Contos
Direções
Eu passava naquele cruzamento todos os dias, voltando da faculdade. Era a interseção de duas vias arteriais, com canteiro no meio, e eu tinha que seguir para chegar em casa. Naquele dia, eu nem estava prestando atenção, o sinal estava aberto e eu passei rápido. Mas tive uma impressão maluca, não podia ser: a placa que costumava dizer Araucária em frente e Cidade Nova à direita dizia respectivamente Sucesso e Felicidade. Seria até interessante ter bairros com esses nomes, mas que diabo!, virei à esquerda e voltei a passar no mesmo cruzamento. Araucária e Cidade Nova. Eu estava ficando louco.
Tinha sido numa sexta-feira, e mal pensei naquilo no fim de semana, fiz um churrasco inclusive, com uns poucos amigos. Na segunda-feira voltaria a passar por lá; obviamente não esperava ver nada diferente, tudo não passara de um truque que minha mente pregou em mim. Mas não deixei de prestar atenção: não é que a placa dizia Sucesso e Felicidade? Olhei fixamente, quase bato o carro quando o semáforo fechou. Fiz sinal para o motorista à minha esquerda e perguntei: o que está escrito naquela placa? Ele pareceu intrigado e respondeu Araucária em frente, Cidade Nova à direita, ora. Olhei de novo: eu estava louco.
O sinal abriu e eu levei um tempo para me dar conta, começaram a buzinar. Não sabia o que pensar. Consultar um psiquiatra? Um oculista? Que ideia idiota. Bem, eu supostamente estava indo rumo ao Sucesso. Aos poucos, percebi que o caminho estava diferente do costumeiro: eu devia estar tão distraído que deixei de virar quando devia. Mas aquilo não se parecia com nenhuma área da cidade que eu conhecia, havia prédios novos e modernos, lojas de produtos caros. Olhei a plaquinha: Avenida da Abastança. Eu tinha que experimentar o outro caminho, e dei a volta no quarteirão, que era por acaso um campus universitário: Rua do Reconhecimento. Louco.
Refiz o trajeto e virei na placa que dizia Felicidade, agora à minha esquerda; em frente, a placa seguia indicando Centro. Mais uma vez, era uma parte totalmente nova da cidade: havia bares com pessoas conversando, casas simples mas muito simpáticas, até que cheguei a um parque com crianças brincando e famílias fazendo pique-nique. A plaquinha dizia Avenida Realização Pessoal. Virei à esquerda, contornando o parque, e à minha direita havia várias lojas de noivas e sex-shops. Rua do Afeto. Louco!
Pois bem, então eu poderia escolher entre Sucesso e Felicidade, mas não conseguia voltar para casa. Parei em um dos bares, pedi uma cerveja e tentei ligar para meu pai, não havia sinal. Pedi a conta e descobri que não aceitavam meu dinheiro. Era um sonho, só podia ser. Mas nos sonhos quando se percebe que é sonho a gente acorda. Uma moça de uma mesa ao lado compadeceu-se de minha aflição e assumiu a dívida. Tentei explicar minha situação, ela achou estranho; eu era tão alienígena para ela quanto tudo aquilo para mim. Disse que morava em tal rua, ela não conhecia, virando ali na avenida tal, tentei, nada. Louco, louco, louco.
Ela disse que estava indo para a faculdade, só podia ser aquela pela qual passara mais cedo. Segui seu carro e estacionamos no campus. Ela disse que poderia me apresentar a algum professor que talvez pudesse ajudar. De psiquiatria? De psicologia? De física quântica? Acabou sendo uma de literatura. Ela estava com pressa a caminho de uma aula, mas achou a história interessante, disse que daria um ótimo conto: uma opção entre sucesso e felicidade, mas que na verdade é uma prisão, e coçava o queixo. Mas e como termina? Rapaz, ela pôs a mão no meu ombro, você vai ter que escrever seu próprio final. A moça que me ajudava sorriu, agradeceu à professora e me puxou pelo braço: usa esse micro aí.
Comecei a narrar tudo como tinha acontecido, a meu modo, nunca tive pretensão de ser escritor. Depois que a professora me aconselhava a escrever meu final e eu sentava ao computador, travei. Eu queria voltar para casa, certamente, já deviam estar preocupados, mas será que para isso eu tinha que abrir mão do sucesso e da felicidade? Consultei um mapa, havia uma região fronteiriça entre os dois bairros. Escrevi que minha família se mudara para lá, que eu tinha um emprego que pagava em moeda do mundo paralelo, e bem, que estudava ali mesmo onde estava escrevendo e namorava uma moça fantástica. Imprimi o conto, para uma eventual necessidade. Minha amiga disse que estava atrasada e me desejou boa sorte.
Dirigi até o endereço que escolhera, era uma casa de classe média, com um jardim bem cuidado e um enfeite dizendo aqui mora uma família feliz. Esquina da Prosperidade com a Paz. Toquei a campainha e esperei. Atendeu alguém que eu não conhecia. Pensei em mostrar o conto como se fosse uma espécie de ordem judicial, mas sabia que não fazia sentido. Desculpei-me e sacudi a cabeça, aturdido. Voltei ao fatídico cruzamento, encostei e liguei o pisca-alerta, desci do carro. Achei uma caneta e, apoiado no capô, escrevi o fracasso do truque para ficar no mundo paralelo, e que voltando ao cruzamento a placa havia voltado ao normal e eu achava o caminho de casa. Dessa vez funcionou, as palavras Sucesso e Felicidade se metamorfosearam em Araucária e Cidade Nova, eu entrei no carro e segui meu caminho. Cheguei em casa no horário usual e ninguém disse nada, tampouco eu. Não sei dizer se sou bem sucedido ou feliz, mas também não acho que sou louco. Sei lá, segue o barco.
Cyber-Intifada
Nossa luta por décadas se serviu das armas mais arcaicas: pedras, bombas. Era a hora de nos atualizarmos, de lutar o combate no terreno do século XXI, o terreno da virtualidade, da informática. Obviamente precisávamos contar com ajuda externa, mas havia uma rede de ativismo cibernético que tinha a nossa como uma das principais causas por justiça global. Afinal, nosso território fora usurpado, e mesmo o pouco que nos restou está sob ocupação há quarenta e cinco anos. Ainda assim, era uma luta de Davi contra Golias, se me permitem usar a mitologia deles. Éramos oito hackers: eu em Beirute, um em Tel-Aviv, três nos Estados Unidos, dois na Alemanha e um na Finlândia, contra os sistemas do maior banco israelense, de uma companhia aérea e da bolsa de valores de Tel-Aviv.
Era preciso evitar rastros, então íamos nos comunicar por telefones públicos e atuar de forma mais ou menos independente. Eu escolhi um café, desses com sinal sem fio, onde alguém com um computador não despertaria suspeita alguma. Meu número tinha sido informado ao líder da operação, que estava em Boston. Eu já havia estudado o sistema da bolsa de valores o máximo que era possível sem ser detectado, mas havia muito por descobrir no caminho. Pedi um capuccino e olhei no relógio: em dez minutos Boston ligaria com instruções.
Corri para atender quando o telefone, que havia sobrevivido às imposições da modernidade, soou sua campainha mecânica. Beirute, você precisa quebrar o backbone dedicado, acessar o inventário de operadores e gerar uma lista com os IPs fixos, que vai ser armazenada no servidor da Finlândia. Depois que ele elaborar o script, você vai ser acionado mais uma vez para rodar o Trojan e monitorar a operação. Ligue se alguma coisa sair do programado. Copiado, Boston. Falávamos em inglês.
Era exatamente o que eu imaginava: a ideia era invadir o sistema, ter acesso a todos os operadores, milhares deles, bancos, corretoras, particulares, e invadi-los com um Cavalo de Tróia que acessaria de forma autônoma o sistema da Bolsa, causando uma sobrecarga que o faria colapsar. Parece simples. Fechei a janela de rede social, pensando bem nem foi uma boa ideia abrir, abri o Prompt do DOS: nada de interface visual para essas peraltices. Foi preciso localizar o backbone dedicado, que mudava de endereço por medidas de segurança; como eu conseguira copiar a estrutura de rede previamente, bastou rodar um mecanismo de busca, o que demorou um pouco. Pedi um espresso e acendi uma cigarrilha, acessei a página da Bolsa na wikipedia, por mera distração, já havia extraído as principais informações. Havia uma história de um dia, nos tempos de inflação, em que a procura por ouro foi tão grande que eles tiveram que fechar as portas. Bacana.
O programa encontrou o backbone, eu tinha poucos minutos para quebrar a senha antes que o endereço fosse alterado. Pelo que tinha levantado, a melhor tática seria atacar com o Intruder 3.0 com busca hexadecimal de ponto flutuante, o que havia de mais recente em invasão “macia” como chamamos: não saía quebrando tudo, sutil e elegante. A ciência da criptografia é um jogo de gato e rato às avessas: nós somos o rato que persegue o gato gordo com perspicácia e astúcia. Meu tempo estava se esgotando, eu estava nervoso. De repente, funcionou: apareceu para mim uma lista que representava todos os subsistemas da Bolsa de Tel-Aviv. Arrisquei o que seria o comando mais óbvio para obter o inventário de operadores, não deu certo. Tive que percorrer a lista no olho, por sorte estava quase no topo, disparei: ótimo. Poucos segundos foram suficientes, e em frações eu já havia subido os dados no servidor de Helsinque.
Corri até o telefone, estava ocupado, e só havia um. Quem ainda usa telefone fixo! Além de nós, claro. Não podia perder tempo, então mandei uma mensagem direta para Helsinque. Agora eu só tinha que esperar: o programa que invadiria os operadores precisava ser adaptado aos dados obtidos, e Helsinque era o especialista nessa área. Pedi outro café, mas antes de terminar o telefone tocou, fui atender. Beirute, a ordem era sem mensagens, você põe a todos em risco! Sim, Boston, eu… o telefone… Escuta: consiga outra conexão, está entendendo? Outra conexão. Outra coisa, você visitou sua rede social daí, o que você tem na cabeça? Boston, foi apenas… tudo bem, eu não deveria, não se repetirá. Estou partindo agora, preciso de quinze minutos. Desliguei sem me despedir, paguei a conta no balcão, e ia saindo quando me toquei que Helsinque, ou mesmo Boston, não teria meu novo número. Pesquisei o telefone de outro café, liguei e obtive o número do telefone público, liguei para Boston e passei a informação. O trânsito já estava melhor àquela hora.
