Na Trilha Certa
Na Trilha Certa I
Fazia parte do mis-en-scène: ao se apresentar, Halunke tinha sempre que acrescentar: é alemão. A bandeira tricolor encabeçava o cartão: Halunke Großlügner, embora ele tivesse nascido em Brasília mesmo, de pais mais paulistanos do que germânicos. Uma linha abaixo, em caixa alta, lia-se “INVESTIGADOR PARTICULAR”. Na capital, o negócio para detetives não girava em torno de segredos industriais ou mesmo negócios de Estado (geralmente chamavam gente de fora quando era coisa séria), mas geralmente em torno de infidelidades conjugais, e essa era a especialidade de Hal, como os mais íntimos o chamavam. Ele amargava um período numa pensão da W3 sul enquanto as coisas não melhoravam, e estava descendo a pé para a 400 onde havia um restaurante fuleiro onde costumava almoçar quando o telefone tocou.
_ Senhor Grosinger?
_ Gosslügner (ele alongava o ü), é alemão.
_ O senhor me foi indicado por uma amiga… Investigador, é isso?
_ Escuta, estou atravessando uma passagem subterrânea, pode me ligar daqui a pouco?
_ É rápido, quero marcar um encontro, precisamos conversar.
_ Sim, hoje ainda?
_ Se possível.
_ Às quatro? Onde?
_ Na praça de alimentação do Conjunto Nacional
Nesse momento, a ligação caiu, e ela insistiu até que, tendo ele saído do túnel, restabeleceu o contato. Ela descreveu a roupa que usaria e até a bolsa; ele só mencionou o chapéu, um clichê do qual não abria mão. Halunke entrou no restaurante de bermuda, camiseta e chinelos e pediu um prato feito e uma cerveja. Antes que a comida chegasse, o trecho de Noite no Monte Calvo que elegera para toque de seu telefone soou, distorcido e mais alto que a televisão, que transmitia o noticiário esportivo. Ele, impaciente, disse algum palavrão, imaginando que se tratava da mesma pessoa, mas não era. Era um colega, outro detetive, o Jorjão (é português). Os dois se engajaram em qualquer conversa fiada, até que veio o PF e Hal tentou desligar logo; Jorjão propôs um chopp mais tarde, e combinaram de se encontrar no Beirute.
Depois de comer, ele voltou para casa suando copiosamente sob o sol de dezembro, tomou um banho e pouco depois um ônibus até a rodoviária, e chamou atenção com sua magreza, seu terno e chapéu pretos. Tinha tempo até o compromisso, e passou no Na Hora para levantar as contas atrasadas do escritório, uma loja de subsolo que estava basicamente fechada recentemente; era uma fortuna que ele não tinha nem como pensar em pagar. Subiu para o conjunto e, apesar de ter almoçado há pouco, comeu um quibe para passar o tempo. Ainda sobrou algum para visitar a tabacaria e fumar um cigarro (ele os enrolava), e estava na praça à 16:05; percorreu-a de um lado ao outro até ver uma coroa muito bonita em um vestido verde, que mantinha uma bolsa roxa sobre a mesa: só pode ser ela.
_ Olá, minha senhora.
_ Sr. Grosunder, sente-se.
_ Großlügner, é…
_ Alemão, eu já sei. Precisamos ser rápidos, não quero ser vista aqui.
_ Então por que sugeriu?
_ Aqui ainda é menos provável que alguém do meu círculo me veja, e não quero que pensem que estou pulando a cerca, você sabe o poder da fofoca.
_ E ser vista aqui é… embaraçoso?
_ Esquece isso, Gros…
_ Halunke, por favor.
_ Certo. Enfim, você já fez isso antes, o caso é simples: meu marido está tendo um caso e você precisa provar.
_ Ele é rico? A senhora estava apenas esperando esta chance, imagino?
_ Não vim aqui para ser julgada, Halunke. Ele é rico e influente, e você deve tê-lo visto no jornal ontem – e sacou um recorte da bolsa de grife, transmitindo-o ao interlocutor.
_ Sim, estou a par – mentiu – Comissão de Orçamento, uma vez eu trabalhei… mas deixa pra lá. É um peixe grande, senhora Macieira.
_ Albuquerque, eu mantive meu nome de solteira. Cláudia.
_ Encantado. Não é um serviço simples, esses figurões são bem assistidos e não costumam se deixar rastrear. Ele usa o veículo oficial para esses encontros?
_ Não tenho como saber, tudo o que tenho são indícios.
_ Como qual?
_ Ele sempre viaja para o Tocantins nos fins de semana, visitar sua base e tal, ser bajulado, tudo isso. Fora as negociatas, claro, ele vende sua influência para o governador, prefeitos, fazendeiros… mas não estava falando disso.
_ A senhora tem provas dessas mutretas?
_ Isso não me importa, é parte do trabalho dele. O que eu ia dizer é que na última dessas viagens ele foi visto em Caldas Novas. Não consigo imaginar outro motivo para ele mentir. E o chamei para pegá-lo no pulo.
_ E o escândalo, é uma coincidência?
_ Sim. Na verdade, nem sei se é um momento apropriado, coitado.
_ Entendo. Não se preocupe, dona. Dê a ele todo apoio nessas horas difíceis, e dê a mim o máximo de informações: rotina, telefone, endereço dos amigos mais próximos…
_ Ele não tem amigos, só assessores.
_ Exatamente, assessores, o nome dos outros parlamentares que ele frequenta, clube, cassino, qualquer detalhe… modelo, cor e placa dos veículos particulares, do carro oficial, o nome do motorista – fez uma pausa olhando pensativo para o teto; você não tem nenhum palpite sobre a identidade da amante? Muitas vezes é alguém bem próximo.
_ Vou pensar nisso, mas não me vem ninguém à cabeça. Tem outra coisa, não ligue para este telefone. Escreva para este endereço eletrônico ao fim de cada dia – e sacou papel e caneta.
_ Mas eu… ah, sim, perfeitamente (teria que percorrer quatro quadras até a lan house mais próxima todo dia).
_ Então me escreva que ainda hoje envio tudo que eu conseguir. Agora, não preciso dizer, sigilo absoluto. Eu quero esse material para uma eventualidade, de modo algum quero mais um escândalo para desgastar a ele (e a mim) ainda mais. A corrupção é tolerada, mas questões íntimas jogadas no ventilador são motivo para anátema social.
_ A senhora não terá decepção, sra. Albuquerque, eu sou o mais eficiente e o mais honesto detetive na cidade. Ética é tudo no nosso ramo.
_ Pode me chamar de Cláudia. Adeus, Halunke, preciso ir.
_ Como precisa ir? Não falamos em dinheiro, e no mais importante: meu adiantamento.
_ Onde eu tenho a cabeça? Quais são seus termos?
_ Um barão agora e mais quatro no final.
Ela, que esperava gastar muito mais, sugeriu que fossem até o terminal do banco e sacou o montante da conta conjunta (“ele nem vai perceber”). A carteira de Halunke havia muito não via tanto dinheiro, e fazia um volume enorme na calça risca-de-giz esmaecida. Despediram-se com dois beijinhos e Halunke não sabia se alucinava ou se percebia um sorriso maroto daquela matrona de cabelos castanhos presos no topo da cabeça e olhos verdes circundados de maquiagem. Livrou-se do paletó e voltou à praça de alimentação, onde comprou uma cerveja em copo de plástico. Desceu para fumar e quando terminou conseguiu um táxi. Ainda teve tempo de ler Chandler com a TV ligada antes de tomar um banho e descer para o Beirute, uma curta distância que preferiu caminhar (o que ajudava a pensar, também). Tomou uma cerveja sozinho antes que o colega aparecesse.
Na Trilha Certa II
_ Jorjão!
_ Salve, Príncipe Hal!
Trocaram um cumprimento estrepitoso e Jorge se sentou na cadeira oposta. Pediram mais uma cerveja e Jorge, um quibe; o outro confessou que detestava o quibe do Beirute. Por um tempo o assunto foi a separação recente de Halunke, depois passaram por futebol até que Jorge comentou o mais recente escândalo político, ao que Halunke ergueu o sobrolho.
_ Nem me fala, cara.
_ Desembucha.
_ Hoje eu consegui um caso. A mulher desse Macieira aí.
_ Não brinca. O de sempre?
_ O de sempre, Jorjão, mas tem coisa aí.
_ Tá na cara, Hal, logo em cima do escândalo?
_ Todos esses caras têm uma, se não mais amantes, e as mulheres via de regra sabem. Por que elas iriam pular fora? O bolo só cresce. Geralmente elas também aprontam e fica assim, em nome da conveniência.
_ Isso deve ser algum jornalista ou adversário político, cara, que quer pôr as mãos em material comprometedor e propôs o golpe à madama.
Fez um cigarro e o acendeu, o cheiro de fumo barato despertou olhares. Em volta, a nata da fauna urbana da capital, gays e lésbicas, hipsters e metaleiros, funcionários e poetas.
_ É possível. De qualquer maneira… A primeira coisa que eu tenho que fazer é enquadrar o figurão. E eu não tenho porra nenhuma.
_ Nada?
_ Segundo ela, é só uma suspeita.
_ Malcheiroso, Hal.
_ Que seja, e você?
_ Alemão, eu te liguei por isso. Talvez você possa ajudar… sabe como é a camaradagem no nosso ramo.
_ Claro, Jorge, camaradagem e ética, não se esqueça. Diga logo.
