, entretanto. Quando entrou na fila, uma numa mesa perto trocou um olhar fulminante com ele; era loira, mesclada com pretos de alguma forma, também estava muito elegante. O problema com essas funcionárias é que geralmente eram muito metidas; imagina então se soubessem que ele era um reles motorista. Todo galinheiro tem uma hierarquia de bicadas, ele só podia bicar as galinhas terceirizadas, mais subalternas que ele; às vezes o fazia, mas a conversa nunca fluía. Depois que pesou o prato, ao se sentar, uma outra ao seu lado – um pouco mais velha, mas muito conservada – também deu uma encarada. Será o chapéu? Um colega logo veio se juntar a ele; sabia que o outro era religioso, e puxou esse assunto polêmico: era desculpa para expor a sua doutrina do cinismo engajado, uma postura coringa que servia para religião, moral, política, literatura e relacionamentos, dentre outros. Exibicionismo puro, é claro, e conferia se a coroa não estava prestando atenção; não estava. Na fila viu uma de sandália; era razoavelmente bonita, mas tinha uma falta grave: os dedos tinham as extremidades maiores que a base, parecendo aqueles microfones com proteção de espuma. Na rampa, voltando, lá vinha uma cocota – estagiária ou visitante – com um vestidinho maleável que bailava com seu andar desenvolto. Cabelos pretos e curtos, uma boca miúda. Chinelos pretos; a pele era bem branca, os contornos eram suaves, os dedos pequenos e bem feitos, da famílias das diagonais, unhas de um marrom escuro, bem próximo do tom do vestido. Cara, isso tira o sossego de um cristão. Ou de um cínico.

Desceu as escadas tentando sistematizar a apreciação de pés femininos: podia entrar pra história como o pai da podolatria científica, que seria matéria universitária dali a dez anos. Havia duas distinções básicas: uma era entre dedão maior e segundo maior, cada qual tinha representantes dignas; outra era entre diagonais e parabólicas, e ele também não chegava a ter uma preferência. Havia obviamente as anomalias, duas das quais já discutimos, além de estreito demais, largo demais, longo ou curto (incompatível com a estatura), dedos curtos ou longos demais, tendões demais, veias demais, calos demais, unhas mal desenhadas… teria que pedir uma bolsa para estudar a fundo.

Escovou os dentes (só então se deu conta que o efeito da anestesia se dissipara), serviu um café e foi fumar. Na área onde o cigarro era tolerado, costumavam ficar os mais antigos, quase sempre um bando de toscos que passavam o dia chamando um ao outro de viado ou corno e gargalhando estrepitosamente. Mas concentrou-se no livro e chegou ao fim; o desfecho foi meio decepcionante. Em dado momento, ao passar por um grupo, escutou a conversa; uma frase, uma palavra mesmo, chamou sua atenção. Não… o Sedução é porcaria! Chegou perto. Discutiam os sites de “acompanhantes”; ele esperou a deixa e comentou que já tinha usado aquele, mas uma vez teve uma péssima experiência: elas não mostram o rosto, e aí você chega lá e broxa de tão feia. Esse colega mais entusiasmado, de meia idade, já careca, explicou que estava justamente contando de um novo, em que as putinhas ficavam na webcam e você podia conhecê-las antes de decidir. Mas é caro; a partir de tantos reais. Assoviou impressionado. Mas vale a pena! Coisa fina. Como chama? Coisa fina! Ponto com ponto bê erre. Legal, vou conferir.

Dirigia-se ao ping-pong; deixava de ser gradualmente o saco de pancadas do setor, mas ainda perdia mais do que ganhava. Por algum motivo perdera o hábito de jogar xadrez; muito tempo atrás ganhara até um torneio. A próxima saída veio logo: curta, ouviu duas músicas do Herbie Hancock. Começou um Balzac, ou o Balzac mais célebre. No micro, comentou uma coisa ou outra e conversou com uma amiga que morava longe; seus poucos amigos moravam longe. Fez outra saída, essa longa, e conseguiu ouvir o Quadrophenia inteiro. Voltando, subiu para a lanchonete; vale o mesmo que para o restaurante, mas naquele dia não estava com sorte: só uma feiosa prestou atenção nele, viu quando ela leu o título do livro (tudo bem, ler em francês também tinha uma ponta de exibicionismo). Usava tênis. Mais uma saída curta (e mais Hancock) e dali a pouco ele retomava o visual despojado e passava o crachá. No carro, colocou Phillip Glass.

Noite

Por algum motivo naquele dia ele estava particularmente obcecado por pés. Em uma mais que feliz coincidência, as garotas do campus se esforçaram em prodigalizar belos exemplares dessa parte tão vital da anatomia feminina naquela noite. Já de saída viu um par irretocável, pertencente a uma loirinha que de brinde exibia um piercing no umbigo. Esse era um caso à parte: eram pequenos, com dedos em parábola, ápice no segundo, longos mas não demasiado, roliços; o tornozelo era muito suave, toda a pele bem lisa e clara. Ela devia cuidar dos pés, sabia de seu impacto, e para salientá-lo usava uma tornozeleira de prata e uns chinelos com falsos brilhantes nas tiras (que só perdiam em brilho para as unhas miúdas): o fetiche do fetiche. Aquele ficava com o cinturão, pelo menos do dia. Logo adiante viu uma negra com pés grandes e bem feitos, não teve certeza se era diagonal naquela posição, com proeminência de um dedão enorme: lembrou de Portinari. Mais uma e outra e outra no corredor, antes de entrar na sala: já não erguia a vista.

Olhou no relógio: estava cedo. Ela costumava chegar uns dez minutos atrasada. Foi buscar um café, mesmo sabendo que ia atrapalhar o sono. Pôs-se a cantar a música do Genesis, uma que narrava uma história e exigia malabarismos vocais: chamou alguma atenção aqui e ali. Viu outro belo par, diagonal perfeita, sandália de couro; ela não chegou a olhar pra ele, apenas percebeu que ele olhava, pode marcar zero. Voltou e entrou: ela não estava; sentou-se bem atrás de onde ela costumava ficar. Mas quase se esqueceu dela ao passar no caminho por uma morena de estatura mediana, cabelos bem lisos, no ombro, e olhos bem escuros, pele no tom perfeito, num vestidinho preto e… chinelos com brilhantes nas tiras. A desafiante ganhou por nocaute: nunca tinha percebido como seus pés eram lindos! O segundo era basicamente do tamanho do dedão (anotação mental: ampliar as categorias) e daí em diante uma curva muito suave; era um pé estreito, a curvatura interna pouco acentuada, tornozelo um pouco proeminente, mas tudo isso com uma singularíssima harmonia. Talvez aquele esmalte rosado fosse desnecessário, mas não estragava tudo. Cruzaram o olhar (não era a primeira vez); ela se comportou como quem se interessa mas não quer dar esperança: namorado. Aí ela entrou. Aquela-ela-ela. Uma saia longa azul escuro, uma blusinha de alças preta com pintas brancas (que saboneteiras!), e novos óculos, menores, com uma armação marrom que lhe caía bem com o tom dos cabelos. Que mulher. Nos pés, aquelas sandálias de couro azul claro, que combinavam com as unhas, já as tinha visto: cobriam a parte de trás e de cima dos pés. Remetiam à Grécia Antiga, na cabeça dele. Como queria que ela pisasse nele, mas não metaforicamente como costumavam fazer. Ela olhou pra ele, séria, e se sentou. Daquele ângulo tinha boa visão; deve ter olhado um minuto até ter uma epifania: sabia de onde conhecia aquele pé. Era o pé da abertura do Monty Python’s Flying Circus: o pé que esmaga tudo.