Cheguei ao outro café amaldiçoando a mim mesmo, e me instalei perto do telefone: era moderno, sem o charme do outro. Pedi um café duplo e uma senha para me conectar. Eu não precisava na verdade esperar o contato de Helsinque, batava consultar a base e ver se o programa estava lá: estava. Mesmo assim aguardei. Acendi outra cigarrilha, o telefone tocou: era a ordem de ir adiante, com sotaque nórdico. Eu precisava achar o backbone outra vez, não estava conseguindo, fiquei preocupado: será que minha invasão tinha sido detectada? Alguns sistemas de defesa são capazes de modificar a estrutura de rede quando atacados. Experimentei outro programa, que funcionou, para meu alívio.
Agora vinha minha tarefa mais difícil: mais do que extrair dados, eu precisava obter privilégio de administrador para rodar um programa. Era mais uma tarefa para o Intruder 3.0, mas antes eu tinha que percorrer a lista em busca do comando adequado, e mais uma vez tive dificuldade: o tempo corria contra mim. Aqui está, só pode ser este, rodei o programa, que levou um tempo até quebrar a senha. Faltavam poucos segundos para cair minha conexão quando introduzi o Cavalo de Troia no ultra-seguro sistema da Bolsa de Valores. Eu me achava o máximo, e um grito que me escapou chamou a atenção dos usuários do café, absortos em qualquer bobagem em seus próprios micros. Mandei executar: outra senha. Caramba. Eu teria que repetir a invasão e quebrar mais aquela barreira. O telefone tocou.
Expliquei a Boston a situação, estava muito próximo, mas estava ficando cada vez mais arriscado. Sentei-me de volta, pedi água. Pacientemente repeti os passos necessários, executei o Intruder e esperei: sucesso! Cortei a conexão, agora podia monitorar desde fora. Liguei para Boston: Feito e feito. Agora você espera a confirmação da queda e foge no primeiro voo para qualquer capital europeia. Copiado. Voltei ao computador e abri um site israelense de notícias financeiras; monitorava as estatísticas do sistema da Bolsa: os acessos cresciam em velocidade exponencial, um sorriso triunfante não deixava meu rosto. Estava exausto e saí um pouco para ver o sol, fazia calor e as pessoas prosseguiam com sua vida. Pedi mais um capuccino e acendi outra cigarrilha. Antes de terminar de fumar, o site anunciou o colapso do sistema da Bolsa. Ergui os braços mas contive desta vez o grito. Paguei a conta e dirigi-me ao carro.
Cheguei ao aeroporto, comi alguma coisa e fui até o balcão da empresa aérea. Estava nervoso, mas era impossível que fossem rápidos o bastante para me pegar, mesmo eu tendo… enfim, chegou minha vez. Vocês têm voo para Madri ainda hoje? Na verdade, esse voo é operado pela El Al e eles têm algum problema hoje… Minha espinha gelou: não tinha pensado nisso! Londres? Paris? Todos? Tentei disfarçar meu aborrecimento, e agradeci educadamente à atendente. Eu precisava ir para algum lugar, voltei pro carro e rumei para a rodoviária.
Olhei no retrovisor e tive a impressão de que um certo carro já estivera atrás de mim no caminho para o aeroporto. Fiz uma conversão à direita, só para experimentar, ele me seguiu. Merda. Merda. Merda! Eram eles: a Mossad não brinca em serviço. Estou perdido. Meu pânico não me permitia pensar direito, encostei em um posto de gasolina e saí andando por um terreno baldio. Minha ideia, ainda que meio difusa, era fingir um ataque e pedir socorro em alguma casa, havia um conjunto habitacional dali a alguns metros. Olhei para trás, eles me seguiam de perto. Não pensei duas vezes, alcancei algumas pedras no chão e comecei a arremessar na direção deles. O destino dá umas voltas irônicas por demais às vezes.
A Tarde e a Página
Guerra! O Brasil nunca passou por uma guerra! Tudo ia ser diferente se soubéssemos o peso da dificuldade e da escassez, haveria coesão social. Era um tipo executivo que claramente, ao longo de toda sua vida, gritou pela mãe ou pela esposa quando se descobriu sem toalha no banheiro. Como não era intenção minha entrar em debates, a saída que se me ocorreu foi perfeita, e minha fala foi acompanhada de uma quase performance até o balcão do caixa. Uma vez eu fui ao médico, sabe, com uma coceira que não passava. Ele olhou, olhou e de repente me queimou com ferro quente. Eu gritei, e quase cubro de porrada o sujeito, que se apressou em explicar: queimadura é minha especialidade. Paguei pelo lanche, comprei cigarros e saí da padaria da esquina atravessando até a outra calçada, onde duas casas adiante havia um casarão, e este era de fato meu destino, ou o primeiro deles, num desses giros pelo centro que eu sempre gostei de fazer, quando não tinha outro compromisso, desses em que se resolve duas coisas ou mais numa tarde, o que é quase impossível na metrópole, eu digo, se o leitor me permite a digressão, e perdoa o clichê de pedir perdão por digredir, dizia que no casarão, azul, cheio de ornamentos ondulados discutíveis talvez mesmo em seus dias, funcionava um sebo. Podia-se ouvir música lá dentro, e bastava se aproximar da soleira para perceber as estantes, e até mesmo o odor nauseabundo de incenso que não só sempre me recebia como impregnava-se nos livros. Eu não tinha muito motivo para frequentar aquele sebo, de tantos que havia, pensava fumando do lado de fora; talvez fosse pelo lanche da minha padaria de eleição, e olha que as padarias da capital dariam um tratado, e eu as conheço tão bem quanto eu possa; os preços não eram ruins, considerando que o custo nostalgia andava inflacionando o mercado; mas era a organização criteriosa e a disposição visual clara que facilitavam meu passatempo, bem, um dos meus passatempos prediletos, que é correr os olhos pelas lombadas até que um nome ou um título chame atenção. Naquele dia eu fui escolhido por um Hamlet, em estado deplorável, mas numa edição fartamente anotada que não é fácil de achar; já havia lido e relido e traduzido a peça quando mais jovem, mas a meia-idade tem disso, reler o que foi prazeroso, procurar a primeira namoradinha de novo, o custo nostalgia, sabe. Abri, folheei, cheirei, sim, para minha sorte devia ter chegado há pouco e não fedia a incenso, e notei rápido que havia notas, digo, não notas, anotações de um leitor anterior, que no caso parecia ser uma leitora, pois a letra era arredondada e numa cor que fora roxo aparentemente antes de esmaecer. Taí outra coisa bacana no vício de livro usado, às vezes era possível traçar verdadeiros perfis psicológicos dos leitores só pelos rabiscos, e a imaginação entra para preencher as lacunas; eu faria isso certamente, pensava, enquanto trocava banalidades com a coroa riponga e afagava o gato, que aliás era outra péssima companhia para livros e discos; e pensa o leitor que viria antes à mente uma bibliotecária sexagenária com fundo-de-garrafa ou uma femme fatale em trajes sugestivos saboreando o príncipe da Dinamarca? Ao pagar, comentei mais uma vez do incenso, timidamente. Pois é, sempre que eu ponho incenso alguém reclama… Sabe, uma vez eu fui ao médico, fiz assim com o polegar, disse, doutor dói quando eu faço isso, e ele, então não faça. Minha escapada voltou a ser uma performance. Voltei à padaria, só para um café, mas acabei pedindo um doce, e fiquei brincando com o livro de papel alaranjado de tão velho, procurando de fato pelas anotações pardo-roxas da leitora; foi fácil perceber um padrão, as anotações nos primeiros atos basicamente ajudavam a entender a peça, nos atos finais já esboçavam comentários pertinentes. Uma pesquisa sobre a presença de notas anteriores nos livros já mereceu um prêmio Ig-Nobel, sabe, aquele da ciência bizarra; pois eu adoro essa ciência bizarra, e me considero bem versado, ao menos; veja aqui, por exemplo, há uma nota na primeira cena que pressupõe a leitura do terceiro ato, e isso deve significar que ela leu a peça mais de uma vez, então eu pedi mais um café duplo e me pus a tentar determinar quais notas eram da primeira ou da segunda leituras, perceber variações na cor da tinta, e tudo mais, trabalho de FBI, chapa. Bom, chapa, né, quem diz chapa esses dias, mas enfim, saboreava o livro, e a leitora também o saboreava, em trajes sugestivos. Mas eu precisava consertar o relógio; era em uma daquelas galerias que recendem aos 60-70 e só não podem ser chamadas de decadentes porque estão cristalizadas há tanto tempo que isso pode se considerar uma nova estabilidade; perceberam que eu já não peço perdão pelas digressões? Todo escritor que faz isso faz por charme, pede perdão e depois sai digredindo como um desvairado, pensava eu, antecipando as linhas de alguma coisa que escreveria quando chegasse, enquanto percorria as ruas e via todas as pessoas apressadas, notava os modos dos mais jovens, sorria ao ver namorados, até chegar à galeria. Após esperar um cliente ser atendido, mostrei ao senhor de boina o relógio que saiu da mochila e não do pulso; a pulseira, aqui, viu, fica soltando, já pus até durepoxi e soltou. Mas que serviço porco isso aqui. Sabe, uma vez eu fui ao médico… Como? Nada, esquece. Percebi que estava performático demais e que não é fácil inventar piadas assim de bate pronto. Ele disse que ia tentar consertar e sugeriu que eu era sovina de não comprar um novo, eu nada de ter uma piada à mão para acertar na cara do velho petulante, nem precisava ser de médico. Eu disse que voltava e olhei em volta, havia uma barbearia, e pareceu boa ideia cortar o cabelo, mas não sem antes tomar um… café ou chope? e voltar para buscar o relógio. Chope, então; o vão central da galeria parecia todo feito de aço escovado, dando a impressão de fato de algo como um filme do expressionismo alemão em technicolor; o chope era aguado, mas isso não me deteve, e voltei às páginas marcadas com aquela letra tão graciosa, as quais já sabia quase de cor, e cheguei à minha favorita, que dizia apenas “Ofélia não está louca”, que mulher é essa! e em trajes sugestivos, ainda. Pus-me a ler aquela cena, então, já que o pobre Shakespeare tinha menos atenção que sua leitora até aqui; já no segundo chope me dei conta: havia uma página faltando.