_ Esse é de uma garota de fugiu de casa. Família riquíssima, de Anápolis. Viraram a cidade de ponta cabeça, estavam desesperados; um dia ela ligou e deixou uma mensagem, e o DDD era 61. Aí me descobriram na lista. Já ouviu falar de Lauro Saavedra?
_ Nunca.
_ Empresário da indústria farmacêutica, pica-grossa. É o pai. E essa aqui – abriu a carteira e tirou uma fotografia – é a pilantra, Patrícia Saavedra, dezessete anos.
Hal soou um silvo em tom decrescente. A imagem mostrava uma loira sorrindo, sardas quase imperceptíveis, olhos castanhos translúcidos, em um vestido florido esverdeado esvoaçante e pose insinuante, mas natural. Os acessórios e a sandália de couro davam um ar meio riponga.
_ Que ninfeta, não?
_ Ela não tem metade da sua idade.
_ Foi só uma observação. O que mais você tem?
_ Sei que ela gosta de ir ao teatro, por exemplo.
_ E você vai fazer plantão na porta de todos os teatros até vê-la.
_ Essa é uma das estratégias, mas como eu sei que você também gosta…
_ Eu não tenho ido, estou meio quebrado…
_ Desde o divórcio.
_ Isso de novo, não. Enfim, até que entrou algum agora.
_ Bom pra você. Mas o que eu ia dizer é que você fique atento quando for, esta é uma cópia, pode ficar.
_ Claro, mano velho, pode contar comigo, espero que eu possa ajudar. Sugiro concentrar no Renato Russo, pelo estilo. E tem outra, posso usar seu rastreador?
_ Porra, cara, cadê seu equipamento?
_ Você sabe. Jorjão, seu serviço é outro, não tem uso para um rastreador.
_ Amanhã você passa no meu escritório. Liga antes. Alguém já conseguiu negar uma coisa a você, seu patife?
Resolveram pedir um prato e comeram trocando banalidades. Despediram-se e Hal tomou o rumo de casa um pouco embriagado, não sem antes abordar um dos guardadores de carro e conseguir vinte mangos de fumo – andava careta por falta de grana – e voltar ao bar para pegar uma seda de guardanapo.
Na Trilha certa III
Morar em pensão era foda, e ele fumou em um beco, sem se preocupar muito, e subiu. A dona ainda encheu o saco sobre qualquer coisa à qual ele nem prestou atenção e ele capotou na cama. Dormiu um bom sono, ainda que não se possa dizer o dos justos, e acordou com metade da manhã percorrida. Lavou o rosto e limpou os dentes com pasta e dedo índice. Passou um café ansioso para poder fumar, o que tinha que ser fora. Estando lá, pensou em ligar para a madama, mas se lembrou da interdição. Subiu, vestiu algo entre formal e casual e dirigiu-se até a lan house, lá perto também podia comer um misto. Escreveu a Cláudia: “prezada sra. Albuquerque, é necessário que nos encontremos para tratar da quermesse da paróquia”. Era um misto de paranoia e excentricidade um pouco forçada. De qualquer forma, ele ganhava tempo para cuidar de outra campanha, uma árdua e ingrata missão que se resumia a conseguir o carro que ficara com a esposa. Escapar vivo já era um sucesso, então se resolveu a ir; hesitou entre ônibus e táxi, mas como a corrida ia ser cara – até o Lago Norte – foi de coletivo: não havia pressa.
Aquela piranha ia estar em casa, não trabalhava, era sustentada pelo usurpador, ele ruminava no ponto. O ônibus demorou e ele ensaiava as linhas para, santo como era, produzir um milagre; chegou então um baú da linha que lhe servia e ele foi até a rodoviária sentado ao lado de um jovem em roupas espalhafatosas e cabelo arrepiado. Teve uma ideia: conseguiu as contas com as CEB e pagou todas na boca do caixa, com a grana viva que recebera. Ia reabrir o escritório, e talvez resgatar sua dignidade um pouco. Dinheiro é que ele ia ter que fazer de algum jeito. Pegou outro ônibus e chegou ao Lago Norte por volta de três horas, e a barriga avisou que ele estava sobrevivendo apenas com um misto. Tocou a campainha da ampla casa, avarandada e pintada de azul escuro. Na garagem se podia ver o sedã preto que era dele enquanto durou o casamento; o utilitário-esporte da ex-sogra, que Nádia, a ex, usava, e qualquer carro que o usurpador usasse, não estavam. Atenderam a campainha, era a empregada, que, muito constrangida, fez todas as cortesias ao ex-patrão. Disse que dona Nádia não estava e não sabia quando ela voltava. Ele apertou a bochecha da mulher com os dedos.
_ Dona Sílvia, quantos anos nós não convivemos aqui nesta casa, hein?
_ É mesmo, seu Jonas.
_ Halunke, dona Sílvia.
_ É mesmo, perdão.
_ Seu filho está bem?
_ Sim, ele foi promovido a tenente.
_ Que ótimo! Escuta, será que eu posso almoçar?
_ Como?
_ É que agora não tem mais restaurante aberto, sabe…
_ Eu tenho que ligar pra dona Nádia, seu Haduke.
_ Não ligue, não é necessário, veja, eu sou de casa!
_ Vai, entra, não vai me meter em confusão!
Havia umas sobras bem generosas, ele esquentou um prato no micro-ondas e estava começando a comer quando ouviu o carro entrando. Ele foi encontrá-la na porta da sala, mas talvez tenha chegado perto demais, pois ela girou o braço e o acertou com a bolsa, talvez por mero instinto, mas, dado o estado da relação, talvez não. Era uma morena de cabelos curtos em torno dos 35, uma beleza exótica e um colo assaz interessante.
_ Ei, alto lá! Missão de paz!
_ Como você quer que eu me sinta vendo você dentro da minha casa? Você invadiu minha residência?
_ Não, a Sílvia me deixou entrar. Eu estava com fome. Ainda estou, na verdade.
_ E você vem até minha casa para economizar com uma refeição?
_ Não, claro que não, eu já explico, mas relaxa, vai. Guarda suas compras, eu posso comer da sua comida, você permite?
_ Não seja ridículo, Hal, vai lá e come. Mas eu quero que me ligue antes sempre que quiser falar comigo, tá bom? E como você sabe que eu fiz compras?
_ Muito simples, o porta-mala está aberto. Eu sou um detetive, baby.
_ De quinta. Não pode me ajudar pelo menos?
_ É claro.
À medida que executavam o trabalho, o clima se desanuviava, e conversaram amenamente sobre o desempenho de Luísa na escola e a saúde da sogra, ou ex-sogra. Ela estava internada com problemas renais. Hal esquentou novamente o prato e eles conversaram enquanto ele comia, ela de pé, encostada a um balcão e bebericando um chá.
_ Você pode falar por que veio?
_ É uma questão delicada, Nádia. Veja só…
_ Eu não gosto desse “veja só”.
_ Pois bem…
_ Nem do “pois bem”.
_ Enfim, “nem do enfim”, você vai dizer, que previsível. Mas eu vim discutir um assunto.
_ Qual?
_ Um assunto importante.
_ Sou toda ouvidos.
_ Sua mãe não dirige há vinte anos…
_ Ah, isso não!
_ Pensa, Nádia, este carro está parado, eu consegui um caso que só posso atacar com um carro, você sabe, é minha profissão!
_ Foi a decisão do juiz, você sabe que aqueles cinco pés eram tão seus quanto meus, eu fui sacaneado. Esta casa era minha antes de nos conhecermos.
_ Você veio aqui para discutir isso?
_ Não, eu não vim para discutir, eu vim para implorar. Nádia, desse carro depende minha carreira, minha subsistência. Eu garanto que devolvo logo, inteiro, e recompenso você como puder, quando puder.
_ E o que vou dizer para o Henrique?
_ Eu quero que esse bosta se foda.
_ Não fala assim, Hal.
_ O carro é seu, a decisão é sua.
_ Ai, caralho… Eu não quero ver você na merda, seu patife. Mas isto vai me custar caro. Eu sou louca.
_ Você é sábia, Nádia.
_ Vá à merda.
Na Trilha Certa IV
O carro estava parado havia um tempo e foi difícil pô-lo andando, mas afinal Halunke beijou a mão da ex-mulher e deu um abraço em Sílvia. A primeira parada foi um postinho, onde abasteceu, comprou uma lata de cerveja e buscou na memória do telefone, que agora podia também iniciar chamadas, o contato do Jorjão. O amigo dispensou o “alô”.
_ Meu grande!
_ Tudo nos conformes?
_ Na santa.
_ Tá na área?
_ Até as seis.
_ Nada, eu chego rápido. Você não vai acreditar, estou oficialmente motorizado.
_ Foi bom o adiantamento.
_ Nada disso, estou a bordo do velho batmóvel.
_ Não brinca.
_ Já chego aí, a gente conversa.
_ Claro, até mais.
O escritório do parceiro era no Venâncio 2000 e ele enfiava o pé no eixão norte, sabendo que não teria que pagar as multas. Deixou o carro no parque para evitar a tarifa do estacionamento, caminhou sob um sol ainda intenso e apertou o botão do estacionamento enquanto enxugava o suor da testa com as costas da outra mão. Uma placa negra com letras douradas contrastava com a porta de imitação de jacarandá: “Jorge Mascarenhas, Detetive Particular”. Não tocou a campainha, simplesmente entrou. O escritório era pequeno, mas o mobiliário era de bom gosto, sóbrio; havia uma divisória e uma mesa para a secretária, remanescente do estabelecimento anterior, pois Jorjão nunca teve uma. Era ele que transpunha a porta de vidro da divisória.