Tirou do bolso um papel: coragem; roçou com ele no ombro dela. Ela se assustou: o que é isso? Ele sinalizou com os olhos para que ela o lesse. Dizia: vi que você faz notas das aulas, será que eu podia fazer uma cópia? Era a aula antes da prova. Ela deu um sorrisinho que pra ele parecia uma confirmação. Rabiscou alguma coisa e devolveu o papel com uma escrita infantil: sim, mas estão muito bagunçadas. Ele estava além do nirvana. Enquanto isso, o professor prosseguia com seu circo de vaidade intelectual. Acabada a aula, abordou-a; ela parecia sem jeito. Sacando tudo de Kant? Um pouco de conversa miúda e foram juntos até a copiadora; ela era do diurno e estava fazendo só aquela à noite: daí nunca a ter visto antes. Ele achava tudo lindo então, mas mais tarde em retrospecto decretaria que ela era meio apatetada. Muito obrigado e tal, você não quer me dar seu telefone? Depende. Ele pressionou. Ela tinha namorado.

Tentou não se irritar: você fez o que tinha que fazer. Mas era uma bela decepção. Ela me encorajou! Ainda saboreou mais alguns voltando pro carro, e passou por uma gatinha num momento particularmente fritação do duo batera/sax (ele adorava essa combinação); ela nem reagiu, que pena. As cenas e os diálogos da noite ficaram girando em sua cabeça, precisava extravasar. Desfez-se do disfarce, tocou um pouco de bateria. Rodou um Stravinsky que estava na pilha de ouvir. No computador, mensagem de uma mina com quem fizera sexo mecânico, um comentário a sua piadinha, pouca coisa. Abriu um vídeo que o ajudaria a relaxar; era uma culminação, ao contrário do Kevin Spacey em Beleza Americana, que começava assim o dia e daí era ladeira abaixo. Sempre que a coisa começava a esquentar, pensava em visitar um daqueles sites; naquele dia, tinha a sugestão do colega para conferir. E uma ruiva pra esquecer.

Epílogo Desnecessário

Abriu o Coisa Fina. Era bem feito, caprichado. Os ensaios mostravam o rosto das modelos, e elas eram cada uma mais linda que a outra. Lá vai meu décimo terceiro. Algumas fotos permitiam ver os pés, mas a que mais chamou atenção, uma morena de olhos verdes (falsos, provavelmente), com dedinhos gorduchos numa diagonal perfeita e esmalte vermelho escuro, não estava on-line: um ícone em forma de câmera apagado o indicava. Viu uma loira de cabelos ondulados, muito bonita, corpo incrível; mas não via seus pés. A câmera estava acesa, clicou. Era menos bonita do que nas fotos, é claro. Aquela conversa falsa de sempre, será que isso excita alguém? e fez-lhe o pedido. Ah, safadinho… levou a webcam até os pés. Nada feito. Disse que ia pensar e mandava uma mensagem (tinham até um sistema de bate papo). Olhou mais algumas e se interessou por uma outra loira, cabelos escorridos, bem compridos, franja, seios pequenos mas um traseiro digno de nota. Dava pra ver um pouco dos pés em uma foto, e pareciam promissores. Estava disponível. Dessa vez ela parecia ainda mais bonita no vídeo, um ar risonho; olha, posso pedir uma coisa? Mostrou: eram perfeitos; lembrou-se do duelo de mais cedo dos chinelos com brilhantes. Que dia! Eram um trinta e quatro (ele perguntou), as curvas pareciam ter sido projetadas num túnel de vento, dedinhos curtos numa parábola de livro-texto, unhas só com brilho. Elogiou-os efusivamente, ela tinha um sorriso lindo, dentes perfeitos. Mas tudo isso?! Bem… onde é?

Ela estava com uma lingerie preta de muito bom gosto, o ambiente era agradável. Fez-lhe uns protótipos de carícias que, se não eram afeição real, ao menos ajudavam a criar um clima. Não que ele já não estivesse excitadíssimo. Ajoelhou-se: que obra de arte! Tomou-lhe o esquerdo e o analisou minuciosamente; com os olhos primeiro e depois com a língua. Ela dava risadinhas deliciosas. Ergueu-se e beijou-lhe o pescoço com ânsia, e atrás da orelha. Nunca fazia nada parecido com… modelos. Sussurrou-lhe alguma coisa no ouvido. Ela recuou, olhou-o entre surpresa e confusa, mas com toques de marotice. Disse uma cifra, que era um acréscimo de vinte por cento.

Enquanto se banhava – e lavava os pés com atenção redobrada – ela pensava: é simpático esse maluco, que olhos (ela até havia comentado). Tem cliente que é mais fácil atender. Ele a admirava no ritual de se enxugar; pára de me olhar! você é muito linda, obrigada. Abraçou-a de novo, sentiu seu cheiro. Então, na verdade eu tenho outra proposta; ela franziu o cenho. Senta aqui.

Na semana seguinte, ele tinha outra aula pela manhã, mas não se importou em chegar atrasado. Passeou tranquilamente pelos longos corredores daquele prédio abominável, com a mão esquerda segurando uma mãozinha pequena e frágil. Já haviam na verdade se visto no fim de semana: ele lhe comprou um vestidinho e umas sandálias de couro trabalhado, que ficaram ótimas naqueles pezinhos fantásticos. Caminhava afetando indiferença, mas sorveu cada gota de uma boa meia dúzia de olhares invejosos. O zênite foi mesmo quando percebeu claramente que um marmanjo admirava despudoradamente os pés de sua mais nova amiga.

 

 

Projeto Pacífico

1

Sér­gio era enge­nheiro mecâ­nico, e conhe­cera André — eco­no­mista — no time de rúgbi da facul­dade. Aca­ba­ram se mudando para a capi­tal, aquele admi­tido em uma trans­na­ci­o­nal, este veio a se tor­nar ope­ra­dor finan­ceiro. Eram dois belos e bem suce­di­dos trin­tões, e legí­ti­mos bon-vivants, cada um a seu modo: Sér­gio gos­tava de car­rões e de fes­tas com música ele­trô­nica, enquanto André era mais um homem de fre­quen­tar o tea­tro e metido a enó­logo. O pri­meiro era um mulhe­rengo inve­te­rado, enquanto o segundo era pra­ti­ca­mente casado com Car­men, uma argen­tina um pouco mais velha, atriz, que além de uma pes­soa fas­ci­nante era her­deira de um rico indus­trial por­te­nho (não que isso fosse determinante).