Paguei e saí para fumar. Um carroceiro passava, um homem-sanduíche distribuía panfletos e uma ou outra pessoa parava para ver as mercadorias dos ambulantes; era uma via de pedestres. Com livro numa mão e cigarro noutra, atrapalhava-me para cuidadosamente verificar a sequência das páginas, a ver se outra faltava; precisei de dois cigarros para ver que não, aquela era a única. Bem no meio da performance da Ofélia louca, ou não-louca, segundo a crítica-leitora, bem na cena em que ela faz o comentário; apesar do mau estado do livro, a encadernação parecia sólida; voltei à lacuna e vi então o que não sei como não percebera, no canto inferior um pequeno fragmento da página se agarrava à nave-mãe indicando que a página fora de fato arrancada. Voltei ao velhote, que disse que não havia como consertar, eu disse que jogasse logo fora e caminhei até a estação sem tirar aquela leitora da cabeça; eu sempre buscava os olhos das mulheres bonitas no metrô, era até mais um dos passatempos prediletos, e aquela mania de escritor de ficar interpretando se misturava ao flerte, aquela ali se interessou mas tem que esconder, tem namorado, aquela outra te mandou ao inferno, aquela parece chamar para um motel; não fosse eu tímido; de qualquer sorte, aquilo me distraiu um pouco. Sentei-me e folheava meu livro, uma passagem secreta para dois mundos, a Elsinore da peça e outro muito mais brumoso, o mundo da leitora; quem seria ela, antes de mais nada? Meus olhos quando subiam das páginas buscavam os de uma morena de cabelos curtos, que percebia e disfarçava; naturalmente, a moça foi se tornando a leitora misteriosa, mas olhando novamente a caligrafia, não parecia pertencer a alguém que usaria piercing no nariz; pertenceria a quem, então? Bem, dificilmente menos de 25 pela maturidade, dificilmente mais de 35 pelo vocabulário (havia até um emoticom); provavelmente é metódica, pelo capricho na escrita, mas não metódica a ponto de considerar escrever no livro inaceitável; mais para hipster do que para hippie, certamente, muito embora, pensando na livreira… não sei se hippie lê Shakespeare, lê? e hipster, lê?; quem sabe ela fosse gótica, repetisse pobre Yorick segurando uma caveira no cemitério? quem sabe ela fosse certinha como a Ofélia, com uma sexualidade reprimida? quem sabe ela se identificasse mesmo com Hamlet e estivesse sempre a divagar sobre a natureza humana? Todas essas cogitações foram o bastante para que eu passasse batido na minha estação, mas a próxima não ficava tão distante do meu destino, uma copiadora em que precisava buscar um trabalho, de forma que caminhei mais um pouco, o que é sempre um prazer, prazer que maior seria se menos gente vivesse destituída pela rua, mas ainda um prazer. Eu desenvolvia minha investigação mental enquanto esperava ser atendido, mas foi bem rápido pagar, meter na mochila o espiral das provas de um volume de contos e sair; dei de cara com outra barbearia e percebi que me esquecera lá na galeria da resolução de cortar o cabelo, entrei. Afora tentar não ouvir as conversas dos outros, ou, ouvindo, não reagir a suas opiniões seja com piadas ou diatribes, foi possível maquinar mais um tanto de hipóteses, tanto esperando quanto tendo minhas têmporas tosquiadas e minha nuca raspada. Pois digamos que seja hipster ou gótica, balzaqueana, por que rasgaria a bendita da página? vamos imaginar primeiro o mais prosaico, que precisou anotar um telefone, ali, apressada, não tinha outro papel, relutantemente subtraiu uma folha alaranjada, talvez, ou quem sabe o irmão maconheiro precisava de uma seda, ou ela mesma, e se for mesmo hippie? mas calma, um maconheiro ia escolher uma página com menos tinta, não pode ser; não, não pode ser casual, ela faz um comentário daqueles sobre a Ofélia e depois arranca parte da mesma cena para anotar telefones, assim por acaso? não, deve ser que alguma passagem a interessou tanto que ela quis compartilhar com o namorado, namorada possivelmente, ficante, crush ou o que fosse. Foi meio atabalhoado pegar o livro com aquela capa de barbeiro, e o barbeiro mesmo era mal-humorado, ou tinha pressa de aumentar a féria do dia e não gostava de interrupções, mas lá fui eu tentar determinar qual era o trecho subtraído, conjurando a memória do tempo em que eu me debrucei sobre o texto de maneira quase que maníaca. Minha primeira suspeita se confirmou, e a passagem com a canção obscena estava na página faltante; agora veja só, ela aparentemente de fato tinha uma relação com Ofélia, e não apenas, mas com a sexualidade de Ofélia. Ela é feminista. Barbeiro e clientes pensaram que sou louco, tendo lá sua boa dose de razão, mas eu não me importei, estava construindo uma hipótese sólida aqui e só quem lê história de detetive entende o prazer da dedução. Minha próxima parada era o cemitério, outra hipótese devia ser testada, e até lá me encaminhei rapidamente, sentindo-me mais do que o Sherlock Holmes; se eu tivesse um ajudante eu diria certamente, elementar, meu caro Watson, muito embora eu mesmo nunca tenha encontrado essa frase num conto do Conan Doyle, pois bastou chegar e lançar um olhar em volta e determinar que não, ela não era gótica, pois a cena do cemitério tinha pouquíssimas anotações, e nenhuma delas cheirava a morbidez. Isso não a fazia automaticamente uma hipster, podia ser alguém que não caiba em rótulos, aliás ela precisa ser, como eu pensaria que ela se filiaria a uma identidade pré-fabricada? Mas ela era feminista, e isso significa que eu estava errado no metrô, e ela podia ter brinco no nariz e poderia até ser aquela mesma morena de cabelo curto; imagina só, quantos milhões nesta cidade, como seria curioso que eu topasse essa mulher. Deus, mas eu preciso achar essa mulher agora! E se acabar sendo a bibliotecária sexagenária com fundo-de-garrafa? Que besteira, se for você conversa a respeito da peça, seu sexista safado; e isso é, se encontrar, ora, como se encontra o antigo proprietário de um livro? se fosse automóvel ainda seria possível, mas livro? besteira. Tira tudo isso da cabeça, pensava eu pagando ao barbeiro, mas obviamente não foi possível; o trajeto até a estação, a certa desta vez, passava por um viaduto, e a vida se desenrolava para lá do meu solipsismo na rotina agitada das pessoas que, no mais das vezes nunca ficam obcecadas por um livro com anotações e páginas faltando; mas eu fico, e o que instigava agora era pensar se ela, seja em trajes sugestivos ou fundo-de-garrafa, ou ambos, que me importa, tinha um interesse acadêmico por literatura, afinal é raro alguém sequer ler Hamlet, não? e no original, ainda? ou se talvez dedicando-se ao feminismo interessou-se especificamente pela personagem? Será que uma estudante de Letras destruiria um livro assim? a menos que tenha mesmo precisado mesmo anotar um telefone? Em frente ao metrô olhei o relógio, era já fim de tarde, e as plataformas estariam feito formigueiro, mas em vez de tomar um táxi para casa ou fazer hora até que passasse o rush, decidi tomar o trem lotado na direção oposta à minha, ainda havia tempo. Espremido entre tantos corpos, e segurando a barra com força a cada frenagem da composição, minha cabeça ia mastigando o mistério; decidi esboçá-la o melhor que pudesse antes de seguir adiante, aquele momento em que o detetive pausa esperando a epifania que nunca falha; decidi que ela tinha 29 anos, a aparência da moça do metrô; seu engajamento não era acadêmico, ou ela nunca arrancaria a página, ela devia ser uma cientista social engajada, interessada apenas naquela personagem, pensando bem, havia mais duas anotações sobre Ofélia e todas as outras eram sobre a trama, não sobre outros personagens; deve ser isso, mas e se de repente não passou de um acidente? não importa, está esboçada a contento; desta vez eu não perdi a estação, após vencer as escadas rolantes, acendi um cigarro e vi que caía uma chuvinha fina numa cena crepuscular.
Eu sentia fome, pois só lanchei em vez de almoçar, e onde é que eu ia comer novamente, senão na padaria de eleição? o sebo só fechava em meia hora, e quase que queria prolongar o suspense e pensar a respeito. Feito o pedido eu escolhi uma mesa, embora fosse meu costume o balcão, para evitar mesmo que alguém puxasse assunto como mais cedo. Por que rasgaria a página a… não tinha nome; devo dar-lhe um nome? Não, é muito arbitrário, vai ser como aquela brincadeira, você tem cara de, cara de nada, fica sem nome. A primeira coisa que eu pensei foi namorado; namorada? é bem possível; mas ele ou ela iam ler inglês, e aquele inglês? Difícil; e se ela tivesse guardado uma página que tinha qualquer outra significância, seja sentimental ou mesmo um maldito telefone, e então vendido o livro que não lhe interessava mais? Mas ela faria uma desonestidade dessas? não, não pode. E ela mesma, já teria comprado o livro usado? Por que no original? Ah, óbvio, a canção obscena só é obscena no original, é impossível traduzir os jogos de palavra. Então o interesse devia ser literário; e por que um acadêmico não pode rasgar um livro? ou qualquer um? Mas, com aquela caligrafia isso não combinava, aquela era a escrita de uma pessoa certinha, mas cheia de um tesão latente que, bem, lá vou eu. Olhei o relógio ao terminar de comer e precisei enfrentar fila no caixa. Imaginemos que ela precisasse memorizar esse trecho, só pode ser isso, então, ela rasgou e pôs na carteira, para decorar, quem sabe seja de teatro, mas em inglês? Eu mesmo começava a me cansar daquilo e me sentir estúpido, quando, já saindo na chuva que aumentara, me veio o baque e eu estanquei no meio da rua; um carro buzinou, como em filme americano e tudo, e eu terminei de atravessar me amaldiçoando. O livro deve ter uns trinta anos e certamente teve diversos proprietários, a página pode ter sido arrancada por outra pessoa que não a anotadora dos meus sonhos, seu interesse por Ofélia mera coincidência, assim como mesmo a anotadora poderia arrancar a página por acidente, justamente por trabalhar muito naquela passagem, ou ela poderia de fato ter um irmão maconheiro, ser maconheira, não me importa o que! Mas eu já estava na soleira do casarão mais uma vez e entrei. O marido riponga da riponga de mais cedo estava no posto, e eu me vi obrigado a iniciar uma conversa miúda, afinal não podia simplesmente abordá-lo com um papo estapafúrdio. Mas eu precisava encarar a realidade e ir direto ao assunto; tirei o livro da mochila e perguntei sem rodeio. Eu comprei este livro aqui, preciso saber de quem você comprou. Mas é impossível saber! Espera, esse em inglês acho que veio há pouco tempo (eu disse!), um lote grande. Sim? Veio de um sebo que fechou. Eu apenas agradeci e voltei à chuva, à estação e a casa, sabendo que se eu era o idiota que fantasiava tudo isso sobre uma anotadora em trajes sugestivos, ao menos eu não era o idiota que ia perguntar pelos donos do sebo que fechou para prosseguir com essa insanidade.
A Invenção do Segredo
Foi na Escola de Comunicação que Firmino aprendeu as técnicas de enfiar verdades fabricadas nas cabeças de gentes sem instrução – ou, pior ainda, com instrução mas sem senso crítico.
Antes mesmo de concluir o curso de Jornalismo, foi selecionado em um programa de treineiro. Era um bom texto, tecnicamente, mas – prestando atenção – havia ali sempre um eco de sua cosmovisão etnocêntrica.