_ Salve, salve!
_ Mil vezes salve, Jorge. Meu caso já está indo bem!
_ Mesmo? O que você conseguiu?
_ Meu carro, ora!
_ Como a Nádia caiu nessa?
_ Nada, ora. Eu disse que eu preciso e ela não.
_ Ela ainda curte você, Hal.
_ Todo mundo sabe. Ela só me deixou para aproveitar a situação e ficar com tudo.
_ Bem, está aqui o aparelho. Eu não devia fazer isso, mas você é como um irmão. Mesmo assim, se voltar avariado ou não voltar, você paga. Sabe o que diz o ditado.
_ Sim, “cavalo dado não se olha os dentes”.
_ Quê?
_ Caralho, Jorjão, isso aqui é obsoleto!
_ Vai se foder, porra!
_ Meu, preciso usar o computador.
_ Senta aí.
Halunke acessou o e-mail e, no meio de muita porcaria, lá estava a resposta de Cláudia. Sugeria um lugar na Vila Planalto, na hora do almoço. Isso é bom, ele pensou, e ainda dizem que não há almoço grátis. Respondeu confirmando. Jorge fechou o escritório, e acompanhou Halunke até o parque; guardaram o estojo no carro e se sentaram num quiosque para tomar uma gelada. Era dia ainda, um fim de tarde abafado, opressivo, mas bonito.
_ Meu, se você precisa achar essa moça, está fazendo o que no escritório, esperando ela tocar a campainha?
_ Eu tento achá-la na internet, mas ela deve ter mudado de nome, não usa sua própria foto. À noite eu acho mais provável topar com ela. Inclusive eu vou seguir sua dica hoje.
_ Vai ao teatro?
_ Quer ir?
_ O que é?
_ Não faço ideia. Vamos, minha esposa está viajando, a gente passa lá em casa, trata um.
_ Assim você me ganha.
Jorjão morava na asa sul, perto de uma distribuidora de bebidas, o que vinha a ser providencial. De modo que passaram umas duas horas bebendo, fumaram um e estava ambos retardados ao chegar ao Renato Russo. Faltavam ainda quinze minutos para o início da peça, que prometia ser “um drama sobre a inadequação na era da cultura de massa”. Fria. Aproveitaram para tentar abordar as outras pessoas com uma conversa mole e perguntar sobre a moça, mas mal conseguiam articular as palavras e houve um que até chamou a segurança. A fugitiva não havia dado as caras.
_ É como achar agulha no palheiro.
_ Há quanto tempo você está nesse caso?
_ Uns cinco dias. Mas ela fugiu faz dois meses.
Estavam chamando para entrar.
_ Alguém está bancando ela.
_ Sim, bem possível.
Foi a última coisa que conseguiram dizer antes de começar o espetáculo. Com cinco minutos, os dois se olharam. Com dez, Hal cutucou Jorjão, mas ficaram. Aos quinze, ele não se conteve e se levantou, não deixando outra alternativa ao amigo.
_ Não é falta de educação sair no meio do espetáculo?
_ Falta de educação é apresentar uma peça tão pretensiosa e abusivamente metalinguística como essa.
Halunke fez e acendeu um cigarro. Dirigiram-se ao carro
_ Mas enfim, você dizia, alguém banca ela, algum cara rico, certamente. Aonde você quer chegar?
_ Quero dizer que você está procurando nos lugares errados.
O outro só o fitou entre intrigado e embaraçado. Estavam chegando ao bloco de Jorge. Subiram para finalizar a noite e Hal cochilou no sofá. Foi acordado, murmurou uma despedida e desceu para pegar o carro e voltar para casa, que por sorte não era longe, em modo automático.
Na Trilha Certa V
Dormiu com a TV 14” ligada, cedo ainda, e acordou deitado de mau jeito e com torcicolo. Tinha impressão de ter sonhado com a mãe, mas não conseguia recompor a cena. Eram oito horas. Realizou sua higiene pessoal precária, prometeu a si mesmo que compraria uma escova. Ali perto, em um ponto de ônibus, havia uma lanchonete muito pouco recomendável, mas ele achou naquele dia que precisava comer alguma coisa antes dos tradicionais café amargo e cigarro; estava resolvido a ser mais saudável. Obviamente não devia começar com uma coxinha impregnada de óleo e feita sabe-se lá quando, mas cada avanço é uma vitória, ou não? Pediu para preparar um copo de café solúvel, pois o da garrafa era um purgante de doce, enrolou seu cigarro e pôs-se a pensar. Tinha tempo até a hora do almoço, ia fazer uma pesquisa sobre o senador. Caminhou até a lan house, abriu a mensagem de sua cliente que fornecia um conjunto de informações nem sempre úteis, mas uma linha de investigação lhe pareceu clara: esses figurões geralmente mantêm seus próprios rendez-vous, com alguma sorte podia ser um imóvel em seu nome ou mesmo no de algum assessor. Aranha: esse era seu contato no cartório, ligou mas não teve resposta. Pesquisou o nome do político nas redes sociais; ele tinha contas de divulgação institucional apenas. Como o número de seguidores era pequeno, ele vasculhou a lista em busca de mulheres bonitas; havia poucas e ele anotou os nomes. Como era previsível, o velho gostava de jogo. Hal conhecia os melhores antros de jogatina da cidade, sabia como eles se comunicavam através de fóruns on-line e mesmo os códigos que usavam para marcar as noitadas cercadas de segredo. Descobriu uma naquele fim de semana, tomou notas. Ainda acessou mais algumas bobagens, olhando em volta e pronto para fechar a janela se alguém se aproximasse, e enfim seu tempo expirou. Ele pediu para usar o banheiro e voltou para a pensão, para vestir o mesmo terno e o pôr mesmo chapéu, mas escolheu uma camisa azul limpa para causar boa impressão.
Chegou meia hora antes ao local marcado, pediu uma cerveja e sacou o Chandler que quase se desfazia na enésima leitura. Uma coroa na mesa em frente a ele lançava olhadelas, mesmo aparentemente acompanhada. Hal costumava ser notado, era loiro e tinha cara de menino, o cabelo liso jogado de um lado para o outro da cabeça insistia em cair sobre os olhos, e ele achava um charme ficar consertando, o nariz era fino e os lábios, quase femininos; os olhos verdes, no entanto, eram o principal. E por falar em olhos verdes, lá vinham os de Cláudia, em um vestido preto quase excessivo para a circunstância, e sapatos abertos que faziam barulho à medida que ela andava; Hal reparou nos pés: nada mau para uma cinquentona.
_ Bom dia, senhor Halunke.
_ Como vai a senhora?
_ Muito bem, já conseguiu alguma coisa?
_ A senhora me acompanha?
_ Se eles tiverem gim-tônica.
Ele chamou o garçom e pediu.
_ A tecnologia evoluiu muito, sabe sra. Albuquerque. Antigamente nós tínhamos que seguir nosso alvo dias e dias, o que seria até perigoso neste caso, a segurança dele notaria. Mas isto aqui – disse, tirando da cadeira ao lado e pondo sobre a mesa o estojo – é a última palavra em localização georreferenciada.
Abriu a maleta, onde um molde em espuma continha dois dispositivos: um grande com uma tela de cristal líquido e um menor, do tamanho de uma borracha e com uma pequena antena ao lado. Ele pegou este último, embrulhou em um guardanapo de papel e entregou a ela.
_ Você pega fita adesiva e gruda isto no carro particular dele. Ali na saia do pneu dianteiro é o ideal.
_ Ele tem três.
_ É verdade. Escolhe um, o que ele mais usa, o que você acha que ele usa para suas escapadas.
_ Você não tem como rastrear todos?
_ Ironicamente, sra. Albuquerque…
_ Cláudia, por favor.
_ Sim, Cláudia, ironicamente eu tenho outro desses, mas precisei emprestar para um colega que passa um momento difícil. Mas não se preocupe, aposto que vamos pegá-lo fácil. Outra coisa eu queria perguntar, já vasculhou o telefone dele?
_ Já, mas são muitos números, ele é político, não achei nada suspeito. Por falar nisso, agora eu tenho este número aqui, você pode me ligar.
E sacou de uma bolsa, também preta, um quarto de folha A4 em que se liam seu nome em uma caligrafia caprichada e um número, que obviamente era de outra operadora, o que irritou um pouco Hal.
Pediram o peixe que era a tradição do lugar, e Hal aproveitou para sondar melhor aquela história. Uma TV estava ligada e transmitia o noticiário, a dado momento o escândalo da Comissão de Orçamento foi citado: já haviam colhido as assinaturas para uma CPI. Ela fingiu não prestar atenção.
_ Como vocês dois se conheceram, posso perguntar?
_ Claro, por que não? Foi em uma festa de Réveillon, no Iate. Eu estava divorciada havia pouco, ele tinha acabado de assumir o primeiro mandato, a esposa era prefeita de Palmas, e tinha mais dois anos de mandato.
_ E você virou a amante dele?