Car­men orga­ni­zara um con­ves­cote com alguns cole­gas da com­pa­nhia e André cha­mou a Sér­gio, que apa­re­ceu com uma morena espe­ta­cu­lar. Esta­vam todos no espa­çoso apar­ta­mento da atriz, em um aflu­ente bairro da metró­pole; enquanto ela pilo­tava o toca-discos, tro­cando Miles Davis por Igor Stra­vinsky (vinil é “insu­pe­ra­ble”, expli­cava ela), ele dava uma aula sobre Bor­de­aux; o amigo amas­sava a morena no sofá. Foi quando a domés­tica uni­for­mi­zada avi­sou que o fon­due seria ser­vido na varanda. Em uma mesa, o fon­due de queijo reu­nia os dois casais e o dire­tor da trupe — um excên­trico ses­sen­tão homos­se­xual; já o fon­due de cho­co­late aca­bou sendo uma espé­cie de “segunda divi­são”, não por isso menos animada.

A con­versa pas­sou por diver­sos assun­tos, até que o dra­ma­turgo reve­lou seus pro­je­tos malu­cos de uma peça sobre diver­sas coi­sas, den­tre elas o impé­rio Inca. Os dois ami­gos se entre­o­lha­ram com um sor­riso. Sér­gio expli­cou aos demais:

_ Na época da facul­dade a gente fez uma via­gem até Cusco. Muito legal lá.

A morena — Kátia, se eu esqueci de apre­sen­tar — olhou-o com ar de reve­rên­cia e, pas­sando a mão em seu rosto, pediu que con­tasse mais. Ele abo­ca­nhou mais uma tor­ra­di­nha com queijo der­re­tido, deu um gole de vinho e começou:

_ A gente foi até o Acre. Na época nós está­va­mos envol­vi­dos com o Santo Daime, e fomos até lá conhe­cer a ori­gem de tudo.

_ Vocês sem­pre fue­ran par­cei­ros mismo, hein? — Car­men interveio.

_ Ah, sim. E tinha a rádio tam­bém, a gente fazia um pro­grama. Foram bons tem­pos — acres­cen­tou André, girando sua taça de vinho para observá-lo escorrendo.

_ Bons tem­pos são agora! — ata­lhou Sér­gio cor­tando a nos­tal­gia e pro­pondo um brinde.

_ Essa é ati­tude! — apoiou o dire­tor, esta­lando as mãos espal­ma­das com o engenheiro.

_ Daime não é aquela coisa que deixa doi­dão? — Kátia arriscou.

André fez uma cara feia, mas foi polido.

_ Não é nada disso, meu doce, qual­quer dia eu te explico. Enfim, eu já tinha ido lá antes, e conhe­cia o pes­soal de uma igre­ji­nha pequena, e a gente ficou lá com eles; gente muito boa, sim­ples. Faz muito bem a gente da selva de pedra, como nós.

_ Bem — pros­se­guiu Sér­gio –, a gente tirou dez dias para ir até o Peru. O André tam­bém já conhe­cia lá, ele sem­pre se ligou nes­sas coi­sas meio ripon­gas, eu tava des­co­brindo um mundo novo. A gente pre­pa­rou as mochi­las, a ideia era fazer a tri­lha inca, e pegou o busão em Rio Branco que ia até a fron­teira, Assis Bra­sil. Um luga­rejo minúsculo.

_ Naquela época não tinha nem ponte, a gente teve que atra­ves­sar em uma canoa! — obser­vou André.

_ Na ver­dade, a ponte ainda está em cons­tru­ção, deve ser inau­gu­rada até o fim do ano. O mais sur­real foi a Toyota que a gente pegou do outro lado, em…

_ Iña­pari.

_ Isso. Os caras vão enfi­ando gente numa perua até no tan­que de gaso­lina, e toca pra Mal­do­nado, estrada de terra. Ali a pai­sa­gem ainda é a amazô­nica, mas a popu­la­ção já é basi­ca­mente mes­tiça. Inclu­sive foi junto com a gente uma bem boni­ti­nha… (Kátia lhe deu um leve tapa na mão).

_ Lem­bra das pol­le­rias? — os dois riram.

_ É o McDonald’s deles: frango assado com batata frita, a gente comia isso quase sempre.

André pediu licença para ir à cozi­nha avi­sar que o queijo aca­bava. Kátia optou por se jun­tar ao fon­due de cho­co­late (um pouco pelo fora que dera), o dire­tor per­ce­beu que não seria a alma da festa ali e se jun­tou aos cole­gas — suas risa­das afe­ta­das se fize­ram escu­tar -, e Car­men apro­vei­tou para virar o disco. Já Juli­ana, que era empre­sá­ria do grupo, pediu para se jun­tar ao fon­due de queijo.

Sér­gio, che­gando o amigo, per­gun­tou se podia continuar.

_ Depois que eu bus­car mais vinho, que eu ia esquecendo.

_ Pô, eu acho que eu tava afim de um scotch, você tem?

_ Eu sem­pre tenho, mas… a Kátia dirige depois?

_ Sem problema!

André abriu o vinho, com todos seus ritu­ais, e ser­viu a todos, “na ver­dade, ele devia res­pi­rar” — fez ques­tão de obser­var; a cri­ada trouxe a gar­rafa de uís­que e um pequeno balde com gelo, e castanhas.

_ Qué pasó des­pués? — cobrou Car­men, que esque­cia de tentar falar por­tu­guês quando bebia.

_ Em Puerto Mal­do­nado a gente pegou um avião pra Cusco — André reto­mou (os dois parece que dis­pu­ta­vam para nar­rar). É fas­ci­nante ver a flo­resta sim­ples­mente dando lugar à cor­di­lheira, a tran­si­ção é abrupta.

_ Tem mais: a gente ficou em dúvida ainda se ia de ônibus, mas eram qua­renta minu­tos de voo e dois dias de busão! Mas ima­gina, subindo a cordilheira!

_ Foi aí que a gente come­çou a for­mu­lar o Pro­jeto Pací­fico: com­prar um 4X4 e ir até Cusco, e então até Lima, dirigindo.

_ Es locura! — excla­mou Car­men. Sua amiga e colega, que esti­vera calada até então, fez a pri­meira intervenção:

_ Eu acho uma grande ideia. A vida é feita des­sas lou­cu­ras. Tipo o Amir Klink: o cara atra­ves­sou o oce­ano remando, dá pra ser mais louco que isso? Depois escre­veu livros, ganha uma grana dando palestras…

_ É, mas isso aca­bou virando lenda, a gente não levou muito a sério…

_ Eu nunca esqueci o pro­jeto — pro­tes­tou Sér­gio — acho que um dia ainda dá pra fazer, mas o ideal era fazer um lance pro­fis­si­o­nal, com patro­cí­nio e tudo.

_ Pois então — animou-se Juli­ana — eu tra­ba­lho exa­ta­mente com isso. Se você for­mu­lar um bom pro­jeto, você con­se­gue sim um patro­ci­na­dor. Tipo Petro­brás, por exem­plo… Alguma coisa rela­ci­o­nada a bio­di­e­sel, sei lá. Essa é uma via­gem que teria reper­cus­são inter­na­ci­o­nal se bem explo­rada. É inte­res­sante pra eles.