Fez questão de se pavonear frente aos “amigos” da faculdade; e até mesmo aqueles do Ensino Médio, que enchiam seu saco chamando-o de Batuque, apelido que ele detestava. Primeiro porque associava a palavra a manifestações culturais e religiosas “inferiores”, depois porque era uma tiração de sarro com seu sobrenome – coisa que valorizava por demais.
Firmino Battochio progrediu na corporação: pela competência sim, mas também por trabalhar mais do que aquilo por que era pago, e bajular as pessoas certas.
Chegou à seção de jornalismo investigativo; em uma de suas primeiras reportagens tocou em um ponto nevrálgico para os interesses do jornal, e por algum descuido foi publicado. Depois de muito alvoroço, sendo que por vaidade insistia em prosseguir no assunto, a direção do jornal resolveu dar uma “geladeira” nele: mandaram-no ao Acre, para investigar uma suposta trama de biopirataria.
Do bimotor que saiu de Rio Branco, ele pôde ver: primeiro, enormes fazendas, pastagens escandalosamente extensas; depois, um tapete verde cortado por sinuosidades barrentas; por fim, um traço ocre, como se um tijolo coberto de musgo houvesse sido riscado com um prego.
Era a pista de pouso, única alternativa ao barco (ou voadeira, como é chamada) para chegar a Cidade Alves. Para quem cresceu em Higienópolis, foi um choque. Cidade Alves tinha duas ruas de terra, e quatro vielas interligando-as. Não havia hotel ou pousada, mas não demorou nada para que uma família de ribeirinhos o acolhesse. Ele ofereceu dinheiro, mas os acolhedores só pediram em troca que ele lhes explicasse como usar sua câmera digital. Brincaram um bocado com ela, e suas fotos ficaram lindas. O que é óbvio, já que estavam em plena Amazônia.
Passou então a percorrer a vila perguntando pela presença de estrangeiros. Tudo que ouvia era “num sei de nada não, seu moço” ou algo assim. Já estava ficando irritado com aquela “gente atrasada” e um dia tomou umas a mais no boteco local e saiu xingando a tudo e a todos, vociferando que ele tinha canudo da USP enquanto eles eram um bando de analfabetos.
Um senhor negro se aproximou dele com um sorriso tão beatífico que o desarmou na hora. Apresentaram-se e depois de trocar algumas banalidades, como comentários sobre o tempo, Silvano – era esse seu nome – convidou Batuque para participar, no dia seguinte, de uma cerimônia religiosa em que se consome uma bebida conhecida, dentre outros nomes, como Santo Daime.
Uma vez tomado o Daime, Firmino passou muito mal. Vomitou e borrou-se todo, mas sentia-se ao mesmo tempo muito bem. Viu de repente, no olho da mente, Horácio: justamente seu “inimigo” em tempos de escola, aquele que lhe pôs o indesejado apelido. Sentiu uma vontade súbita de reencontrá-lo e abraçá-lo. Sorria como uma criança, ao som contagiante dos tambores e maracás, e mirando caleidoscópicos mosaicos coloridos.
E o trabalho foi até o romper da aurora, o cansaço e o êxtase se digladiando. Decretado o fim do ritual, Firmino já se convertera em Batuque: era outra pessoa. Podia perceber a sabedoria de um modo de vida diverso do seu. Talvez sua epifania fosse incompleta, mas tinha a impressão de ter aprendido muito.
Já esquecera por completo a biopirataria, e quando retornou à redação, sem bem saber por quê, disse ao chefe (que na verdade nada esperava): “eu descobri tudo, mas é segredo”.
Rupturas
Vivia já há dezesseis anos naquele apartamento. Havia um escritório, com quatro estantes, daquelas de aço esmaltado: uma para os livros do meu marido, pouco mais de metade ocupada, uma para meus livros, repleta, os restantes estando na terceira, da qual duas prateleiras eram ocupadas por uma desordem imensa de papéis acumulados. Minha tarefa para a tarde era percorrer cada item, separando o que era meu, dele ou do lixo. Havia muito material acadêmico, que não podia jogar fora, mesmo que provavelmente nunca mais fosse consultado. Havia três anos inteiros de um periódico estrangeiro, para o qual vale o mesmo. Muita coisa do trabalho dele, da escola do Guilherme, fiquei em dúvida… eram tantas recordações boas! Uma certa angústia me tomou. Carlos me deixara, sem razão aparente; disse que estava esperando o Gui crescer, e esperou até bastante: ele tinha 22. Mas em nenhum momento seu carinho parecera diminuir, pelo contrário, estava até mais caloroso recentemente. Como entender os homens. Quando voltei à lida, esbarrei em um pacote com convites de casamento; cruel ironia.
Alguns eram de parentes, meus e deles, mas quatro me chamaram a atenção: eram de amigos próximos, gente que frequentava a casa. Nenhum casal seguia unido, e nós mesmos nos juntávamos ao clube, no ano das bodas de prata. A Selma tinha estudado comigo, Ciências Sociais. Ela acabou virando funcionária pública, e foi no Ministério que conheceu o Arnaldo, um cara muito bacana também. Eles batalharam, compraram um lote num condomínio irregular, construíram aos poucos, tiveram o Jorginho e em seguida a Vilma, eu lembro quando fomos juntos pra Pirenópolis. O Carlos passou o fim de semana emburrado porque teve que abrir mão do show do Paulinho da Viola, mas a verdade é que ele nunca foi muito com a cara do Arnaldo, que – entre eles – ficava contando vantagens de mulheres, quiçá imaginárias, que tinha tido. Carlos sempre foi um cara tímido e teve poucas namoradas, talvez por isso tenha se apressado tanto em se casar comigo. Os dois fizeram um churrasco quando a casa ficou pronta, ou quase pronta. Uma amiga minha que morava em São Paulo estava me visitando, e ela foi conosco. Paula era muito bonita, é até hoje, e a Selma começou a prestar atenção no modo como Arnaldo conversava com ela; com razão. E ficou tão desconfiada depois daquele dia que começou a perceber sinais, que devia mesmo ter sido muito tonta para ignorar. O mulherengo não tinha nem o cuidado de evitar usar seu telefone para suas escapadas, e por aí foi pego. Tiveram que vender a casa para repartir o dinheiro, Selma ficou com os filhos e ele hoje recebe metade do salário. Os dois nem sempre conseguem evitar de se esbarrar no Ministério, não se falam.
Às vezes reuníamos gente em casa. Para conversar, ouvir uma musiquinha, tomar um vinho e comer um queijo. Um dia, a Selma estava, sem o Arnaldo, eu tinha chamado outra professora do departamento, a Joana, nós nem éramos assim tão próximas, mas ela acabara de chegar a Brasília e não conhecia ninguém. O Carlos chamou um colega também, o Próspero, os dois disputavam uma promoção, na época, o Carlos acabou conseguindo. Os dois, solteiros, não demoraram muito em iniciar uma conversação, e foram ajudados pela origem comum: eram do Rio Grande do Sul. Depois que se despediram, nós olhamos pela sacada e vimos os dois se beijando encostados ao carro dele. Em pouco mais de um ano estavam noivos, e casados dali a seis meses. Pareciam muito felizes, e voltavam aqui amiúde, sempre nos agradeciam por os ter apresentado. Não tiveram filhos, ela ainda queria fazer um doutorado antes. Ele também se sentia estagnado, e decidiu fazer um MBA no exterior. Mas ele queria Estados Unidos e ela foi aceita na França. Surgiu o impasse. Decidiram levar adiante, à distância, revezando: cada mês um cruzava o atlântico. Durou um ano: ela não resistiu aos encantos de um Jean-Pierre qualquer e sua baguete debaixo do braço. Ele ficou inconsolável, mas terminou o curso e hoje está bem profissionalmente, em São Paulo, ela ainda está em Lyon, pós-doc.
Aí um dia a Paula me disse que ia se mudar pra Brasília, passara num concurso. Ela eu conhecia desde criança, lá em Pernambuco. Ela é pouca coisa mais nova que eu, mas parece ser bem mais jovem; já disse que é uma mulher muito bonita. E sempre teve prazer em seduzir os homens, um talento natural. Ocorre que ao chegar certa idade, ela mesma se cansou de jogos inconsequentes, sentiu falta de alguma segurança. Sempre se abria comigo, sua confidente. Mesmo assim, eu não esperava dela que viesse de repente me apresentar o Ricardo, quase trinta anos mais velho e obviamente muito rico, juiz aposentado. Casaram-se oito meses depois de se conhecerem, e oito meses depois ele, obeso, sedentário e tabagista, teve um enfarte fulminante. Ela conseguiu a segurança que almejava, e pertencendo agora às rodas da alta sociedade, foi inclusive amante de um político famoso. Mas um dia, em uma festa, encontrou o Arnaldo, que conhecera naquele malfadado churrasco. Ela mal se lembrava dele, mas ele nunca esquecera aquela morena, e tratou de exercitar seus dotes de galanteador. Saíram de lá para o apartamento dela, e na semana seguinte ele já morava lá. Dois meses depois ela anunciou que estava grávida: fizera de propósito, não podia esperar se queria mesmo uma criança. Como dois adolescentes, casaram-se às pressas. Rosa nasceu prematura, quase não sobrevive, e tinha sempre uma saúde frágil. Por isso mesmo Arnaldo não se conformava em ver Paula sair pelo menos uma vez por semana para jogar cartas, deixando a criança aos cuidados da babá. Como ele mesmo, ela foi descuidada, e não demorou a ficar claro que ela seguia vendo o tal político. Arnaldo cogitou aceitar a situação, pensava principalmente em seu contracheque, mas era orgulhoso demais, e o casamento se desfez. Hoje ele dá aulas para complementar o orçamento, ela é uma diva dos altos círculos da capital – correm boatos escabrosos quanto a sua reputação.
Enquanto eu prosseguia o trabalho entregue a essas reminiscências, meu filho chegou em casa, vindo da casa da namorada. Pensei em aconselhá-lo um pouco: que não fizesse nenhuma besteira, não se apressasse. Mas para quê? Todos temos que cometer os erros que nos cabem, e se ficar um saldo de bons momentos, que importa que não dure para sempre. Para sempre? Que pretensão. Afinal, será bom mesmo ter o mesmo companheiro a vida toda? No mais da vezes não é só uma conveniência, uma fachada? E me senti feliz de ter vivido um quarto de século com o Carlos. E pensei involuntariamente naquele professor da Filosofia, que me convidava para almoçar e declarava uma admiração intelectual que bem sabemos o que significava. Gui entrou no escritório. Tá tudo bem? Tá, tudo tranquilo. A Ritinha tá bem? Sim, ela viajar com os pais pra Europa. Ah, que legal. Olha, filho… Mãe, eu preciso dizer uma coisa. Minha espinha gelou. Que fosse, a vida é dele. Pode falar, filho. O papai… me pediu pra conversar com você. Ufa! Você talvez… Diga. Ele vai se casar de novo. Como! Faz um mês que nos separamos! Pois é, e… é alguém que você conhece. A ideia caiu como um raio. Não podia ser. Ele soube interpretar meu olhar de espanto. É ela mesmo.