_ Não exatamente, ele quis ficar comigo desde o início, mas tinha que evitar qualquer escândalo, ele é muito influente lá e não podia comprometer o projeto político. Mas aí chegaram as eleições municipais, houve um racha no partido, ela ficou sem a candidatura à reeleição, ele aproveitou e abandonou a ela – um cadáver político – e ao partido, o que lhe fez bem, pois acabou ocupando postos cada vez mais importantes, até…
_ A presidência da Comissão de Orçamento.
A morena que tinha se interessado por Hal levantou os olhos do prato, curiosa.
_ E seu medo – prosseguiu – é que ele faça com você o que fez com ela.
_ Não, meu caro. Essa moça é só diversão.
_ Mas tudo que você tem é uma suspeita vaga.
Ela suspirou.
_ Não é a primeira vez que ele é visto em Caldas Novas.
_ Ele foi visto com alguém?
_ Não exatamente.
_ Quem é sua fonte?
_ Uma amiga do clube.
_ Quando foi isso?
_ Deve fazer um mês.
O prato chegou e o diálogo prosseguiu com pausas para mastigação; da parte dela, claro.
_ Ele viaja neste fim de semana?
_ Ele viaja quase todos, é bem provável.
_ Ele sabe da sua suspeita?
_ A suspeita é constante.
_ Você diz que ele já foi visto antes em Caldas. Só agora você quer flagrá-lo?
_ Você pergunta demais.
_ É minha profissão.
_ Ao que me consta, não sou eu a investigada.
_ Obviamente, não é. São informações relevantes apenas. Mas diz uma coisa: ele não tem um telefone em Palmas? Não seria fácil saber se ele foi pra outro lugar?
_ Ele só usa o celular.
_ Bem, eu quero que você descubra se ele viaja ou não. E não deixe de instalar o dispositivo no carro em que ele vai viajar.
_ Ele viaja no avião dele, seu tolo.
_ É verdade. Enfim, fica assim.
Vieram os dois cafés e a conta, ela pagou. Hal a acompanhou até o carro e observou modelo e placa. Despediram-se com beijos no rosto, e ela exibiu mais um daqueles sorrisos sedutores ao dizer contava com ele.
Na Trilha Certa VI
Saiu de lá em direção ao começo da asa norte, parou o carro dentro da quadra e chegou ao bloco onde ficava, ou ficara, seu escritório, pelos fundos. A porta de ferro estava repleta de teias de aranha por fora, e corria com dificuldade. Dentro, o pó cobria tudo: a escrivaninha com topo de fórmica outrora branca, o ventilador metálico e as prateleiras com muitos papéis em desordem. Ele atacou o interruptor, nada. Alcançou uma das contas na gaveta e ligou, ouviu cinco minutos de gravação mas conseguiu solicitar o religamento, que foi prometido dentro de 24 horas. Fechou tudo, subiu e caminhou até o supermercado na L2, comprou vassoura, balde, pano, e um limpador multiuso; foi um trabalho ingrato voltar com isso tudo nas mãos. Lembrou-se ainda de ligar novamente para o Aranha, que desta vez atendeu.
_ Boa tarde?
_ Aranha, Hal.
_ Seu patife! Qual é a boa dessa vez?
_ Estou na trilha de um coelho gordo, rapaz, talvez você possa…
_ Está foda, aqui, Hal, muito trabalho.
_ Então anota ai os nomes, procura quando der.
_ Não quer mandar por e-mail?
_ Isso vai ser mais… não, tudo bem, eu faço isso. Mesmo endereço?
_ Mesmo endereço.
_ Firmeza, meu camarada, até outra então.
Gastou duas horas para deixar o lugar apenas sujo, o que era um progresso enorme. Passou a fazer uma triagem nos papéis e jogava quase tudo fora, às baldadas, em uma caçamba em frente ao bloco. De repente algum documento chamou atenção. Era uma investigação de um empresário encomendada pelo sócio. Foi um trabalho interessante. O respeitável magnata da coleta de lixo tinha mais esqueletos no armário do que o Campo da Paz desenterrava todo mês para acomodar a questão fundiária do além-vida. Começava com licitações arranjadas e ia até vínculos com traficantes e execução de adversários, e em algum momento o senador Macieira apareceu, na qualidade de governador do Tocantins. Hal não tinha a boa memória que deveria, em seu ramo. Interrompeu a limpeza, pôs o envelope pardo sob o braço, fechou a loja e sentou-se no bar mais próximo, a ler a papelada. As fraudes nos contratos governamentais eram apenas mais do mesmo, mas havia indícios de que Macieira e outros políticos usavam seus salvo-condutos para levar pó da fronteira boliviana até Brasília, Rio e São Paulo. O cliente não precisava seguir aquela trilha, pagou – bem – a Großlügner e denunciou o sócio à polícia. Por algum motivo não teve sucesso, e Hal soube dele pela última vez como caixa de supermercado no interior, meio paranoico. Isso havia sido mais de dez anos atrás.
_ Eu que não quero me meter com essa gente, vou conseguir essas fotos e pular fora – disse a si mesmo em voz alta, atraindo olhares.
Resolveu que já era hora de descansar, mas foi surpreendido por uma mensagem. Era de Cláudia, e confirmava que seu marido viajaria de sexta a segunda. Ele deu uma golada substanciosa do uísque – estava com ânimo para bebida quente – e uma baforada do fumo vagabundo, pensando nas variáveis.
_ Aeroclube: aí é que eu preciso de um amigo. Esses putos não ajudam nada – desta vez apenas pensou.
Pagou, pôs o chapéu, e se levantava quando tocou o telefone, um número novo.
_ Boa tarde.
Na verdade já era mais de sete, mas era horário de verão. Seria outro caso?
_ Boa tarde, pois não?
_ Você que faz tradução?
Pronto, ia perder as madrugadas, mas ia ter o que comer: o adiantamento já tinha ido quase todo embora. Passou mais uma vez no supermercado e comprou rum, que, juntamente com um fino que sobrara, fizeram sua noite.
Na Trilha Certa VII
O rádio-relógio antigo, vintage, como ele preferia, dizia que estava atrasado, e a cabeça, modelo anos setenta e dificilmente em bom estado, dizia que estava com uma puta ressaca. O jarro estava vazio e saiu de cueca mesmo para buscar um pouco d’água no filtro; uma solteirona que morava lá desde sempre fez um escândalo e foi sumariamente mandada à merda. A escova ainda era só uma promessa, mas a pasta ajudou com o gosto ruim.
_ Que ideia estúpida, rum! Já devia ter aprendido essa.
Alcançou o telefone e discou um número da lista de chamadas recentes, sem muita certeza se era o correto. Com alguma sorte sua voz já não trairia sua sonolência.
_ Sim, sou eu, eu tive um contratempo… Minha filha se machucou na escola… Não, foi só um susto, obrigado. Podemos nos ver às onze, então? Sim, até lá.
Seu armário eram duas pranchas apoiadas em suportes metálicos fixos na parede, nenhuma das duas exatamente paralela ao piso. Escolheu uma bermuda já gasta, o que não não foi difícil, e uma camiseta de motivos hindus; uma sandália de couro completava a indumentária que vez por outra se mostrava útil, e dentro da qual não parecia ter mais de trinta e poucos anos.
Haviam combinado no Minhocão Norte, e tudo que ele sabia era que ela tinha cabelo muito vermelho. A chuva, que andava escassa para a estação, resolveu dar as caras justo quando ele pôs o pé pra fora da pensão, e ele chegou molhado ao carro, acrescentando um guarda-chuva à lista de coisas que esqueceria de comprar. Rodou as estações e acabou desligando o rádio: precisava lembrar-se de procurar as fitas no meio da bagunça que deixara na edícula da casa do Lago Norte. Estacionou em uma vaga de deficientes, o que lhe parecia menos grave do que aparecer encharcado ao encontro, e nunca o incomodou muito, aliás. Correu até uma espécie de praça onde havia lanchonetes, livrarias e copiadoras, que os estudantes – ele tendo sido um duas décadas antes – chamavam de Ceubinho. Lançou um olhar em volta e viu ao menos três garotas com cabelo muito vermelho: uma usava um improvável sobretudo preto e muita maquiagem, o mesmo basicamente valendo para todo o grupo de cinco jovens levemente andróginos; uma tinha um alargador enorme em uma das orelhas e tatuagens cobrindo o colo e um braço inteiro, em um figurino evocando pin-ups dos 50 e cercada de amigos repletos de modificações corporais; outra mais adiante usava um vestidinho cor de terra coberto de uma miríade de brocados e vidros coloridos, chinelos de borracha e os cabelos ígneos em duas tranças – sentava sozinha lendo um livro. Faltavam dez minutos para a hora marcada e ele providenciou um café e enrolou um cigarro, sentando-se para observar as belas jovens que circulavam com os pés à mostra. Um garoto com uma cabeleira enorme veio perguntar se aquilo era um beque, ele tirou o pacote de tabaco e o mostrou com um sorriso forçado. Halunke sacou o celular e ligou, de olho na moça das tranças; quando ela atendeu, ele desligou e a abordou.
_ Âmbar? Oi, desculpa, eu realmente…
_ Não tem problema, eu ia estar por aqui mesmo.
_ Certo… você tinha dito que estuda música?
_ Sim, estou terminando. Fui selecionada para esse programa na Áustria…
_ E precisa traduzir a papelada, claro.
_ Você é alemão? Não tem sotaque.
_ Eu só nasci lá, aprendi os dois idiomas em casa, um do pai e um da mãe.
_ Prático isso, não? Eu levei a vida inteira para falar algum francês.