Os ami­gos se entre­o­lha­ram, num silên­cio cheio de cum­pli­ci­dade. Aquilo fazia sen­tido. Car­men par­ti­lhava do entu­siasmo da amiga.

_ Vocês pue­den facer una pelí­cula, un road movie, docu­men­tá­rio, sei lá. Es cierto que con­si­guen apoio! Hay la tele­vi­sión do gobi­erno ahora, que puede inte­res­sarse; has dicho que la puente vai ser inau­gu­rada, trata-se de un hecho his­tó­rico, el camiño del Pacífico…

A ideia ganhava momento.

2

_ Porra, André, eu tô come­çando a gos­tar dessa história!

_ Nem me fala, cara, eu bem que pode­ria ficar um mês longe da bolsa, estou há três anos sem férias, vai me acres­cen­tar uns anos de vida!

_ Eu acho que vou é chu­tar meu trampo pro alto. Uma aven­tura des­sas vai melho­rar meu cur­rí­culo. Acho que a… como é mesmo seu nome? Acho que a Juli­ana tem razão, eu pode­ria dar pales­tras moti­va­ci­o­nais, é uma grana fácil! Mas… será que um mês dá? Pra ir e voltar?

_ Ir e vol­tar por quê? Só che­gar lá é mais que sufi­ci­ente. A gente passa o carro nos cobres e volta voando.

Kátia, que tam­bém não con­se­guira se entur­mar no meio dos artis­tas, e já matara a von­tade de comer cho­co­late, vol­tou a sen­tar junto a seu homem. Ficou curi­osa com o entu­si­asmo de todos.

_ De que vocês estão falando?

_ De diri­gir até o Oce­ano Pací­fico, baby! — Sér­gio res­pon­deu, com a boca cheia de castanhas.

_ Isso é con­versa de bêbado!

Todos exer­ci­ta­ram mais uma vez a paci­ên­cia com aquela moça bobi­nha que caíra nas gar­ras de Sér­gio, que, levando a mão à testa e bai­xando a cabeça, foi menos suave do que o amigo, tendo inti­mi­dade para tanto.

_ Qual é a sua, sua anta, quer jogar água no nosso chope? Esta­mos falando sério!

Ela fechou a cara, cru­zou os bra­ços e pediu timi­da­mente desculpas.

_ Não fica assim boba — Sér­gio ten­tou pacificá-la -, na ver­dade é um sonho antigo, que parece que pode se con­cre­ti­zar agora, dá pra res­pei­tar? — Ela se des­cul­pou mais uma vez e em ins­tan­tes já estava sor­rindo, pen­du­rada no pes­coço de seu garanhão.

_ Putz, lem­bra quando você tinha aquela CR-V? Era per­feita! — André reto­mou a conversa.

_ É, nem me lem­bra, eu gos­tava daquele carro. Sabe que eu com­prei pen­sando nessa via­gem, né?

_ Aí você por­rou ela num poste, seu bebum irres­pon­sá­vel! — repre­en­deu o amigo meio a sério e meio de brin­ca­deira — Mas não há de ser nada, hoje a gente tem como com­prar qual­quer uti­li­tá­rio esporte, e novo!

_ Vocês podem mesmo ten­tar isso pelo patro­cí­nio — a empre­sá­ria res­sal­tou -; olha, eu posso aju­dar vocês: meu tra­ba­lho na peça está feito, eu tenho tempo livre.

Um ator jovem chegou-se ao ouvido de Car­men e sus­sur­rou alguma coisa, e saiu com um sor­riso no rosto e esfre­gando as mãos.

_ Sér­gio, enti­en­des alguna cosa de autos, no?

_ Sin­ce­ra­mente, Car­men, só de diri­gir. Bem lem­brado, seria impor­tante levar um mecâ­nico. Na ver­dade, eu tenho um colega que saca muito, ele já me aju­dou mais de uma vez; é até irri­tante, ele só fala de carro.

_ O Platinado!

_ Ele mesmo. O ape­lido já diz tudo, né? O cara é do tempo do pla­ti­nado. Mas sabe tudo de parte ele­trô­nica tam­bém. Eu vou con­ver­sar com ele.

_ André, vas a me dejar aqui por un mês?

_ Bem, você está presa aqui com a peça, não? Está pen­sando em ir com a gente?

_ Me gus­ta­ría, si. Y la tem­po­rada es de seis meces, no pue­den esperar?

_ Eu pre­ci­sa­ria de uns três ou qua­tro pra parte buro­crá­tica — Juli­ana observou.

_ Entonces! Puedo ir?

_ Por suposto! — André, esfu­zi­ante, caçoou do por­tu­nhol da amá­sia — Brinde ao Pro­jeto Pacífico!

_ Eu tenho uma ideia melhor: ir de um oce­ano ao outro. Uma trip transcontinental!

_ Boa, Sér­gio! A gente podia sair do Rio, sabe como é, uma cidade conhe­cida no mundo todo. Rio-Lima!

O ator que con­fa­bu­lara com Car­men vol­tou com um base­ado aper­tado. Como o fon­due já aca­bara, e a domés­tica estava reco­lhendo tudo, jun­ta­ram as duas mesas em uma; como já era um tanto tarde, alguns se des­pe­di­ram e se foram, ficando a festa mais inti­mista. Car­men foi até a vitrola e sape­cou um Frank Zappa. Sér­gio e André se lem­bra­ram das noi­tes de rádio, em que Zappa era uma cons­tante. Car­men, pas­sando a bola para o par­ceiro, lembrou-se:

_ Ter­mina de con­tar el viaje!

 

3

_ Cusco é toda mar­rom vista de cima, ao menos naquela época — Sér­gio pas­sou na frente do amigo, a quem Car­men se diri­gira. Quando a gente pegou o táxi, eu fiquei curi­oso de ver a ban­deira do movi­mento gay por todo lado. A do arco-íris. Depois eu fui des­co­brir que era a ban­deira do Impé­rio Inca!

O dire­tor sol­tou mais uma de suas gar­ga­lha­das e fez ques­tão de manifestar-se:

_ Eu não sabia disso! Cer­ta­mente vou usar essa na peça, posso?

_ Claro, fique à von­tade. Depois… — pros­se­guia Sér­gio, até André tam­bém atropelá-lo.

_ A gente dei­xou as coi­sas no hotel, foi até a Plaza de Armas, que ficava perto. É lindo aquele lugar. Levei o Sér­gio pra conhe­cer a Cate­dral e, depois de comer, fomos até Sac­sayhu­a­mán, ruí­nas ali bem perto da cidade. À noite, uma bala­di­nha no Mama África, um dos mui­tos infer­ni­nhos da cidade.

_ De vez em quando um pega fogo — brin­cou Car­men. De fato, alguns anos antes hou­vera uma notí­cia nesse sentido.

_ No outro dia — Sér­gio reto­mou –, eu peguei uma excur­são para Macchu Pic­chu; o André, que já conhe­cia, não quis ir, e pas­seou um pouco pela cidade. É muito bonito, inte­res­sante, mas tem turista demais. E no fim eu gos­tei mais de Pisaq.