Fim de Tarde
Com este vento é simplesmente impossível ler o jornal. Eu tenho de dobrá-lo em quatro, e antes de chegar ao fim do caderno as dobras já estão se rasgando. Não que nesta época do ano aconteça muita coisa, eu até me divirto em ver como os jornalistas ficam se desdobrando para inventar notícias. Esta praça é a extensão da minha casa, venho todas as tardes, depois que o sol abaixa um pouco. Muitos outros aposentados vêm aqui, mas ficam jogando dominó e rindo de piadas bobas; eu me refugio neste banco, sempre o mesmo, debaixo deste ficus, onde me divido entre ler o jornal e observar a vida ao redor.
A vida. Como é seu nome, rapaz? Prazer, seu Antenor me chamam. Eu já levei a vida a sério, Renato, já tive convicções políticas, já batalhei para ser reconhecido e respeitado, já fui síndico do meu bloco, já escrevi cartas a parlamentares, já organizei abaixo-assinados, já emiti pareceres sobre as novas gerações, já fui um defensor da moral e dos bons costumes, já pertenci à maçonaria, já fui à igreja todos os domingos, já vi a academia como o lugar da criação intelectual, já busquei nos filósofos a sabedoria que permite viver bem, já decorei o que é de bom gosto e as características de cada movimento estético, já persegui o amor ideal, já construí um lar respeitável, dois até, já tentei educar meus filhos segundo meus valores, já exaltei a fortaleza e a perseverança, já repeti que colhemos o que plantamos, e acima de tudo já acreditei que uma ordem superior preside a tudo.
Hoje eu saio fora de casa como quem vai a um circo. As relações humanas me interessam na proporção de seu absurdo. Vi que o que mantém a sociedade coesa é a própria estupidez de seus membros. Talvez se tivesse percebido antes que se trata de apenas de um jogo de aparências e uma enorme fogueira de vaidades, não tivesse perdido tanto tempo com escrúpulos de integridade e honradez. Hoje, pelo menos, aprendi a não levar nada a sério. Sou indiferente até mesmo a estas notícias, que não passam de uma forma de matar o tempo. Preste você mesmo atenção e me diga se não tenho razão.
Ele disse que ia comprar água e voltaria, eu achei que fosse mais um saindo à francesa. Situação patética esta de ficar mendigando atenção dos outros para suas histórias; perdem eles, é claro. Eu retomei a leitura de um artigo sobre a infraestrutura portuária, não poderia me importar menos, me cansei e pus o caderno junto aos outros, sob a bolsa. Nenhum homem usa mais bolsas deste estilo, em forma de cunha, eu as acho muito práticas. Lá vinha ele, para minha surpresa. Era um rapaz de uns trinta anos, sentou-se ao meu lado para descansar da corrida, pediu para ver a primeira página e eu despejei minha amargura sobre ele. Por algum motivo, ele voltou, e me ofereceu uma garrafinha d’água, agradeci. Continuei.
Eu estive no Diretas Já, acompanhei de perto a elaboração da Constituição, tinha certeza de que dr. Ulisses ia ser presidente; quando eu vi meu próprio partido o abandonar para apoiar o Collor, eu me desgostei de política. Nunca mais. A política de hoje eu acompanho como se fosse a um mau programa de tevê. Eu já fui professor universitário, e dos exigentes; quando eu vi que a maioria dos trabalhos eram péssimos e que eu era sempre voto vencido nas bancas, consegui um trabalho no verdurão do bairro. Eu gostava de ler, livros, grandes pensadores, tinha até alguma vaidade disso. Quando vi uma figura como Pedro Bial sendo tratado como intelectual, e um culto crescente à boçalidade se instaurar, tive a certeza de que era um esforço vão, fome de vento. Sempre ouvi música clássica, por um tempo fui assinante da Sinfônica, conhecia os principais compositores e reconhecia as principais peças, até que vi a orquestra acompanhar um réper, é assim que fala?, e uma música obtusa e pornográfica cair no gosto geral, vendi minha aparelhagem e meus discos, que acabaram sendo meu fundo de previdência, eles são caros hoje, quem diria. E o que eles têm nos museus hoje? Puro lixo sem sentido, deixei de frequentar há muito tempo. Sempre prezei por meu caráter, e sempre devotei às mulheres da minha vida, poucas, uma idolatria que superava a que eu encontrava na poesia que lia. Pois vi meu filho trazer uma moça em casa, boa moça, me pareceu, dizer que enfim tinha encontrado a pessoa certa, depois aparecer cada semana com uma diferente, e seguia dizendo que estava namorando, a moça queria se casar de qualquer forma, aí ela se descobriu grávida, ele fugiu, hoje vive de trazer contrabando do Paraguai, não dá um tostão para a educação do meu neto, que eu nem conheci. Eu fiz meu melhor, mas falhei na educação dos meus filhos. Minha menina era uma princesinha, estudiosa, linda, começou a trabalhar como modelo, abandonou a escola, se envolveu com drogas e um dia veio me apresentar a namorada. Deixei de falar com ela. Hoje eu me arrependo, mas não tenho coragem de procurá-la. Minha mulher, na verdade, numa briga por qualquer motivo idiota, disse que ela não seria minha filha. Talvez fosse só um blefe, mas o casamento acabou ali. Eu tive uma segunda esposa, mulher religiosa, honrada. Nosso filho entrou até para o seminário, fiquei feliz. Eu comecei a notar um nervosismo nele numa visita que nos fez, chamei-o para uma conversa. Eu nem conto o que o padre andava fazendo. Nunca mais fui à igreja, minha mulher me deixou por isso. E a maçonaria então? Parecia ser um grupo de gente honesta, defensora dos valores tradicionais. Um dia, três diretores da minha loja foram denunciados num esquema de fraudes em contratos com a prefeitura. Quando eu fui síndico, também, além de ser envolvido nas questões mais absurdas, uma moradora que estava em atraso, sem trocadilho, tentou me seduzir em troca do perdão da dívida. E eu, que sempre fui um motorista prudente, nunca tomei uma multa, um dia voltando do trabalho fui atingido por uma motocicleta que subiu a calçada, esta perna nunca ficou boa.
Como, já tem que ir? Que pena. Olha, não se esqueça. hein? A vida é absurda. Claro que vale a pena ser vivida, só não espere pela justiça divina, ou qualquer justiça. Apareça mesmo, estou sempre aqui. Até logo! A luz do dia começava a escassear, ainda era possível ler uma matéria. Tinha chegado à página de Ciência. Um título me chamou atenção: uma equipe multidisciplinar de Harvard conduzia um estudo analisando as relações humanas à luz das leis da física, e já tinham reconhecido padrões da segunda lei da termodinâmica e teoria do Caos. Interessante.
Pechincha
Tá novo, novo, novo. Veja, lataria perfeita, bancos, a revisão foi feita, mas não rodou nem sete mil, tá até cheirando! Sim, na concessionária, o manual tá aqui no porta luvas. Aqui, nota fiscal no meu nome. É um ponto seis, mas é bem econômico. Doze, treze, na cidade, quatorze na estrada. Mas eu rodo pouco, moro perto do trabalho. Tem direção, ar, vidros… trava, alarme, tudo no controle. Completinho. Por quê? Ah, é uma longa história, não vale a pena… Mesmo? Tá com tempo? Bom, vem aqui atrás. Tá vendo isso aqui? Pois bem, pode parecer uma bobagem, mas é este o motivo.
Bem, eu fui promovido ano passado, e meu carro já estava precisando ser trocado… Eu tinha, ainda tenho, algumas dívidas, mas fiz as contas e achei que dava. Tá tudo em dia, quanto a isso pode ficar tranquilo. Minha mulher queria muito este modelo, e é um bom carro mesmo. Foi o primeiro zero que eu tirei. Foi no fim de janeiro. Mas, enfim, ao que interessa. Você sabe dessa moda agora de colar adesivos na traseira com os membros da família, como esses aí. Foi minha filha quem insistiu, eu não queria adesivo nenhum, mas sabe como é: o homem é a cabeça da família, mas a mulher é o pescoço, e ela gostou da ideia. Foi na mesma loja em que instalei o alarme, eles tinham várias opções, eu gostei mais desta.
Este aqui com um sorriso bonachão sou eu, embora me digam que tenho um humor terrível, o que não é verdade, claro. À minha esquerda está minha mãe, de coque no cabelo e crochê nas mãos, o cabelo dela é curto e a única habilidade dela é espezinhar todo mundo. À minha direita, minha esposa, magra e jovial, quando na verdade é gordinha e cheia de rugas. Aí vem meu filho, que tem cara de inteligente aqui mas é um brutamontes apatetado. Depois, minha filha, a caçula, que é um doce aqui e na vida real, no entanto… vai escutando. Por fim, esse cãozinho adorável e felpudo representa na verdade uma cadela, vira-lata das mais corriqueiras.
Eu falei da cadelinha, o nome dela é Espoleta. Era, na verdade. Ela costumava fugir, e numa dessas foi atropelada. Olhei para o adesivo, não quis arrancar: ia ficar uma marca de cola misturada com poeira. Foi em março, começo de março. No fim do mês, minha mãe, dona Risoleta, teve um aneurisma, morreu na hora. Olhava para o carro: seria uma maldição? Bobagem, nunca fui supersticioso. Aí minha filha conseguiu um trabalho temporário, na montagem do Cirque du Soleil. Apareceu um dia dizendo que conheceu um clown, estava apaixonada; não gostei nada daquilo, e não deu outra: minha Lucinha abandonou a faculdade e a nós todos, e literalmente fugiu com o circo. Quem bancou o palhaço fui eu. Foi em maio, já. Em agosto foi o Miguel: eu já estava achando estranho ele ter um segundo celular, e sempre que tocava era um mistério danado, e ele descia por alguns minutos. Foi preso com meio quilo de maconha saindo de uma favela. Eu nem tentei ajudar. Tudo estava desmoronando, mas ainda dava para piorar: no feriado de doze de outubro eu ia viajar com a Tânia, tentar espairecer, minha vida no trabalho também andava estressante. Ela disse, na véspera, que não ia mais; tentei conversar, aí ela disse que ia me deixar, que estava apaixonada e nada ia fazê-la desistir de viver com a Ingrid. Formidável.