_ C’est formidable!
Ambos riram e por sorte dele ela não prosseguiu no idioma de Voltaire, pois ele era uma farsa.
_ Então, todos arquivos estão neste CD, algo em torno de dez laudas. Quando você consegue entregar?
_ Estou com outros trabalhos, você tem muita pressa?
_ Um pouco, disso depende toda a burocracia do visto.
_ Entendo. Olha, eu cobraria trezentos normalmente. Por quatrocentos eu posso entregar em uma semana.
_ É muito dinheiro!
_ É o padrão… esses termos burocráticos todos… você pode conseguir mais barato, mas vai enviar um monte de asneira, e sei que você não quer isso, estou errado?
_ É verdade.
_ O pagamento é metade-metade, é praxe também.
_ E… você tem algum tipo de referência?
_ Bom, eu acabei de me mudar para Brasília… O que você estava lendo?
_ Cortázar – mostrando o livro.
_ Então você também fala espanhol.
_ Consigo ler…
Hal fazia esforço para não transparecer que estava salivando. Cada gesto, cada sorriso era repleto de uma graça primaveril; cada encontro dos olhos, os seus verdes, os dela quase negros, era um estremecimento. Jovem, bonita e culta, simpática sobretudo. Ele não deu tempo a ela de completar a frase.
_ Quer tomar um café?
_ Sim, claro.
Ele fingiu interesse pela oportunidade que ela tinha na Áustria, e ela explicava, enquanto eles aguardavam na fila, que se tratava de um estágio na Orquestra Jovem de Viena aberto a músicos de países em desenvolvimento. Foi quando de seu bolso as madeiras executaram seu glissando soando quase como elefantes, dando lugar a uma base de cordas em semicolcheias sobre a qual os metais executavam, irreconhecíveis através do aparelho, um tema heroico, grandiloquente.
_ Mussorgsky!
Ele fez um sinal se desculpando e se afastou para atender.
_ Pois não?
_ Halunke? Cláudia.
_ Bom dia, sra. Albuquerque. Como vai a senhora?
_ Bem, obrigado. Estou ligando para dizer que o dispositivo está instalado na caminhonete.
_ Boa notícia, sra. Albuquerque. Mantenha-me informado de qualquer desenvolvimento. Bom fim de semana.
_ Igualmente.
Quando ele voltou, ela já havia pagado pelos cafés.
_ Se importa se eu fumar?
_ Não, tranquilo, eu também ia fumar… um desses. Você tem cara de quem…
Âmbar tirara uma caixinha metálica de dentro da bolsa, mais enfeitada e colorida do que o vestido, abriu-a mostrando um baseado pronto e sorrindo desafiadora.
_ Você só quer testar meu profissionalismo.
_ Eu vou confiar mais em você, na verdade.
Ele se conteve para não tentar beijá-la ali mesmo.
_ Nesse caso…
Caminharam até um banco de concreto do lado de fora, a chuva havia passado. Conversaram sobre música clássica e popular, jazz especificamente, ele mostrou a tatuagem do Miles no braço esquerdo e ela parecia cada vez mais interessada. Ela o convidou para um recital que aconteceria no último dia de aulas, ironicamente o mesmo dia em que seu prazo se encerrava, ele garantiu que a veria e perguntou que instrumento afinal ela tocava, que vinha a ser percussão. Quando o beque acabou, Âmbar preencheu um cheque e lhe entregou; disse que estava indo almoçar no Restaurante Universitário e ensejou uma despedida. Ele disse que a acompanharia, para matar a saudade.
_ Mas você não disse que acaba de se mudar?
_ Eu estudei aqui, morei em Sampa e acabei voltando.
_ Fez o que?
_ Direito.
Quando chegaram ao caixa, ele pescou a última nota de cem na carteira para mostrar que não tinha trocado, ela se dispôs a pagar. Ele remexeu a carteira em busca de sua carteirinha falsa e, na confusão, derrubou um monte de papéis. Bem no topo estava a foto que Jorjão lhe dera. Âmbar se abaixou para ajudar, parecia surpresa.
_ É a Simone!
_ Você a conhece?
_ Sim, ela frequenta minha casa, é uh… amiga da Raquel.
_ A Raquel mora contigo?
_ Isso.
_ E quão… amigas exatamente são as duas?
Âmbar sorriu e sacudiu a cabeça:
_ Vocês homens… Por que você tem uma foto dela?
_ Eu… ah… sou amigo do pai dela.
_ Oh-oh, o pai dela… bem, acho que estou sendo paranoica.
_ Ela me deu essa foto, disse que guardasse pois um dia seria muito famosa, só isso.
_ É verdade, ela é atriz, e muito vaidosa.
Quando terminaram de comer, a chuva voltara a cair, torrencial. Ela tinha uma sombrinha minúscula na bolsa e acompanhou-o até o carro, aonde chegaram cada um com um dos ombros molhados; trocaram um olhar constrangido e dois beijinhos, ele agradeceu, ele também, imagina, essas coisas.
Na Trilha Certa VIII
Halunke voltava para casa pensando nos pés pequeninos de Âmbar, na faceirice de Patrícia/Simone e na amiga que precisou imaginar, com cabelos curtos, pretos, e olhos azuis, e em pouco tempo estavam todas nuas, explorando a anatomia umas das outras. De repente uma faixa lhe chamou atenção: internet; conseguiu, com muita sorte, uma vaga na comercial, não se molhou muito até chegar à lojinha de subsolo. Sacou seu bloco e enviou ao Aranha a lista com os nomes do senador e de seus assessores; suas buscas pelos nomes das seguidoras do político na rede social não renderam nada. Chegou então ao que queria: pesquisou tudo que pôde sobre Âmbar, achou sua aprovação no vestibular, o programa em Viena, um blog de poesia e suas contas em redes sociais; a moça ficava cada vez mais interessante. Salvou algumas fotos e enviou a si mesmo. Pesquisou então por Patrícia Saavedra, conseguiu muitas notícias em jornais locais e só; buscou então por Simone + teatro + Brasília, até que descobriu uma nota no caderno de Cultura, mencionando uma peça, ainda em cartaz, no Espaço Mosaico, e tomou notas. Não havia uma foto dela, mas parecia ser um bom palpite. Pagou pelo serviço e, subindo à superfície, percebeu que havia uma farmácia atravessando a rua; comprou enfim uma escova de dentes.
Terminou o trajeto até a pensão, tomou um banho e pôs roupas secas. Ligou o rastreador e verificou que o carro não saíra do lugar, o que fazia sentido, pois o senador fora viajar. Lembrou-se do cheque, faltavam poucos minutos para o fechamento da agência, desceu desesperado. Conseguiu sacar o dinheiro, por muito pouco, e já aproveitou para tomar uma gelada no botequim mais próximo. Sacou o telefone e ligou para Jorge, que atendeu entusiasmado.
_ Já ia te ligar, bandido!
_ Telepatia pura, meu velho. Vamos tomar uma?
_ Daqui a pouco, estou meio…
_ Hoje é sexta, porra.
_ Às seis? No velho Beira?
_ No velho Beira.
Bebeu duas cervejas sozinho, lendo o mesmo Chandler, e rumou para o Beirute, que já começava a fervilhar com o happy-hour de profissionais liberais e libertinos profissionais da capital federal. Antes que o amigo chegasse, ligou outro número da memória.
_ Zaira?
_ Sim?
_ Hal, beleza?
_ Você tem coragem de me ligar?
_ Poxa, Zaira, eu te expliquei por que…
Ela desligou, ele insistiu. Ela demorou a atender.
_ Fala.
_ Escuta, eu realmente tive um imprevisto aquele dia, tenho testemunhas.
_ Você sequer me ligou.
_ Era um assunto urgente, profissional, você precisa entender.
_ Eu não quero mais conversar.
_ Não faça isso, se você me deixar…
Desligou de novo. Ele retomou o livro, mas não leu nem parágrafo e Jorjão apareceu, com a gravata listrada em torno do pescoço. Abraçaram-se, pediram mais um copo ao garçom e Jorge começou logo a narrar seus progressos.
_ Eu pensei no que você disse. Fui a todos os restaurantes caros, abordando os garçons. Eles geralmente não sabem de nada, como sempre, mas um – a troco de cinquenta mangos – revelou que a havia visto jantando com um cara mais velho. Ali no Intercontinental.
_ Sei… é uma pista, afinal.
_ É verdade, mas o maître não quis ajudar e me enxotou.
_ O garçom descreveu o acompanhante dela?
_ Eu insisti, mas ele só sabia que era velho e gordo.
_ Ele pode ter dito qualquer coisa só pela onça.
Jorge parou por um instante, pensativo.
_ Que se foda, príncipe, hoje é sexta – brindaram.
_ Por falar nisso, meu caro, eu tenho mais um favor a pedir…
_ Caralho, Hal.
_ Relaxa, é coisa pouca. Posso usar seu escritório no fim de semana?
_ Vai trabalhar?
_ Eu consegui uma tradução pra fazer.
_ Bom.
_ Em breve vou reativar o meu, tão logo possa comprar um micro. Já paguei as contas e tudo.
_ E como vai o matrimonial?
_ Nada novo, mas o rastreador foi instalado.
_ Você está ficando preguiçoso, Hal.
_ Que nada, só aderindo à tecnologia.