_ Inclu­sive a gente des­co­briu que a tri­lha inca estava sim­ples­mente impos­sí­vel de ser feita, muito gringo. O que a gente fez? Com­prou um mapa de tri­lhas para fazer uma cami­nhada por conta pró­pria. E no dia seguinte par­ti­mos sem rumo definido.

_ Como cha­mava aquele pri­meiro lugar que a gente foi? Eu nunca lembro.

_ Chin­chero — André com­ple­tou satis­feito. Fomos de ônibus, para come­çar por lá. Era inte­res­sante que tinha pré­dios espa­nhóis ergui­dos sobre ruí­nas incas. Conhe­ce­mos uma moça isra­e­lense lá.

_ Eles têm uma his­tó­ria de fazer ser­viço mili­tar e depois sair via­jando, acho inte­res­sante. Sei que de Chin­chero a gente andou con­tor­nando uns mor­ros… É muito dife­rente a pai­sa­gem de relevo recente, e aquele céu trans­lú­cido… eu acho que ainda tenho aque­las fotos em algum lugar. Lem­bro que tirei várias no começo da via­gem, depois aca­bou o filme — eu ainda usava filme! — e fui desen­ca­nando; afi­nal, você pode regis­trar uma ima­gem, mas não a expe­ri­ên­cia, ou mesmo a noção de pro­fun­di­dade. E eu nunca fui um fotó­grafo profissional.

_ A Car­men sabe tudo de foto­gra­fia. Inclu­sive pode ser nossa cine­gra­fista, não?

Ela ape­nas sor­riu com a suges­tão do namo­rado. O entu­si­asmo cres­cia. André prosseguiu.

_ A gente estava quase che­gando em Uru­bamba, o pró­ximo luga­rejo, quando pas­sou um ônibus esco­lar. O Sér­gio, que estava quase morto, fez sinal, e eles para­ram. A gente aca­bou indo até Ollan­tay­tambo, uma cida­de­zi­nha maior, de onde sai o trem pra Águas Cali­en­tes, onde fica Macchu Pic­chu. A gente con­se­guiu uma hos­pe­daje por lá pra pas­sar a noite.

_ Esse dia foi mais um aque­ci­mento, eu estava fora de forma, e fumava, na época. No dia seguinte é que a gente pegou uma tri­lha mais pesada, subindo. Pas­sava em uns três luga­re­jos… Pal­lata, eu acho, foi onde a gente parou pra lan­char. Mais na frente, vinha subindo um cami­nhão e a gente pegou carona. O André que­ria ten­tar ir até uns lagos que esta­vam no mapa, mas a gente pas­sou direto e quando o cami­nhão parou a gente resol­veu seguir uma famí­lia, só o pai falava algum espa­nhol. Dali em diante foi como uma via­gem no tempo: tanto pela pai­sa­gem exó­tica quanto pelas pes­soas, que só fala­vam quechua.

André se levan­tou para bus­car vinho; já estava bem cha­pado, tanto do vinho quanto da maco­nha, que só fumava de vez em quando. Ama­nhã é sábado, pen­sou, que se foda. Apro­vei­tou para dis­pen­sar a domés­tica, entregar-lhe o extra com­bi­nado (que mal valia o sacri­fí­cio de vol­tar àquela hora de ônibus para casa). Ten­tou ser rápido, para não per­der a nar­ra­tiva que tão boas recor­da­ções evo­cava, de luga­res que tal­vez vol­tasse a visi­tar, se aquela con­versa toda não se reve­lasse no fim — como sen­ten­ciou Kátia — mera con­versa de bêbado. Che­gando de volta, Sér­gio lhe perguntou:

_ Como era o nome do tiozinho?

_ Jacinto, nues­tro hom­bre en Huacahuasi!

 

4

Riram-se às lar­gas ambos cama­ra­das, e André anun­ciou que aquele era um cali­for­ni­ano, mas que era exce­lente; na ver­dade, tinha sem­pre um vinho mais barato para quando já esta­vam bêba­dos. O dire­tor, já de fogo, insis­tia em cha­mar atenção:

_ Ai, você me lem­bra um rapaz de São Fran­cisco que eu conheci. Deus meu, o que era aquilo! — e fez um gesto com as duas mãos sepa­ra­das pelo tama­nho de um falo avantajado.

Car­men sentiu-se cons­tran­gida e levantou-se para puxar-lhe cari­nho­sa­mente a ore­lha. Sér­gio per­ce­beu a deixa e reto­mou a narrativa:

_ Pois lá fomos nós com o Jacinto, esposa, filho e um per­rito. Ele disse que ia para Hua­cahu­asi. A gente olhou no mapa e sim­ples­mente não tinha tri­lha até lá! Bem, con­fi­a­mos nele quando ele disse que era perto: “dos hori­tas, poco, no más”, ele repe­tia. Dis­se­mos que está­va­mos can­sa­dos, e lá vai ele: “des­pa­cito, dos hori­tas, poco, no más”. Sem­pre que a gente per­gun­tava se estava perto ele dizia a mesma coisa.

_ A gente não con­se­guia acom­pa­nhar o ritmo deles, acos­tu­ma­dos à alti­tude e ao tra­jeto, e ele ofe­re­ceu suas hojas de coca. Eu ia par­ti­ci­par de uma sele­ção e achei melhor recu­sar, o Sér­gio mas­cou com gosto.

_ Hoja de coca no es droga! — e cha­co­al­lhava o ter­ceiro uísque.

_ Uma hora a gente che­gou a um rio, com um pequeno plano. Eu per­cebi que era a deixa para ficar ali e erguer acam­pa­mento. O Sér­gio que­ria ir adiante.

_ Só que quando eu fui falar eu vi que já não con­se­guia mais arti­cu­lar as pala­vras! Aí sem chance. Fica­mos ali, fez um frio des­gra­çado quando a noite caiu; pre­pa­ra­mos um macar­rão com carne de soja e che­ga­mos a con­ver­sar sobre a pos­si­bi­li­dade de tomar Daime — a gente tinha levado uma gar­ra­fi­nha. Mas seria lou­cura… ou excepcional.

_ A gente dei­xou pra manhã seguinte a deci­são: vol­tá­va­mos pelo cami­nho conhe­cido ou arris­cá­va­mos che­gar até Hua­cahu­asi? De lá tinha cami­nho até outra cidade e aí pas­sava uma estrada. Sei que apa­re­ceu um tio catando esterco de llama, figura impro­vá­vel, catarro escor­rendo, a cara quei­mada… Ele não falava quase nada de espa­nhol, eu entendi que ele estava indo pra Hua­cahu­asi, e pen­sei que a gente pudesse acompanhá-lo. Ele dizia “dulce”, deve ter sido uma das únicas pala­vras em espa­nhol que ele disse, e eu dei uma bola­cha reche­ada. No fim, a gente sacou que não ia obter nada dele. Aquela cena me lem­bra um conto do H.G.  Wells…

_ Enfim, — Sér­gio reto­mou — esse maluco aqui deci­diu pei­tar o desa­fio, e segui­mos por onde pare­cia haver uma tri­lha, que às vezes sumia, a gente ficava em dúvida, mas fomos adi­ante. Era longe pra burro, a gente nunca que ia che­gar no dia ante­rior. Foi nesse dia que a gente foi mais alto, eu vi neve pela pri­meira vez. Sei que a gente che­gou na casa do Jacinto (nues­tro hom­bre en Hua­cahu­asi), que ficava antes de che­gar na cidade mesmo — se é que dá pra cha­mar aquilo de cidade.