Portanto, de todas essas figuras aí eu… Produto? Que produto? Não, eu… o senhor pode usar, não vai querer a família de outra pessoa, e que nem existe mais… Barato? É, eu quero vender logo. Vou perder um pouco sim. Não, não tem truque nenhum, é isso aí que eu contei. Dá pra entender, não? Dirigir, mas é claro! Pode entrar aí, só essa ré aqui que é meio chata, você puxa… ah, já conhece? Pois é, o câmbio é ótimo também, macio.
Oferta do Dia
Terminei de escolher as frutas e consultei a lista: não faltava nada, rumei ao caixa. Então me lembrei dos tomates secos, por sorte, pois não os deixo faltar, embora por algum motivo tenham ficado fora da lista. Fui de corredor em corredor tentando achar o produto, às vezes é difícil entender a lógica de quem organiza essas prateleiras. Aí passei por uma moça bonita: alta, loira, esguia, num vestido colorido. Ela nem reparou em mim. Mas algo me chamou atenção além da beleza: parecia ser alguém que eu conhecia, embora por nada no mundo conseguisse decifrar o enigma, e segui em frente. Já estava no corredor seguinte, disposto a esquecer aquilo, quando caiu a ficha: ela tinha estudado inglês comigo muitos anos antes, em outra cidade. Voltei ao corredor onde ela estivera escolhendo azeite e não a achei lá, mas no próximo a encontrei, comprando café. Eu já abandonara o carrinho.
Desculpa, você não é a Larissa? Ela me olhou surpresa e disse com firmeza: meu nome agora é Abaré. Era minha vez de estar surpreso, e confuso. Alguns segundos de um silêncio constrangedor se passaram, e eu atalhei: então antes era Larissa? Você não se lembra de mim, eu, quer dizer, nós… Aí no rosto dela brilhou um sorriso. Sim, eu me lembro! Lá de Manaus… É, nós estudávamos… Com o Jorge, nossa faz muito tempo! Pois é, como você está? E ensejei os dois beijinhos, que saíram meio desajeitados, o brinco de penas dela roçou meu nariz e me deu vontade de espirrar, mas prossegui. Você está morando aqui então? É, já faz um tempo e você? Eu, voltei faz seis anos já. Como assim, você é do Rio? Sim, mas saí novo. Por isso nunca teve sotaque. É verdade; você, veio parar aqui como? Ah, eu passei um tempo em Brasília, meu pai era de lá… Ele morreu? Pois é, mas faz tempo. Que pena, e sua irmã? Ah, ela continua em Manaus, casou com um cara rico e curte uma de socialite. Nós dois rimos, e estávamos cada vez mais à vontade. Bem, então eu nessa época trabalhava no TCU, e um dia eu conheci o Santo Daime. Não brinca! Nossa, aquilo mudou minha vida: cheguei à conclusão de que não podia estragar minha vida com um trabalho chato, por melhor que pagasse. Aí vim pro Rio estudar Cinema. Que barato! E você?
Pois é, e agora? Eu devia inventar uma vida mais interessante para mim mesmo: que eu era budista e que fazia trabalho voluntário, que havia traduzido Hamlet e escalado o Pão de Açúcar. Mas eu sempre fui um péssimo mentiroso, e ia acabar me atrapalhando. Aquela mulher continuava me intimidando: eu era um frangote quando estudei com ela, alguns anos mais velha, mulher enfim, e linda, embora talvez fosse ainda mais hoje; e ela me lançava uns olhares que me deixavam da altura de uma caixa de fósforos. Não é preciso dizer que eu era patologicamente tímido então; um pouco ainda, mas na época eu era um bocoió. Ela figurava no arquivo das grandes oportunidades desperdiçadas, e, numa conversa recente com uma amiga em comum, soube que ela me considerava muito inteligente. Se isso significa alguma coisa.
Ah, eu morei em vários lugares, no Recife primeiro, depois fui pra Juiz de Fora, mas escolhi o curso errado e passei anos basicamente vagabundeando. Depois que minha mãe morreu… Puxa, lamento! Obrigado, pois então, meu pai ficou sozinho em Recife e resolveu reunir a família e voltar para cá, ainda tínhamos o apartamento em Copacabana. Mas eu já não moro mais com ele, aluguei uma casinha em Santa Teresa. Uau, que charme! Ah, é ótimo lá, e a ladeira ajuda a manter a forma; claro que a genética não ajuda. Ela desviou a atenção da prateleira de produtos de soja – eu a seguia enquanto ela prosseguia com as compras – e sorriu. Eu trabalho no Botafogo, o clube, e estou terminando Contábeis este ano. Aí como terminou o cara “muito inteligente” que ela conhecia! E você está trabalhando com Cinema? Sim, sou a assistente do assistente do assistente, mas estou, e gosto muito. No Odeon está passando um filme em que eu trabalhei. Puxa! Vou lá ver. Vai lá, chama Cama de Concreto. E por que esse nome… como é mesmo? Abaré. Então, eu visitei uma tribo uma vez com meu marido (merda!) e eles escolheram esse nome para mim, houve um ritual e tudo, eu resolvi adotar.
Era um caso didático de como, ao dizer de Sancho Panza, a oportunidade quando aparece deve-se agarrá-la pelo rabo e metê-la para dentro da sala. Larissa, ou Abaré, foi um ônibus que só passou uma vez, uma ave que comeu da isca e eu não soube puxar a corda que derrubaria a arapuca. Lá estava eu, solteirão e com uma vida patética, diante de uma mulher fascinante, realizada, casada, com nome indígena e tudo. Eu precisava pôr fim a mais um silêncio constrangedor.
Então está casada? Sim. Mas ele faz você vir ao supermercado sozinha? Ela deu um risinho. Ele está fora, passa muito tempo fora, na verdade, ele é antropólogo. Ah, faz sentido. Você confia muito nele, então? Claro, por que não confiaria? Sei lá, sabe como é homem. Mas ele fica na tribo o tempo todo, e a ética dele… por que está perguntando? E parou de analisar os preços dos biscoitos para me olhar séria. Eu estava tremendo, para que fui inventar? Ei, calma, só estou conversando, não vá achar que… E você, não se casou?, ela ajudou. Não, eu… terminei um namoro há pouco, menti, geralmente é só encrenca mesmo, sabe como é. Às vezes me parece que ninguém mais se entende hoje em dia. Eu me entendo com o Rodolfo. Nossa, então você tem sorte, e ele mais ainda. Olha, você tá começando… Olhei o carrinho dela e dei de cara com um pote de tomates secos, interrompi-a a tempo. Puxa, eu procurei por toda parte por tomate seco, onde você encontrou? Ela pareceu aliviada, explicou onde achá-los. A despedida foi mais seca que os malditos tomates.
Maus Bocados
Lembrava-se de quando conseguiu aquele emprego. Fora um sacrifício enorme frequentar o curso técnico à noite, depois da jornada como caixa de supermercado, mas ele conseguiu. Um amigo trabalhava em uma companhia de instalações telefônicas, havia feito o mesmo curso, ele levou currículo, fez entrevista; ainda levaram três meses para chamá-lo. Comprou uma garrafa de vinho para celebrar, o que representava uma exceção a sua costumeira parcimônia. No começo, descobriu que a realidade era um pouco diferente dos livros, mas em pouco tempo pegou o jeito do trabalho, e já podia liderar uma equipe para a instalação de serviços de telefonia e internet. Era muito competente, e também atencioso e educado, e começou a se destacar nas pesquisas de satisfação.
Ele nem acompanhou as notícias de crise imobiliária nos Estados Unidos, não entendia nada daquilo e no fundo não lhe importava: cria que bastava trabalhar duro e as coisas seguiriam melhorando. E melhoraram: tornou-se encarregado com apenas seis meses na empresa. A esposa ficava feliz ao ver a tralha de casa substituída por utensílios modernos, e os dois filhos com roupas novas. A quebra de instituições financeiras, seu socorro pelo governo, fusões, tudo era uma narrativa distante e sem sentido: seu salário era o dobro do que ganhava havia um ano, tudo tinha que estar bem. E estava, aparentemente: muita gente estava instalando internet em Leiria, a empresa crescia, os funcionários recebiam bônus. Ele comprou um carro, usado.
Islândia ainda lhe parecia distante demais para que uma crise de títulos, seja lá o que isso fosse, afetasse a ele. Irlanda era só outra ilha sem importância no seu modo de ver, esperava ansioso pela seção de esportes. Com menos de um ano de contratado, chegou a supervisor; o salário permitia pagar o aluguel de uma casa melhor, mudaram-se. Mas os noticiários começaram a falar dos problemas de Portugal também, e da vizinha Espanha, que seriam parte de uma sigla: PIGS, acrônimo de países em dificuldades. O governo anunciava cortes no orçamento, todos temiam pelo futuro. Ele garantia à esposa, que já abandonara o ofício de consertar roupas, que tudo sairia bem.
Mas a demanda por seus serviços começou a minguar, a parcela do salário que dependia das metas desapareceu. As equipes diminuíam de tamanho, ele via entristecido seus técnicos ficando sem emprego: já se dizia que era cada vez mais difícil conseguir uma recolocação. Ele estava acuado, e reagia trabalhando em dobro, ficando até de noite; o ambiente era insuportável na empresa, a competição, acirrada. Conversou com a esposa, era melhor retomar os consertos, talvez até o mais velho… ela rechaçou veementemente a sugestão. Agora ela tinha que reconfortá-lo. A tensão teve efeito sobre sua saúde, mais de uma vez ele deixou de trabalhar por um colapso nervoso. Isso não influenciou sua demissão, que viria de qualquer forma com o enxugamento da empresa.
A crise era agora concreta para ele, e até passou a tentar entender o noticiário sobre a dívida da Grécia, em pouco tempo discutia o mercado de subprimes nas rodas que se formavam na praça. Obviamente o mais urgente era cuidar de casa, o seguro-desemprego ajudaria, mas por pouco tempo. Ironicamente, para o negócio da esposa a crise era uma vantagem: as pessoas passavam a reformar as roupas em vez de descartá-las, e isso ajudou um pouco. Ele procurou emprego: como técnico em telefonia primeiro, viu que ninguém estava contratando naqueles tempos; tentou como caixa de novo, a experiência ajudaria, pensou, não conseguiu nada. Quando os seis meses se passaram e ele ainda estava procurando emprego, qualquer emprego, sabia que de alguma forma tinha de suprir o auxílio governamental que se acabava: descobriu um bico numa central de alimentos. Carregar caixotes, ele que entendia da última tecnologia de cabeamento ótico, e isso quando era aproveitado: havia um sorteio.