Continuaram bebendo e conversando, e em dado momento o Monte Calvo atacou novamente: era Zaira. Hal conversou um pouco, concordando sempre, e, ao desligar, comunicou ao colega que precisava resolver certo assunto. Pediram a conta, Jorge se ofereceu para pagar mais uma vez e Halunke fez o charme de sempre antes de aceitar. Despediram-se, Hal por um instante considerou revelar o ocorrido no Restaurante Universitário, mas conteve-se, convinha investigar mais, podia ser alguém parecido, racionalizava.
_ Ah, sim, as chaves!
Jorge lhe entregou as chaves do escritório, ligou para a portaria do Venâncio expressando a autorização para que o amigo entrasse em dias não comerciais. Quando Hal chegou ao bloco de Zaira, na asa norte, já estava um pouco embriagado. Saíram para jantar, ela o xingava e o beijava com veemência; ele dormiu no apartamento dela, depois de uma garrafa de vinho e de uma transa intensa, seguida de um baseado. Não tivesse ele tido que pagar pelo jantar, teria sido perfeito.
Na Trilha Certa IX
A manhã seguinte exigia de Hal a velha acrobacia de evadir a cena do crime sem ferir a susceptibilidade da vítima. Ele teve que esperá-la descer para ir à padaria, tomar café conversando amenidades, e por pouco escapou de ver fotos de uma viagem à Europa que ela fizera. Zaira o acompanhou até o carro e pediu-lhe que não sumisse. Ele dirigiu até a pensão, andou até a banca ali perto e conferiu se havia notícias sobre o senador Macieira, debalde. Subiu a escada pensando no olhar idiota que a dona da pensão sempre lhe reservava quando ele dormia fora, o que de fato se repetiu. Ela aproveitou para admoestá-lo pelo atraso, ele mal prestava atenção, absorto em uma fantasia que envolvia muito dinheiro e o fim daquela humilhação. Hal teve energia bastante para tomar um banho e desabar na cama, da qual sairia apenas depois de duas da tarde.
Como o PF estaria fechado, Halunke analisou as alternativas, inclusive a casa da ex, lembrando logo o risco de topar o usurpador, e optou pelo quibe do Conjunto Nacional. Era quase uma extravagância para quem havia filado almoço dois dias seguidos. O telefone tocou quando ele fechava o carro; era sua mãe.
_ Oi, mãe!
_ Jonas, você não se importa comigo!
_ Como assim, mãe, eu sonhei com você outro dia!
_ Sério, como era o sonho?
_ Não sei, foi mais uma impressão… tá tudo bem?
_ Como se você se importasse.
_ Sem drama, mãe.
_ Estou ligando pra dizer que sua irmã vai fazer um curso no Canadá. Eu vou precisar passar um tempo com você em Brasília.
_ Mãe, olha… meio difícil, o apartamento tá em reforma.
_ Você nunca me disse.
_ Pois é, faz tempo que a gente não se fala, né? Agora não dá, mãe, mais pra frente, certamente… eu adoraria.
_ Você vai negar abrigo a sua mãe?
_ Você vai ficar desconfortável aqui. Por que não vai pro Rio com a tia Jaque?
_ Olha Jonas, eu nem sei por que ainda converso contigo. Adeus.
Depois de comer sua comida árabe, dirigiu-se ao Venâncio 2000, ali perto, mais uma vez parando no parque para economizar. O segurança consultou um caderno onde aparentemente estava registrada sua autorização e permitiu a entrada. Halunke se sentou na poltrona de Jorge e saboreou o que era ter um escritório por alguns instantes antes de se dedicar ao trabalho. Quer dizer, não haveria problema se ele visitasse esta ou aquela página antes… e o resultado é previsível. Mas afinal ele atacou a tradução. Hal havia estudado alemão sim, mas seu nível era intermediário no máximo, o que ele compensava usando bem as ferramentas da internet. Quando eram sete horas ele havia feito, bem ou mal, um terço do trabalho. Trancou o escritório e caminhou até o carro, dirigindo até o bar mais próximo, que veio a ser uma pista de kart. Já havia bebido três garrafas de cerveja quando decidiu pilotar um kart, e isso não pareceu um problema a ninguém, era como se o kart fosse uma realidade paralela onde as leis do trânsito e do bom senso não se aplicassem. Ele demorou para pegar o jeito, e se mantinha à direita para ser ultrapassado, mas depois de dominar minimamente a técnica necessária, passou a intimidar os oponentes e a arriscar todo tipo de manobra imprudente. A direção do lugar deu-lhe bandeira vermelha e o fez parar; ele saiu do carro alucinado, revoltado contra a decisão; comprou uma lata e saiu cantando pneus com o batmóvel.
O destino era a Ceilândia, onde ele conhecia um canal de bright. Depois que ele chegou à quadra, passou pela área de lazer e se aproximou da praça onde ocorria o movimento, estacionou o carro e seguiu a pé.
Havia um grupinho aparentemente fumando um embaixo de uma árvore. Usavam de modo geral roupas de surfe e correntes pesadas; um se adiantou.
_ Vai querer o que?
Hal só fez um sinal roçando o indicador na narina direita, seguido de outro com a mão espalmada.
_ Cinquenta de brizola, tá na mão.
Ele alcançou alguma coisa atrás mureta da quadra de esportes e entregou a Hal, que, ao mesmo tempo, entregava a onça.
_ Bom fazer negócios com você.
Já no carro, com a ajuda do Chandler, ele deu um tiro de cada lado, esfregando o restante nas gengivas. Guardou o flagrante e pegou a Estrutural alucinado. Talvez não fosse boa ideia, mas ainda dava para testar uma teoria naquela noite ainda. Estacionou o carro e andou um pouco até localizar o teatro, no meio da quadra. A peça obviamente já havia começado, estava mais perto de terminar na verdade, o que enfim aconteceu, e a plateia, pequena, começou a sair.
Na Trilha Certa X
Halunke estava na calçada quando quando a porta se abriu acima e começou a expelir exemplares típicos da comunidade hipster de Brasília, que ele via descerem uma escada até o nível da rua. Depois que todos aparentemente haviam saído, Hal ainda teve tempo de fazer e fumar um cigarro inteiro antes que o pessoal da produção começasse a sair. Ele prestou muita atenção, voltou a analisar a fotografia; de repente surgiu uma jovem, de jeans e camiseta, que se perecia com ela, mas com cabelo castanho. Ele se aproximou.
Acordou molhado de suor, lá pelas três. Passou café e fumou, ficou assistindo TV e não teve fome o dia todo. À noite, ligou para um amigo, conversou brevemente e desceu para pegar o carro. Dênis morava no Guará, recebeu Hal com uma long neck, estava jogando videogame. Conversaram algumas bobagens, Hal contou sobre seu caso, enquanto o bong circulava._ Dênis, você daria uma olhada nessa tradução, por favor?
O amigo havia morado na Alemanha, e já tinha ajudado Hal várias vezes, a troco de uma comissão que acabava não sendo cobrada. Havia poucas alterações por fazer e o CD pulou do drive no mesmo instante em que Dênis tirava a última bongada da noite. Hal achou uma estação tocando música erudita e voltou para a pensâo sorrindo, mas ainda cansado pela noite mal dormida.
Na Trilha Certa XI
Acordou tarde, estava chovendo. Uma enorme preguiça o tomava; e, pior, não fazia ideia de por onde começar. Recolheu forças para levantar e passar um café, um jornal tinha sido deixado na mesa da copa, ele se pôs a examiná-lo. Havia uma nota sobre a abertura da CPI e um perfil biográfico do parlamentar, indicando inclusive denúncias anteriores, mas nada que acrescentasse muita coisa. Subiu, ligou o rastreador: o veículo permanecera parado. O senador deveria voltar hoje, então a probabilidade de um encontro com uma hipotética amante seria alta à noite. Hal precisava ficar muito atento. Havia estiado, caminhou até a lan house e acabou mais vendo besteira do que trabalho; estava já disposto a desligar quando chegou uma mensagem, era do Aranha. Dizia que havia pesquisado e a maior parte dos imóveis parecia ser legítima, mas havia um flat no nome de um irmão de um assessor, que nem mora na cidade, e esse era o único um tanto suspeito. Dava todo o endereço, era no Ilhas do Lago. Maravilha, já tenho alguma coisa. Respondeu prometendo pagar uma cerveja.
Ligou para a ex-mulher, no velho telefone que fora o seu. Atendeu a Sílvia, Hal fez um pouco de atenção a ela antes de perguntar por Nádia, que por fim atendeu.
_ Diga, Hal.
_ Oi, Nádia, como vai?
_ Que foi dessa vez, bateu o carro?
_ Ei, calma! Não aconteceu nada, eu só pensei se podia passar aí, ver se eu acho as fitas.
_ Fitas?!
_ Você sabe, música.
_ Você é inacreditável, Hal. Já disse mil vezes pra levar essa tralha toda embora.
_ Quando eu tiver espaço. E o usurpador tá aí?
_ Já te pedi que não… vai, vem logo, mas nem me incomode, estou trabalhando. Vou avisar a Sílvia.