_ Você está esque­cendo que a gente encon­trou outro cara, um jovem, no final do tra­jeto, lem­bra o nome dele?

_ Sem chance. Sei que ele me deu umas lições de que­chua, mas eu não guar­dei nada. Bem, quando afi­nal a cidade apa­re­ceu, todo esforço se pagou: a pai­sa­gem era linda! O luga­rejo ficava no fundo de um vale escar­pado — deu um bom tra­ba­lho des­cer! — e seguindo o vale tinha uma cas­cata enorme, espetacular.

Sér­gio olhou para André como que para “pas­sar o bas­tão”, e assim iam acer­tando os pon­teiro na nar­ra­ção compartilhada.

_ E a gente acam­pou lá, era no fim da tarde. Eram algu­mas casas de adobe ao longo de um ria­cho — o mesmo da cacho­eira. Aliás, eu tinha esque­cido, no começo da cami­nhada, quer dizer, par­tindo de Ollan­tay­tambo, a gente pas­sou por uma cacho­eira e não teve dúvida: entrou debaixo; num frio medo­nho! Enfim, quando a gente acor­dou no outro dia, tinha um monte de mole­que olhando pra gente como se a gente fosse ali­e­ní­gena! Muito engraçado.

O dire­tor entrou de novo em cena:

_ Olha, eu tô me sen­tindo até mal com minha vidi­nha con­for­tá­vel de “elite branca” (era uma alu­são a uma decla­ra­ção de um polí­tico). Eu nunca me meti numa aven­tura remo­o­o­ta­mente parecida!

Car­men não ligou dessa vez, mas apro­vei­tou a inter­rup­ção para obser­var que fazia muito frio ali fora, e con­vi­dou a todos para entrar. Sér­gio pre­ci­sou acor­dar Kátia, que dor­mia encos­tada em seu ombro. Mais dois dos ato­res se des­pe­di­ram. Sér­gio per­ce­beu que a hora era avan­çada e só então, sendo o papo tão bom, lhe ocor­reu con­fe­rir o reló­gio (carís­simo), des­co­brindo que era uma e meia. Resol­veu apres­sar a nar­ra­tiva, que já estava mesmo perto do fim, e sina­li­zou a André, que prosseguiu.

_ A gente pegou a tri­lha para Lares. Moleza. Des­cendo, bem batida, e curta. Em Lares tinha águas ter­mais, foi o repouso mere­cido. A gente ficou o dia inteiro pra­ti­ca­mente de bobeira. À tarde a gente ficou espe­rando o trans­porte pra Cusco, e não viu nada. Só à noite a gente foi des­co­brir que era uma cami­nho­nete comum, que a gente viu mesmo sair. Paciência.

_ Nós che­ga­mos a dar entrada em uma hos­pe­daje para ficar ali, quando apa­re­ceu uma van, a gente con­ver­sou com o cara, que disse que ia pra Cusco, e a gente subiu. Cara, eu só que­ria ter feito aquela trip de dia, para cur­tir a vista; a gente ia cor­co­ve­ando, des­cendo a mon­ta­nha; mas pelo menos tinha uma lua cheia. Chato foi a fiti­nha do George Michael! — os dois riram.

_ Então, aí quando che­gou em Calca a gente resol­veu des­cer. Ou foi em Pisaq que a gente dormiu?

_ Não foi Calca mesmo, no dia seguinte a gente foi pra Pisaq, conhe­ceu as ruí­nas lá. Já disse que eu gos­tei mais que Macchu Pic­chu, né? No mesmo dia a gente vol­tou pra Cusco e quando reto­ma­mos o quarto no hotel e entra­mos debaixo da ducha quente (sepa­ra­dos, é claro), — o dire­tor dis­pa­rou outra gar­ga­lhada — foi uma sen­sa­ção tão boa de dever cumprido!

_ Pois é. E ainda teve direito a mais um Mama África antes de vol­tar. Era cada enxa­dada, uma minhoca, lembra?

_ Ô!

Dali em diante os ébrios con­vi­vas foram se dis­per­sando, se des­pe­dindo. Sér­gio teve difi­cul­dade para levar a sono­lenta morena embora (e no dia seguinte já esta­ria com outra). Car­men per­ce­beu que esque­cera a vitrola rodando sozi­nha, e des­li­gou tudo. Juli­ana, que ficou muito cha­pada com o beque, e ficou escu­tando tudo em silên­cio — ou ao menos a parte em que ainda estava acor­dada –, levan­tou gro­gue e rea­fir­mou a seri­e­dade da pro­posta, antes de ir embora com o dire­tor, que não pare­cia nem um pouco can­sado e ainda pas­sou uma não tão sutil can­tada em Sér­gio. Todos pro­me­te­ram vol­tar a se falar sobre o Projeto.

 

 

Utopia Calling

1

Do outro lado da linha, Agemiro mal cria que Pablo conseguira completar uma ligação: os dois amigos não se falavam havia já três anos. A conexão transatlântica entretanto era péssima, e não foi sem dificuldade que Pablo narrou sua desventura. Agemiro se contentou em ouvir; em seu íntimo, o amigo já não lhe despertava compaixão alguma.

Haviam estudado juntos, desde o início do fundamental até o fim do médio. Talvez não fossem o melhor amigo um do outro, inseparáveis; mas tanto melhor, pois relações intensas são geralmente mais instáveis, ainda assim, os dois eram sempre da mesma patota, e não aprontaram poucas. Chegados à adolescência, calharam de disputar uma garota, o que parece tê-los feito – ironicamente – mais próximos. Agemiro pouco pôde comemorar sua conquista, Fabiana não chegou a ficar dois meses com ele, e o caso certamente ajudou a moldar seu temperamento cético das mulheres e da vida.

Para piorar, Pablo pela mesma época começou a namorar a garota mais bonita da escola, dois anos mais jovem que os dois. Érica se destacava de fato das colegas: aproximava-se muito mais do padrão de beleza europeu imposto pela televisão que as demais; era descendente de italianos e seu pai era um industrial tão pão-duro que não a matriculava em escolas particulares, fazendo-a uma alienígena dentre os matizes raciais endêmicos na Escola Estadual Jairo Pedrosa, em Botafogo.

Pablo, assim como Agemiro, não vivia na penúria, mas também não estudava em escola pública por opção. E desde novo se mostrou afeito a dinheiro e boa vida, de modo que mesmo percebendo em Érica um gênio difícil, fez tudo para mantê-la, incluindo (e principalmente) bajular seu pai. Seus sonhos foram pouco a pouco se realizando: ficou noivo, casou-se e, com a morte do insuportável sogro, herdou uma fortuna e uma fábrica de aneis vedantes.