Sua auto-estima estava esmagada, e a esposa precisou de fortaleza para assumir o comando de tudo. Ele foi à igreja, queria perguntar a Deus como podia que alguém se preparasse, trabalhasse com afinco, e se visse reduzido a nada por ação de sabe-se lá quem em outro país; se todo mundo trabalha e trabalha, onde acaba essa riqueza toda? Como pode haver crise? O padre conversou um pouco com ele, que acabou aceitando um prato da sopa que estava sendo servida. Outro com quem teve que conversar foi o psiquiatra, pouco depois, estava com quadro de depressão e nem o bico conseguia levar adiante.
A casa já ficara muito cara, e mudaram-se para uma menor que a anterior, o carro já tinha sido vendido, o que salvou alguns meses. Eles não tinham como pagar por psicoterapia ou mesmo medicação, e o tratamento dele foi o vinho, barato, que tomava todas as noites. Estava em um estado deplorável quando um ex-colega veio lhe visitar. Ele ficou muito feliz, propôs um brinde, conversou sobre episódios do tempo em que ajudavam pessoas a terem acesso à rede de computadores. Merecíamos medalhas, e no entanto… O outro também perdera o emprego, e vivia desde então de pequenos bicos, consertando defeitos banais em computadores de usuários que não sabiam nem o mais trivial. Com um sorriso no rosto, ele estendeu uma revista ao anfitrião; estava aberta em um artigo que falava sobre o Brasil, de sua economia aquecida, e especificamente, em um quadro que fez questão de apontar, sobre a carência de mão de obra especializada. O amigo, completamente ébrio, esticou-se no sofá, murmurou que não sabia, nem a Lisboa havia ido mais que uma vez, tinha esposa e filhos, mas ia pensar.
Ela o encorajou: qualquer coisa seria melhor que mofar em Leiria e tornar-se um alcoólatra, se não era tarde demais. Ele iria sozinho; depois de um ano, se tudo corresse bem, ela se juntaria a ele com os meninos. Enquanto isso, seguia consertando roupas, o que já fazia cada minuto que estava acordada. Ele pediu ajuda ao filho para pesquisar na internet empresas no Brasil que atuassem em sua área; preencheu algumas fichas e voltou a encontrar o amigo, que estava partindo sem absolutamente nada garantido, desejou-lhe boa sorte. Estava mais animado, e voltou a batalhar uns trocados carregando caixotes. Um dia recebeu uma mensagem, uma empresa precisava de alguém com o perfil dele; a passagem foi parcelada em dois anos, por sorte seu limite ainda não tinha sido reduzido, embarcou.
A viagem até o nordeste do Brasil foi rápida, um funcionário da empresa foi até buscá-lo no aeroporto e instalá-lo em um hotel confortável, ele mal acreditava. A entrevista foi no dia seguinte, correu tudo bem e ele foi contratado, como chão-de-fábrica, é verdade, mas com perspectiva de crescimento, dado seu currículo. Teve de aprender as peculiaridades de um outro país, de outra tecnologia, até mesmo da língua, que era quase a mesma, mas se saiu bem, seu conhecimento era respeitado dentre os colegas. Vivia em um quarto de pensão, de onde ligava para sua esposa e filhos; as coisas melhorando um pouco eles viriam. Mantinha entretanto o hábito do vinho, que lhe ocupava as noites quentes e solitárias. Conseguiu falar com o amigo, que estava em outro estado: estava empregado e já conhecera uma brasileira, com quem morava.
Alugou então a parte de cima de um pequeno sobrado, mas a liberdade não lhe fez bem: ficava até tarde bebendo e vendo televisão. Se estava fazendo algum dinheiro, e enviando uma parte para casa, a verdade era que a adaptação era difícil: o calor, as brincadeiras sobre sua nacionalidade e sobretudo a solidão o entristeciam, e o refúgio era vendido barato em qualquer supermercado. Chegou atrasado um dia, depois outro e mais alguns; um orientador da empresa conversou com ele, recomendou um tratamento. Ele pensou, não era alcoólatra, apenas… afinal, aceitou a ajuda: uma semana de desintoxicação e grupos de ajuda mútua. A esposa estava preocupada, mas ficou feliz, torcia pelo melhor.
Ele já estava há dois meses sem beber quando ligou e disse que preparassem suas coisas, o acumulado já podia pagar as três passagens; foi numa quarta feira. Na sexta, uns colegas insistiram para que saísse com eles, era um forró do melhor, ele não se arrependeria. Ele disse que não bebia mais, que não era apropriado, mas acabou cedendo. Estava entediado: não sabia dançar e não suportava aquela música; esteve o tempo todo em sua mesa, bebendo guaraná. Mas de repente uma moça que estivera dançando com um de seus colegas se sentou; ela achou curioso ele ser de outro país e disparou a perguntar todo tipo de coisa. Ele achou a moça divertida, e a conversa durou horas, ela tinha que recusar convites para dançar, ele havia muito tempo não se abria assim para ninguém. Ao fim da noite, trocaram telefones, e já no domingo ela fez uma visita.
Ele via sua solidão amenizada, mas se sentia culpado pensando na família; entretanto, a intimidade dos dois só crescia, sem falar que o sexo era ótimo. Passagens marcadas para dali a uma semana, ele disse a ela que estava acabado, mas ela se envolvera, fez uma cena. Ainda se encontraram na véspera da chegada da família dele, ele pediu que nunca o procurasse. A esposa, por todas aquelas ligações que ele recusava com uma expressão desdenhosa no rosto, entendeu o que estava acontecendo, mas fingiu não ver nada. Ele realmente subiu rápido na empresa, e em pouco tempo estavam todos morando melhor. A amante ficou com todas aquelas histórias de Portugal rodando em sua cabeça, quando perdeu as esperanças de recuperar seu português, comprou uma passagem e se estabeleceu em Leiria, parece que faz algum dinheiro consertando roupas. O casal ainda discute se voltarão ou não quando a crise passar, as crianças já se acostumaram…
Em Um Beco da Alfama
Vais ver, é um ótimo restaurante. Sempre que venho a Lisboa tenho que comer o bacalhau do Adamastor. Percorriam as ruas calçadas da Alfama, subindo e descendo, até chegar a uma rua curta, onde se escondia o restaurante de uma só porta. Dentro, poucas mesas, apenas uma ocupada por um casal. Utensílios náuticos compunham a decoração das paredes. No fundo, um balcão em boa madeira exibia uma garrafa de vinho do porto e algumas pequenas taças, mas por trás dele não se via o proprietário. Lauro serviu a si mesmo e ao amigo da bebida tradicional de sua terra e chamou pelo velho conhecido. Ele apareceu, ficou muito feliz, apertou com entusiasmo as mãos de ambos, sugeriu que se sentassem.
E como está Nova Iorque? Ah, aquela loucura de sempre, mas eu acho que não consigo mais viver sem, a gente se acostuma. E Lisboa? Estão difíceis as coisas, o senhor sabe, a crise… Há que ser forte, Adamastor, trabalhar e ter fé que isso vai passar. Verdade, senhor Lauro, mas o movimento caiu muito, as pessoas não vão mais a restaurantes. Podes buscar outra fonte, ser criativo, a crise pode ser uma oportunidade, sabe? O proprietário olhou confuso, um pouco ofendido. O gajo que o ajudava apareceu e anotou o pedido, que era o mesmo de sempre, e trouxe água para todos.
Verdade, Adamastor, tu talvez não acredites, mas a crise foi boa para mim. No começo não, tive perdas, mas quando as ações viraram pó eu tinha o capital para comprar, e depois de dois anos, quando elas se recuperaram, eu tive um lucro enorme. Ou então nas minhas operações de arbitragem, em que apostei contra o euro, também me saí muito bem. É tudo uma questão de perspicácia. Adamastor, que ouvia desanimado, alisando o pano que trazia pendurado ao ombro, suspirou. Tudo que eu sei fazer é cozinhar, senhor Lauro, este restaurante pertenceu a meu pai, eu me orgulho de levar a tradição adiante. Mas se as coisas continuarem assim, não vale a pena nem seguir a funcionar. Eu já estou a procurar outro emprego, mas não está fácil achar, e, como disse, só sei cozinhar. Eu nem sei o que é uma ação, arbitragem muito menos; não tenho capital, se é mesmo o que estou a pensar. O senhor como acha que a crise pode ser boa para mim?
Lauro prometeu que ia pensar um pouco e Adamastor, quase às lágrimas, disse que precisava voltar à cozinha. Os dois amigos conversaram um pouco, o casal chamou o gajo e pagou a conta, e dali a pouco chegou o bacalhau, uma garrafa de vinho verde acompanhando. Enquanto comiam, Lauro elogiava a refeição e lamentava a perspectiva de que o restaurante fechasse as portas, ou a única porta. O amigo provocou: não gostas de investimentos arriscados? Por que não compras o negócio? Passada a crise, ele volta a dar lucro, e a tradição não se perde, teu amigo terá um salário fixo, e terás mais um motivo para voltar a Lisboa: todos saem bem. Lauro olhava pensativo: soava bem, mas ele acreditava no valor do esforço pessoal, detestava condescendência. Precisava conseguir outra solução.
O amigo agradeceu pelo melhor bacalhau que já comera, e já consumiam os pastéis de nata quando Lauro teve um estalo. Pediu ao gajo que chamasse o dono, que se sentou com eles. Adamastor, meu caro, eu disse que a crise pode oferecer oportunidades. Eu sei exatamente o que podes fazer para complementar a renda e manter o restaurante aberto. Tu sabes como muita gente se desespera e deixa o país em busca de outras oportunidades. Que posso dizer eu? De certa forma foi exatamente o que eu fiz. Não importa, o que ia dizer é que conheço portugueses nos Estados Unidos que trabalham com imigração, você sabe, clandestina. Se tu concordares, podes trabalhar recrutando portugueses que queiram ir pra América, não corres risco algum, e tirar um bom dinheiro nisso, que pensas? Adamastor havia escutado a ideia do amigo de Lauro, ficou decepcionado. Sua honestidade tentou argumentar, mas foi vencida pela urgência da situação.
Janela Aberta
Ontem de madrugada eu fiquei conversando com um amigo pela webcam. Contamos algumas novidades, discutimos nossos projetos, e falamos sobre os anos que convivemos, viagens que fizemos, professores que tivemos, shows a que assistimos, dentre outras coisas. Ele hoje mora em oura cidade, quer dizer, eu moro em outra cidade, e criamos o hábito de nos encontrar via internet quando tudo mais dorme. Cada um de nós deve ter dito que estava cansado e ia dormir umas três vezes, só para que surgisse qualquer assunto e o papo prosseguisse, de modo que desligamos já perto das seis.
Melhor dizer que eu desliguei, porque, quando reativei o monitor no dia seguinte, lá estava a sala do mesmo amigo. Tentei alertá-lo pelo microfone, mas ele não parecia me ouvir, sentado a uma mesa com vestígios de um café da manhã frugal, talvez precário, tomando uma xícara de café e fumando. Diminuí a janela e fui ver outras coisas, mas quando me cansei a curiosidade foi mais forte. A namorada dele estava em cena agora, e os dois se beijavam fogosamente sobre um sofá. Não quero ver isso. Fui almoçar.