Caminhou de volta para a pensão, molhando-se um pouco, e dirigiu até o Lago Norte sem pressa. Tocou a campainha e foi recebido pela empregada, que o conduziu até a edícula como se ele não houvesse crescido na casa, ou como se temesse por seu comportamento. Teve que revirar toda sua bagunça até achar a sacola com os cassetes gravados duas décadas atrás. A maior parte era erudita, mas havia também jazz, blues, e Beatles. Ele voltou para a cozinha, onde Sílvia tirava um bolo do forno, fez um comentário elogioso sobre a comida outro dia e foi recompensado com mais um prato, o que ele tivera em mente desde sempre. Pegou o carro e dirigiu até um shopping ali perto, entrou e conferiu a programação do cinema. Havia um que dava pra arriscar, começando em meia hora. O filme de fato não era tão ruim, tomou um café ao sair e preparou um cigarro para fumar lá fora. Consultou o bloco tomou o caminho do Park Way, quando se lembrou que precisava passar na pensão. Estacionou, subiu e buscou o rastreador; desceu e tomou a W3. A primeira fita que escolhera era Stravinski e o Rito da Primavera se desenvolvia dentro do Monza enquanto a chuva desabava lá fora e antecipava a noite.
Chegou ao endereço desejado, passou em frente à casa de dois pavimentos que se via lá no fundo de um terreno enorme, arquitetura sóbria e de bom gosto. Escolheu um ponto donde podia observar a movimentação na casa do senador sem ser notado. E esperou. Repassou todas informações das notas, fumou mais do que de costume preencheu as cruzadas que roubara do jornal, e nada acontecia fora os carros chegando nas outras casas. De repente, o portão se abre, e logo se vê um modelo compacto importado sair, com filmes tão escuros que é impossível enxergar dentro. O carro sai na direção oposta à de Hal, que espera um pouco e o segue; o rastreador será inútil, o mini não pode sair de vista. Hal mantém uma certa distância até chegarem ao balão do aeroporto, onde um carro se interpõe entre os dois, o que pareceu conveniente a Hal. Essa situação se prolongou até o eixinho, quando o mini pegou a tesourinha na 13/14 e acabou entrando na 113 e parando embaixo de um bloco. Hal desceu do carro e ficou encostado a uma árvore, fumando. De repente sai da entrada do bloco um coroa usando um pullover no meio do verão, e do carro sai ninguém menos que Cláudia Albuquerque, toda produzida, linda. Hal faz fotos dos dois se beijando com seu celular, entra no carro e vai dali diretamente ao Beirute. Joga o chapéu sobre a mesa, dobra o paletó e o joga por cima do banco. Liga para Jorge.
_ Diga, Hal.
_ Jorjão, eu tentei seguir o senador e imagina quem eu ganhei?
_ O madame.
_ É claro, pulando a cerca também.
_ E o que você vai fazer?
_ Vem pro Beira.
_ Tá bom.
Enquanto esperava, Hal pagou a conta, comprou maconha com os noias da quadra e voltou. Demorou um cigarro para Jorge aparecer.
_ Você disse cara, essas coroas sempre têm seu amante. E como isso muda seu caso?
_ Não sei, será que ele não quer pagar por isso? A grana é toda dele afinal.
_ Mas você é um canalha, mesmo.
_ De modo algum, o investigador particular deve analisar o cenário e escolher a opção mais vantajosa. Como vai sua fugitiva?
_ Andando em círculos. Talvez ela estivesse só passando por Brasília quando ligou, talvez não more aqui.
_ Não desista. Não tem ido aos teatros?
_ Não, eu tenho focado lugares de elite, foi sua dica.
_ Não me leve tão a sério, Jorjão.
O outro fitou o nada, pensativo, por um instante. Beberam mais duas garrafas e Hal voltou para casa, fumando no velho beco, agora com a seda que comprou no Conjunto.
Na Trilha Certa XII
Logo após o café e uma espiada no jornal, Hal foi até a lan house, levando o cabo que lutara para desenterrar do meio da bagunça. Conectou o celular ao computador e abriu as fotos. Estavam uma porcaria, é claro, sentiu saudades de sua Nikon, apenas mais um item do equipamento que a pindaíba e as drogas haviam levado. Mas ainda era possível distinguir o rosto da socialite e identificar uma situação amorosa. Não chegava a ser um grande feito, não até que surgisse utilidade para as fotos, ao menos, mas era uma carta na manga. Pesquisou então pelo nome artístico da filha do empresário, havia pequenos artigos sobre a peça, apenas mais uma do circuito semi-profissional da capital. Mas ela não aparecia em nenhuma das fotografias. Fez uma busca de imagens, nada; tentou o nome verdadeiro. A principal imagem era a que circulou nos jornais quando de seu sumiço, ela era muito jovem, toda produzida, com brilho e maquiagem excessivos, era provavelmente de sua festa de debutante. Ela tinha um sorriso pouco sincero estampado no rosto, talvez a festa tenha sido uma imposição. Hal lançou um olhar em volta e visitou sua páginas “adultas”, usando o banheiro antes de pagar e voltar para a pensão.
Ligou o rastreador, a caminhonete havia saído, mas o deslocamento até o comércio local certamente não havia sido feito por ele. Pelo menos era possível saber que estava funcionando. De qualquer forma, conseguir alguma coisa com o aparelho seria um golpe de sorte, Hal pensava, e o mais indicado agora seria recorrer aos velhos métodos. Mas é loucura, deteve-se, o homem com um escândalo nas costas, sua segurança deve estar triplicada. Foi considerando todas as possibilidades de ação que desceu até o PF, almoçou e voltou para buscar o carro. A fita escolhida foi Kind of Blue. Quando desceu a escada para seu escritório, já tinha um plano delineado na mente. A luz estava funcionando, a água ainda estava cortada, e com uma hora de trabalho o lugar ficou bastante apresentável. Ele havia saído de casa com roupas velhas para a tarefa, e voltou à pensão para se trocar. Pôs o terno e até, coisa que não costumava, uma gravata, também preta. Desceu para a L4, indo até a N2, onde ficava a saída do estacionamento do Senado. Estacionou em local proibido, mas teve sorte e surgiu uma vaga em poucos minutos. Em uma hora, viu cinco carros de senador saírem, nenhum era o Macieira. Segundo sua esposa, ele chegava em casa entre seis e oito da noite, então aquela era a hora em que ele sairia se fosse encontrar uma amante. Talvez ele tenha descontinuado os encontros em meio à crise, teorizava. De repente surge o veículo preto com o número 53 que Hal esperava. O senador não estava no banco do passageiro e era impossível ver o traseiro. O motorista tomou o rumo oeste, caminho oposto ao da casa do casal. Hal seguiu o veículo oficial com um carro entre eles, que virou no balão adiante. O detetive tentava não ficar muito próximo nem perder o rastro da presa nos semáforos, à medida que tomavam o Eixo Monumental e entravam no Sudoeste. O motorista por fim entrou em uma quadra e encostou em um bloco de luxo; Halunke estacionou de modo a observar a cena pelo retrovisor. Uma morena espetacular, de porte elegante e com não mais que trinta e cinco, vestindo um tailleur cinza e um lenço rosado no pescoço sai pela porta de vidro e se encaminha ao carro do senador. Agora era o momento crucial: Hal teria que sair do carro e apontar o celular para a cena, mas ser percebido, mesmo pelo motorista, era muito arriscado. Depois de hesitar por frações de segundo, Hal acionou a maçaneta, saltou do carro, virou-se sobre o calcanhar e ergueu o braço, disparando a câmera quase sem olhar o visor, tudo muito rapidamente, acendendo um cigarro para disfarçar. O carro 53, que, ele pensava agora, tinha o mesmo número do célebre fusca Herbie, deixou o estacionamento lentamente, mas parecia não se importar com Hal, que terminou de fumar e telefonou para Cláudia.
_ Halunke!
_ Como vai a senhora?
_ Sem essa de senhora.
_ Certo, você. Você vai gostar da novidade que eu tenho.
_ Pegou o homem?
_ Quase. Podemos almoçar amanhã?
_ Difícil. Mais tarde é melhor.
_ Às quatro no Conjunto, como da primeira vez?
_ Tudo bem. Qualquer coisa eu ligo.
Hal entrou no carro e dirigiu até o Bar Brasília na Asa Sul, pensando na sorte de conseguir alguma coisa, pouca que fosse, sem ser incomodado, e logo na primeira tentativa. A fita entrava na seção extra, de Coltrane, e ele estacionou no instante em que acabava Blue Train, ele adorava quando isso acontecia. Pensou em ligar para Jorje, mas desistiu, resolvendo beber em silêncio. Entretanto, voltou a pensar no amigo quando a segunda cerveja disparou a fissura. O amigo nem fumava durante a semana, e, talvez por isso mesmo, sempre tinha um em casa. Ligou, combinou de ir até o apartamento do outro, pagou a conta e dirigiu poucos minutos até chegar, subir e ser recebido com um baseado pronto. Conversaram, Hal mostrou a foto que conseguira e que, ele esperava, valia quatro barões. Jorge parabenizou o colega e confessou estar perdido em seu próprio caso, Hal o tranquilizando: às vezes é assim mesmo. Voltava feliz da vida para casa, mas quando estacionou perto da pensão notou um par de vultos no beco. Sabia na mesma hora do que se tratava.
Na Trilha Cetra XIII
Na Trilha Certa XIV
Na Trilha Certa XV
Hal parou bloqueando a coleta de lixo e achou o bloco de Âmbar. A entrada tinha um intercomunicador, ele apertou o botão; faltavam dois minutos para meio-dia. Ela acionou a abertura da porta e ele subiu. Era uma kitinete na sobreloja de um bloco comercial, onde moravam basicamente estudantes, e ele cruzou com uma morena linda, estilo sério, que o olhou com uma expressão de desprezo. Bateu na porta com os nós dos dedos e a moça abriu. Ela usava jeans e uma camiseta azul, as tranças haviam sido desfeitas e ela estava ainda mais bonita.