Agemiro, por sua vez, ao passo que ia falando cada vez menos com o amigo, ia se aproximando cada vez mais da boemia; de uma forma amargurada de boemia aliás. Ia sozinho a bares ou espetáculos, ou antes com um livro por companheiro. Cometia seus versos, mas não se incomodava em apresentá-los a ninguém. Com as mulheres teve mais duas ou três desventuras e simplesmente desisitiu: todo aquele ritual da corte lhe parecia ridículo e como as pessoas não eram, e não pareciam dispostas a ser, francas, era apenas justo que ele se resignasse à misantropia e à solidão.

 

2

Continuaram se falando com frequência variável, mais pela nostalgia dos tempos da escola do que por um verdadeiro laço; mas eram amigos, de certa forma. Pablo assumiu integralmente os negócios do finado sogro, e Agemiro era gerente de uma empresa de material de escritório. Pablo o visitava às vezes em Duque de Caxias, mas nunca o convidava para sua cobertura na Vieira Souto, até que um dia Érica viajou para visitar parentes em Santa Catarina, e Pablo ousou enfim recebê-lo.

Agemiro não tinha nenhuma novidade para contar, mas Pablo sim – e uma bem inusitada. Começou por destilar a velha cantilena de que a violência está insuportável, que lhe haviam roubado o relógio, que o Brasil não tem mais jeito e tudo mais. Então passou a descrever um projeto magnífico, revolucionário, de um novo país que seria fundado, um oásis de segurança e prosperidade, sem marginais, sem congestionamentos, sem corrupção e mesmo sem políticos, e seguiu descrevendo esse paraíso, que não teria nem mesmo mosquitos ou doenças tropicais. Tudo graças à tecnologia e à eficiência de uma empresa privada. Agemiro arqueava cada vez mais as sobrancelhas.

Era uma iniciativa de gente endinheirada dos Estados Unidos, que em boa parte já vivia em cidades privatizadas, e obviamente, das empresas que geriam tais cidades, que se uniram em um consórcio chamado de Utopia Inc. Este seria o nome do país, nada original: Utopia. Agemiro, aceitando a caipirinha que o amigo lhe oferecia, pensou consigo mesmo: será que alguém dessa empresa, ou dos futuros moradores se deu o trabalho de ler Thomas More? Perguntou: onde ficaria afinal esse eldorado? Pois é, respondeu Pablo, será arrendada metade de um país africano, que é perfeitamente ociosa hoje; e com a receita, a metade remanescente poderá enfim se desenvolver! Todos ganham!

 

3

Agemiro desistiu de arregalar os olhos e coçou o topo da cabeça com uma expressão resignada. Perguntou: e onde é que você entra nisso? Simples, retomou Pablo, eles estão vendendo cotas a qualquer um que queira emigrar. Emigrar? (não gosto dessa conversa… pensou) Sim! Serei acionista do meu próprio país, não é formidável? Nem um pouco, disse Agemiro quase a si mesmo; e em voz alta: escuta, não estão aceitando latinos apenas para varrer as ruas? Latino? Quem é latino aqui? Tá me chamando de cucaracha? protestou em tom semi-debochado Pablo, e seguiu: não, todo trabalho braçal será terceirizado, dizem que serão do leste europeu. Não querem negros por perto? – ironizou Agemiro – é apartheid assim mesmo, sabia? Agemiro, você não é meu amigo, porra? Fica com essas ideias de comunista, caralho, isso já saiu de moda! Olha, posso fumar um cigarro? – Agemiro desconversou irritado. Claro, vamos até a cobertura.

Subiram e a linda vista do Rio de Janeiro acalmou o amigo estupefato. O outro prosseguiu. Não quer saber o que vou fazer com a fábrica? Não tinha pensado nisso… Aí é que estamos: não tenho nenhum parente mais no Rio; não quero chamá-los também, não me dou com nenhum. Agemiro interrompeu: porque ainda são pobres? Pablo encarou o interlocutor e quase soltou vapor pelas ventas; afastando-se do parapeito, indicou uma cadeira de vime ao amigo, sentando-se em outra: porque são incompetentes e preguiçosos, só isso. Mesmo sua irmã? – Agemiro lembrou-se do cigarro e acendeu um. Esquece minha irmã, é ela quem não gosta de mim. Hum… não a culpo. Agemiro, quero que você cuide da fábrica.

Ele se engasgou com a caipirinha e a cuspiu fora num jato. Como? Que absurdo é esse? Nada absurdo, você é gerente, não? é de confiança, é meu amigo, qual é o problema? Pablo, isso não é pra mim, é uma péssima ideia. Por que não a vende? Nem pensar, eu preciso lavar… preciso levar adiante meu sonho! A fábrica é da Érica, caramba, que sonho? A fábrica é nossa, e vai ser um pouco sua também: você terá uma participação. Não dá certo, o olho do dono é que engorda o porco. Tá bom, mas pense a respeito? Por mim?

O resto da conversa foi desajeitado, trocaram reminiscências sem grande entusiasmo. Agemiro falava sem pensar, consumido pela dúvida. Gostava de sua vida humilde e pacata de classe média baixa, mas vinha tendo dificuldade para pagar todas as contas e nada conseguia economizar. A reforma na casa que precisava fazer era sempre adiada, e seu plano de saúde era um autêntico cobertor curto. Despediu-se quase decidido.

 

4

Pablo só esperou que fosse construído o aeroporto em Utopia. Foi até lá cuidar da construção de sua mansão de cinema. Não que precisasse, ele confiava plenamente na Utopia Inc., mas estava tão entusiasmado que não queria ficar de fora. Pablo travava negociações duras com a agência de emprego da Utopia Inc., as melhores posições pareciam estar tomadas, e acabou conseguindo um posto de burocrata na universidade que seria construída. Por ora, torrava a herança e confiava na renda da fábrica; ou pelo menos assim parecia. O país foi mesmo sendo construído: a infra-estrutura se erguia em velocidade espantosa; a produção agrícola, que já vicejava, era terceirizada, mas temia-se o fato de as fontes principais de água ficarem do lado de lá da fronteira. Fronteira que era aliás fortemente vigiada, por uma outra empresa com experiência em guerras no Oriente Médio. Foi bem depois que optaram por construir um muro.

As redes de televisão transmitidas por cabo e em alta definição traziam os noticiários do ocidente, que falavam em tom entusiasta da empreitada: as ações da Utopia Inc. eram dentre as de melhor desempenho, as pessoas já haviam se adaptado e viviam prósperas vidas. Até a mão-de-obra terceirizada parecia ir muito bem, escolheram até um brasileiro para entrevistar: dizia que o salário de camareiro era bom, estava aprendendo algum inglês – viera através de um agência – e era até divertido viver no dormitório; era branco e de classe média, no Brasil. Apenas alguns veículos independentes denunciavam uma suposta usurpação do território do pequeno país, como uma quantidade razoável de camponeses fora expulsa, às vezes comprados bem barato, às vezes ameaçados – e circulavam suspeitas de mortes.

Foi do seu computador de última geração que Pablo videofonou para Érica, dizendo que estava tudo bem, estaria trabalhando em breve, apenas as coisas eram muito caras. Ouviu mil banalidades e declarou que ligava para dizer que era hora de ela se juntar a ele; Érica ainda fez charme, comentou sobre a tia-avó doente e tudo, mas sabia que aquele era seu destino (gostava demais de Pablo) e na semana seguinte já partia. Chegando, tudo lhe pareceu artificial demais, mas tinha certeza de que se acostumaria.