_ Tudo bem?
_ Tudo, claro.
_ O que é isso no seu olho?
_ Não foi nada… a porta do armário, eu… dei uma pancada.
_ Vem cá, vamos pôr gelo.
_ Poxa, Âmbar, você é um anjo.
_ Para com isso. A tradução, deu muito trabalho?
_ Não, depois que você se acostuma com o jargão oficial, é mais fácil.
Ele entregou o CD e ela o pôs no computador, que ficava em uma mesa repleta de todo tipo de objeto. Abriu os arquivos, fingiu inspecionar o trabalho e sorriu satisfeita.
_ Tem um resto de vinho aí.
_ Você não estava com pressa?
_ Cinco minutos, eu tenho.
Serviu duas taças e sentaram-se no sofá encardido, lado a lado. Ele se escorava no encosto de cabeça, torcendo a coluna para vê-la. Ela abriu a bolsa, retirou a carteira e entregou duas garoupas a Hal.
_ Você está com sorte, eu tinha sacado dinheiro.
_ É melhor minha sorte melhorar mesmo – e apontou para o olho inchado.
_ Lembrei de você outro dia, nós vamos tocar uma peça do Mussorgsky.
_ Na sexta?
_ Não, sexta nós vamos tocar Cage e Varèse.
_ Eu vou estar lá – disse, erguendo as sobrancelhas em aprovação – não perderia por nada.
_ Então você é amigo do pai da Simone. Você é de Anápolis, também?
_ Eu morei lá um período.
_ Você sabe então que ela fugiu de casa?
_ Não… de verdade? – parecendo surpreso.
_ Você não vai entregar o paradeiro dela, vai?
_ Não teria por que fazer isso.
_ Eu confio em você. Escuta, na sexta à noite eu vou reunir algumas pessoas aqui, para uma espécie de despedida. Você está convidado.
_ Puxa, fico muito feliz, virei sim – e, olhando em volta, perguntava-se quantas pessoas caberiam ali.
_ Agora acho que tenho que ir.
Ele terminou de tomar o vinho, pediu licença para fazer um cigarro, e os dois desceram a escada, ele inventando uma viagem a Viena que nunca fizera, e enfim se despediram. Ele foi até o carro, pegou o eixão e em pouco tempo estava na pensão. Encontrou a mãe na copa, ajudando a outra velha a preparar uma salada.
_ Filho, o que é isso?!
_ Calma, mãe, não é nada.
_ Como nada, você levou um murro.
_ Não, mãe, foi só um acidente.
Ela o olhou, inquisidora, e pegou-o por uma das orelhas.
_ Você tá metido em encrenca, eu sei.
_ Fica tranquila, vai. Nós não íamos almoçar fora?
_ Estou só ajudando a Gervásia, mas não mude de assunto.
_ Eu explico depois, vamos lá?
Halunke escolheu um restaurante mais caro, mas não demais, certo de que sua mãe pagaria, e calhou de ser um de comida chinesa. Sentaram-se e pediram cerveja e água, enquanto olhavam o cardápio.
_ Quem fez isso com você?
_ Um colega, mãe. Você quer a verdade? Eu sacaneei um colega, e ele veio atrás de mim. Mas já passou, bola pra frente. Mas afinal, você veio para ficar quanto tempo?
_ Três meses, enquanto sua irmã estiver no exterior.
_ Vai ficar na pensão, então.
_ Filho, por que você não abre o jogo? Estava na cara que você estava mentindo.
_ Tá bom, mãe, eu não sou professor universitário, eu trabalho como investigador particular, e as coisas não vão muito bem. Mas eu estou em um caso, dois na verdade, está tudo melhorando.
_ Você pode confiar na sua mãe, Jonas, pode dizer a verdade.
_ A verdade, mãe? A verdade é que eu sou o único da família nesta merda.
_ A gente pode te ajudar.
_ Eu não quero mãe. Não quero você me ajudando, não quer o pai me ajudando.
_ Não me fale nele.
_ Não quero Nádia me ajudando, não quero ninguém me ajudando. Eu já estou me recuperando, e em pouco tempo, se tudo der certo, eu devo estar no Caribe tranquilo.
_ E sozinho.
_ Sozinho, mãe, é a minha natureza.
_ E essa moça de quem você comentou?
_ Não é nada sério.
_ Alguma coisa é séria pra você?
_ Olha mãe, eu só não te mando…
Ela estendeu a mão e a pousou sobre a do filho, mantendo silêncio por uns instantes. Fizeram o pedido e dona Ivone passou a narrar mil histórias banais de Holambra, às quais ele fingiu interesse. A comida veio, estava muito boa, e ela afinal pagou a conta. Hal a deixou na pensão e dirigiu até o Conjunto, poderia ler um pouco antes do encontro marcado.
Na Trilha Certa XVI
Ele aproveitou para comprar tabaco, e reclamou pois não havia onde sentar para ler e tomar um café, fumando, por isso fumou um cigarro em pé e subiu para a Praça, onde conseguiu uma cerveja e atacou o Bukowski que estava começando. Voltou a descer minutos antes da hora marcada, fumou e subiu para encontrar Cláudia sentada em uma mesa do canto. Ela estava ligeiramente menos perua do que de costume, em um vestido simples e sem muita maquiagem. Seu nariz era bem desenhado e as sobrancelhas altas davam um ar altivo à cinquentona.
_ Cláudia Albuquerque, que prazer revê-la.
_ Igualmente, seu canalha.
_ Como?!
_ É o que quer dizer seu nome, não? Eu pesquisei sobre você, e tudo que descobri foi isso. Que espécie de piada é essa?
_ Calma, Cláudia. É só um elemento de estilo. Eu leio muita história de detetive, deve ser isso. Você foi a primeira a me ganhar, parabéns.
_ Espero não ter feito a escolha errada, Hal, ou seja lá como você se chama.
_ Vamos ficar com Halunke, Hal, como queira.
_ E o que você tem pra mim?
_ Ah! – sacando o telefone.
_ Sua câmera é seu celular? Não acredito.
_ Celulares são muito mais discretos, e este tem setenta megapixel.
_ Não fala bobagem.
_ Sei lá, tem muitos, pode ficar tranquila. Aqui, é esta a foto.
Cláudia tomou o aparelho e levou alguns instantes antes de soltar uma gargalhada. Hal, angustiado, não conseguia extrair dela uma explicação, até que o riso deu uma trégua.
_ É a sobrinha dele!
_ E ele está tendo um caso com ela?
_ Um certo tipo de caso, ela é a líder do comitê de crise que ele montou.
_ Então isso aqui não vale nada?
_ Não para mim.
Halunke bebeu o resto da cerveja de um gole só, esfregou as mãos, nervoso. Precisava de uma estratégia matadora para resolver o caso, pôr algum no bolso e aplacar o agiota. Recobrou a calma e pôs-se a interrogar a cliente.
_ Qual tem sido a rotina do seu marido?
_ Bom, ele quase não fica em casa, se divide entre o Senado e o escritório.
_ Você não me falou sobre um escritório.
_ Puxa, é mesmo. Perdão, foi um lapso.
_ Eu preciso de toda a informação.
_ Toma este cartão aqui, tem o endereço. É no setor de autarquias.
_ Ele usa os carros particulares?
_ Muito pouco. Mas eu tenho uma boa notícia: hoje ele saiu na caminhonete, porque o motorista do Senado está de licença.
_ Isso é ótimo. Me diz, a que horas ele tem voltado?
_ Lá pelas nove.
_ Certo. Eu vou acompanhar o rastreador, você dê um jeito de forçá-lo a usar a caminhonete.
Despediram-se com dois beijinhos e um meio abraço que os unia pelo pescoço, Halunke podia sentir o perfume da socialite, que era forte demais, e a maciez apreciável da pele daquela mulher madura. Ela ainda cravou os olhos verdes nos dele, fez um comentário sobre o traço que ambos compartilhavam e virou-se para ir. Ele aproveitou para perguntar sem olhá-la de frente:
_ Será que eu não consigo mais um adiantamento?
_ Mas… Hal, foi combinado que…
_ Bom, eu trouxe alguma foto, não? Quer dizer que estamos progredindo. Eu vou ganhar o senador, é questão de tempo. Se eu não ganhar, fica claro que era só uma suspeita sua, e eu recebo mesmo assim.
_ Como assim?!
_ É só a praxe do ramo.
Ela levou a mão ao queixo, pensou, suspirou e alcançou a carteira francesa donde sacou cinco garoupas.
_ Tá bom assim?
_ Ótimo. Mais uma coisa.
_ Sim?
_ Vocês têm um imóvel no Ilhas do Lago?
_ Não que eu saiba. Ele tem inúmeros, sabe. Mas ele costuma ir lá, na casa do Alfredo, um assessor, por quê?
_ Nada, talvez eu tenha me precipitado. Muito obrigado, Cláudia. Não vou te decepcionar.
Desceu e descobriu que estava chovendo forte, felizmente não faltavam ambulantes vendendo guarda-chuvas e ele enfim comprou o seu. Passando pela Rodoviária, comprou o jornal, que trazia o senador Macieira na capa. Era uma nova denúncia que surgia, de que o oligarca usava trabalho escravo em suas fazendas. Boa gente.