 

5

No Rio, Agemiro assumira a direção da fábrica e um naco da sociedade, tudo em cartório. Ia tudo muito bem, obrigado: nos dois primeiros anos que Pablo esteve fora, a empresa navegou tranquilamente o mar da bonança econômica. Agemiro não mudara muito seus hábitos, para além do terno exigido por sua posição. E foi em mais uma de suas noites na Lapa que acabou conhecendo uma morena linda, que agia e falava com muita espontaneidade, e sorria com uma graça singular. Achou prudente fornecer sua profissão antiga ante o questionário de Sílvia – esse era seu nome – em parte por desconfiança, em parte por timidez; mas arrependeu-se depois: ela não parecia ser mera interesseira, e ele se veria em maus lençois para desmentir a si mesmo – ainda que fosse uma revelação positiva. Sustentou a mentira indefinidamente, pois a partir daquele dia viam-se corriqueiramente. Ela, se não mentia, era pedagoga em uma escola, e batalhara muito para fazer faculdade trabalhando em casa de família e conseguir aquele emprego.

Começaram então a surgir os problemas na fábrica: um concorrente havia feito uma descoberta que revolucionava o mercado, com um produto melhor e mais barato. As vendas começaram a despencar, contratos eram cancelados ou não eram renovados. Agemiro ligou para Pablo, que não pareceu muito preocupado, mas disse que assim que pudesse tirar férias iria ao Rio. Não se falaram por um bom tempo após isso. Agemiro passou a se maldizer e repetir que sabia desde o início que aquilo não era boa ideia. Sílvia o achava preocupado e insistiu até arrancar dele a confissão de que era empresário por vias tortas, e o motivo de sua inquietação.

Pela mesma época, Agemiro viu uma notícia na TV dando conta de um escândalo financeiro envolvendo justamente a Utopia Inc. Especulação financeira, corrupção, métodos questionáveis… o bastante para reduzir a credibilidade da empresa a pó, e jogar suas ações no fosso. Mais uma vez sua cabeça martelava: “isso não vai dar boa coisa”. Quando um país está na bolsa de valores e quebra, não é como um banco, não há quem lhe socorra. E o colapso é inevitável. Quando a imprensa passou a se interessar pelo caso, descobriu que não era bem vinda em Utopia, que já vivia de facto um regime de exceção. Eram divulgadas notas pela administração dando conta de que tudo estava às mil maravilhas, e tratava-se de combater a liberdade na internet. Eventualmente todas as comunicações foram cortadas. Bem-vindos à Distopia.

 

6

Pablo tentou minimizar os escândalos da Utopia Inc. – estava certo de que tudo daria certo. Mas ficou mais difícil acreditar nisso quando os serviçais terceirizados, antes coagidos a não se sindicalizarem, passaram a se organizar e, ao ficar um mês sem receber (a empresa tentava cobrir buracos os sacrificando), declararam greve geral e o caos começou a se instaurar. Os serviços públicos deixaram de ser prestados, o campo foi abandonado e a segurança foi comprometida; com isso, os vizinhos africanos, que vagamente invejavam o oásis de prosperidade que ali se instaurara, antes a eles vedado, passaram a inundar as três cidades utopianas, com as perspectivas de emprego abertas pela greve. Decidiu-se então canalizar os recursos e energias restantes a erguer um muro ao longo da fronteira – o que pode ter terminado de derrubar o combalido projeto.

O Estado funcionava em modo de emergência, e um burocrata acadêmico era necessariamente desnecessário. Pablo ficou desempregado e aí então começou a se preocupar. Ele se cria um dos pioneiros fundadores de um sonho, mas não passava de um inocente útil que ajudou a financiar um projeto duvidoso. E como a alta das ações e os aportes dos novos colonos cessaram, acelerou-se a debâcle. Os colonos lá instalados dividiam-se entre os que batalhavam para salvar a embarcação – e seus investimentos – e os que fugiam, primeiro por concorridos voos, depois por precárias estradas, quando as linhas aéreas foram suspensas. Pablo resistia o quanto podia, mas Érica não estava gostando de fazer serviço doméstico, os preços disparavam e sua renda virtualmente desaparecera, ou estava retida em paraísos fiscais.

Por essa época já havia episódios de violência entre brancos e negros, e mesmo entre eles, e o mundo tomava conhecimento do caos utopiano por mais que se tentasse barrar a informação. O governo central era tão frágil que já circulavam boastos de uma evacuação em massa. Mesmo antes que isso acontecesse, um corajoso engenheiro da companhia de comunicações, unido a um grupo de colonos enfurecidos, restabeleceu as linhas telefônicas para que se pudesse falar com o mundo externo. Foi aí que Pablo conseguiu estabelecer contato com Agemiro novamente.

 

7

Pablo contou todas suas desventuras, todas agruras por que passava o país de seus sonhos, disse  que se arrependia de ter embarcado nessa e que na verdade o Rio era o melhor lugar do mundo. Adiantou a situação periclitante do país, que a qualquer momento implodiria, que o que restaria sobraria para os “pretos” e que ele mesmo fugiria em uma caravana na semana seguinte. Agemiro reafirmou a situação complicada da fábrica, cujo produto ficara de repente obsoleto, revelou que pretendia se casar com Sílvia e que queria sair da sociedade. Pablo pediu que ficasse tranquilo, que resolveriam tudo ele chegando ao Rio. Agemiro ainda arriscou um “é uma pena” não muito sincero.

Após atravessar três países, Pablo conseguiu voar para Madri e de lá para o Rio. Érica e ele já estavam estremecidos, ela pensava consigo que aquele aventureiro arruinara sua vida e destruíra a fortuna de seu pai. Mas quando um mês depois se separam ela recebeu um valor significativo. O apartamento da Vieira Souto ainda estava alugado, e os dois amigos se encontraram em Copacabana, perto do hotel de Pablo. Pessoalmente, Agemiro sentiu enfim alguma compaixão, e sentiu-se bobo de ver um triunfo no infortúnio do amigo que não se contentara em ser um membro afluente da sociedade carioca – queria viver longe da “gentalha” em um mundo inventado. Pablo era um homem arrasado. “O importante é que você voltou à Cidade Maravilhosa e tem a vida pela frente”, tentou reanimá-lo. Combinaram que fechariam a fábrica, venderiam o prédio e o máquinário, dividindo as receitas. Trocaram mecanicamente as mesma reminiscências de sempre e se despediram.

Com o valor recebido, Agemiro e Sílvia montaram uma escola em Duque de Caxias, ela sendo coordenadora e ele professor de matemática. Vivem bem o bastante e costumam ir à praia ou à serra nos fins de semana. Não abandonaram também a Lapa onde se conheceram. Pablo às vezes os visitava, e não tinha mais pudor de recebê-los na cobertura. A diferença sendo que Pablo de certa forma agora invejava a vida simples do amigo. Seguiram se vendo amiúde, até a prisão de Pablo pela Polícia Federal. O (até há pouco) respeitável empresário era um dos mais altos postos de uma rede de tráfico internacional de drogas.