Quando voltei do almoço, ele tocava violão em uma cadeira, enquanto ela passeava só de calcinha. Era ótima, que cara de sorte. Pensei finalmente em ligar para seu celular e avisar, mas reconsiderei. Vi quando ela se sentou em seu colo e devorou-lhe as orelhas. A coisa começou a esquentar, e dessa vez eu devo confessar que não tive o mesmo escrúpulo. Vou ver só um pouco. Não contive o riso quando ela tirou a calça dele: é minúsculo. Senti-me culpado, estava me aproveitando de um descuido dele de forma desleal. Mas não deixei de salvar um instantâneo quando ela apareceu bem perto da câmera, encobrindo meu amigo pelado.
Eu podia fechar o programa à vontade, quando abrisse de novo, a ligação estava viva. Devia ser algum problema. Mandei uma mensagem para o celular dele, que parecia não usar o computador aquele dia. Voltei a trabalhar em minha dissertação, o que me distraiu daquilo por horas, mas acabei abrindo o programa. Levei um susto: os dois estava amordaçados sobre o sofá e um sujeito com um gorro cobrindo o rosto apontava uma arma para eles. Fiquei desesperado: o que poderia fazer a mil quilômetros de distância?
Pesquisei a página da polícia daquele estado. Achei um telefone, liguei. Expliquei toda a história, ouvi que tinha que ligar outro número; voltei a ligar a explicar toda a história. Nesse meio tempo, o bandido puxou a moça para o meio do tapete e começou a apalpá-la, ela tentava se desvencilhar. Eu estava horrorizado. Ele tirou o membro para fora, que, ao contrário do último que eu tive que ver, podia ser visto com clareza naquela imagem de resolução limitada. Ele forçava a moça a coisas horríveis. Endereço? Não sabia o endereço dele, mas me lembrava que ele me tinha enviado uma vez. Abri o e-mail, uma busca por seu nome retornava resultados demais; por sorte eu me lembrei do tema da mensagem em que pedia a informação: deu certo. Informei à atendente, que garantiu que seria verificado. Quando voltei a abrir a janela da câmera fiquei enfim abismado. Não podia ser! O que ele fazia enquanto a namorada era violentada! À medida em que a cena se desenvolvia, ficava cada vez mais claro que o assaltante… quer dizer… que aquilo era alguma espécie de encenação, um fetiche inusitado. E eu em vez de herói, era mais uma vez um voyeur indiscreto; pior: iria submeter meu amigo a um constrangimento.
Vi quando o suposto assaltante foi pago e sumiu do vídeo. Meu amigo pegou o celular, para ver as horas certamente, e detectou minha mensagem, arregalou os olhos na frente da câmera, ligou o monitor e pôs os fones. Eu tinha que fingir que não estava vendo nada, saí da frente do micro. Mas e a polícia? Eu podia tentar voltar a ligar e acusar o alarme falso, mas não fazia ideia de como explicar o ocorrido. Liguei mesmo assim, fiquei ouvindo aquela gravação estúpida. Voltei a abrir a janela, ele estava todo vestido e conversava com ela, fora do vídeo. Disse oi, constrangido. Ele me pressionou, eu abri o jogo. Ele ficou furibundo, disse que seria melhor confirmar minha história e passar todo o aborrecimento de registrar ocorrência e prestar depoimento do que contar a verdade humilhante. Eu lembrei a ele que era um crime, pedi calma, podíamos pensar alguma coisa. A namorada dele disse no fundo que eu era um palavrão indizível. Ele disse que crime era o que ele ia cometer quando me encontrasse, crime era passar trote na polícia, e era exatamente o que ele ia dizer, que era vítima de um trote e ia dar todos meus dados. Pude ver quando sua mão alcançou a câmera e a janela ficou preta. Penso que daqui a um tempo ele pode me perdoar. Mas se o telefone tocar é melhor não atender.
Um Pesadelo no Meio do Inverno
As pessoas circulavam na capital mais meridional do país cobertas com todos casacos, gorros e cachecóis que tinham, vapor saía de suas bocas quando falavam. Era o inverno mais rigoroso em várias décadas. Mas dentro do centro comercial Rio Center a calefação garantia um ambiente mais confortável, e os clientes eram vistos carregando a roupa de frio nas mãos. Em uma das lojas, especializada em cosméticos e perfumaria, Thiago trabalhava com seu habitual joie de vivre, em uma calça preta de couro sintético e uma camisa branca com detalhes bordados. Atendia às clientes com toda atenção e prestatividade, conhecia muito bem a linha de produtos. Nem abalava seu bom humor o fato de que Sílvia, a gerente, detestava-o, e fazia o possível para tornar seu dia um inferno, todos os dias, com uma folga por semana apenas. Ela era uma solteirona bastante elegante, metida em um tailleur malva; trabalhava havia muitos anos ali, e seu perfeccionismo beirava o doentio. No caixa do cinema trabalhava Cíntia, uma jovem de ascendência alemã que fazia faculdade pelas manhãs e seria em breve enfermeira. Era doce e cordata, vestia-se com recato, e frequentava a mesma igreja evangélica que Leopoldo, alguns anos mais velho, funcionário de uma loja de calçados, ali mesmo. Ele era um rapaz sério e trabalhador, não bebia, e sonhava com a promoção a gerente, quando poderia usar o paletó verde da loja. Era também muito belo, um negro de feições salientes, apesar de tímido, e foi Cíntia quem teve que deixar claro seu interesse para que ele agisse. Estavam juntos já havia dois anos, e ele tinha que esperar a última sessão para levá-la para casa, onde os pais dela, ansiosos pelo casamento, aguardavam-nos.
Sílvia recomendou a Thiago que não se demorasse em seu intervalo para fumar: o movimento estava aumentado com todo aquele frio; obviamente era o que ela sempre falava, com uma cara azeda. A loja onde trabalhava Leopoldo ficava no caminho para a saída, e ele parou para admirar o rapaz, enquanto fingia ver as vitrines. O ritual era antigo, e deixava o jovem religioso muito constrangido; preferia simplesmente fingir que nada acontecia, mas a cada vez que olhava para ver se o outro já se fora, os olhos se encontravam e ele tinha uma sensação indefinível. No fumódromo, Thiago encontrou um amigo, um amigo com quem já tivera um caso. Ele sabia da paixão do outro pelo vendedor de calçados, e garantiu que tinha a solução. Tirou do bolso do casaco um vidro de perfume: está em fase experimental, mas eu já vi funcionar; você precisa borrifar o bofe com isto e certificar-se de que você seja a primeira coisa que ele toca. O amigo desdenhou, que crendice idiota, o outro insistiu: não vai te custar nada experimentar, quer dizer, custa cem reais. A curiosidade o venceu, pagou. Fumou um segundo cigarro, ia ter que escutar muito na volta.
Ele viu quando Leopoldo passou em frente à loja: devia estar indo almoçar com a namorada na praça de alimentação, ela estava chegando aquela hora. Explicou à chefe que ia almoçar mais cedo, não tinha tomado café, ela resmungou, mas autorizou. Lá estava o casal, ele não tinha bem um plano, sentou-se de modo que sua grande paixão não o visse. Tirou o frasco do bolso e o segurou na mão, o mais discretamente possível; passou pela mesa deles, mas calculou mal o tiro, e, com ajuda do sistema de ventilação, as gotículas aspergidas foram parar no rosto dela. Ela se virou e segurou-o pelo braço, estava disposta a tirar satisfações, mas, quando o viu, um sorriso de abriu em seu rosto, perguntou que perfume era aquele, começou a puxar conversa, enquanto Leopoldo, por mais que o rival fosse obviamente homossexual, não gostava nem um pouco daquilo. Ela disse que se lembrava dele, ele trabalhava em tal loja, ela ia passar lá mais tarde. Ele deu um jeito de se desvencilhar e se despediu, voltou sem almoçar para a loja. Cíntia tratou Leopoldo com indiferença daí em diante.
A gerente da loja estranhou sua volta abrupta, e viu quando ele guardou alguma coisa na gaveta. Tão logo Thiago foi ao banheiro, ela abriu a gaveta e pegou o perfume, experimentou; era diferente, cítrico. Um cliente entrou, um rapaz negro; ela era um tanto racista, mas não quando se tratava de vender, recebeu-o cheia de afabilidades, e tocou-o no ombro. Ele disse que não queria comprar nada, só queria conversar com um rapaz que trabalhava ali. Ela imaginou coisas, e ficou enciumada; começou a reparar no rosto do rapaz, em seus lábios grossos, na força de seus braços. Disse que ele fora embora, estava passando mal, deu um cartão dela, sugeriu que ligasse, acrescentou seu número pessoal, no que eu puder ajudar… Leopoldo não entendia nada. Thiago apareceu quando o outro acabava de sair, pediu licença para fazer um telefonema. Achou estranho quando ela não reclamou nem um pouco. Pediu um café e discou, exigia do amigo um antídoto, e fez uma cena quando descobriu que não havia. Voltou ao trabalho.
Enquanto isso, no caixa do cinema, as colegas de Cíntia estavam surpresas de ouvi-la elogiar tanto aquele homem, de fato bonito, mas gay até a medula, quando até ontem era a namorada bem comportada de um homem tão responsável. Confabularam e decidiram que uma ia conversar com Leopoldo quando pudesse, para sondar aquele mistério. O vendedor de perfumes conferiu a gaveta e descobriu o sumiço da poção, ficou desesperado, mas não teve dúvidas: questionou sua chefe com rispidez, garantiu que se tratava de algo muito perigoso, ela desconversou. Sem saber o que fazer, voltou a ligar para o amigo, desta vez dentro da loja mesmo; contou o incidente com a namorada de seu amado, e que a megera da sua chefe havia roubado o frasco. Ela ouviu tudo, e entendeu o funcionamento da mágica.
Leopoldo mal conseguia trabalhar, preocupado com o comportamento de Cíntia, e tão distraído estava que sofreu uma reprimenda; aquilo era péssimo para seus planos. De repente viu entrar na loja a coroa que lhe dera uma cantada mais cedo; como se não bastasse! Ela inventava que precisava comprar um presente, fe-lo mostrar alguns modelos, e quando teve a chance deu-lhe uma borrifada do perfume. Ele, entretanto, mantinha-se distante, e, quando viu entrar uma colega de Cíntia, pediu licença à cliente e a cumprimntou com dois beijinhos. Ficou olhando fixamente para a moça, respondeu que não lhe preocupava o que Cíntia fizesse, desde que pudesse todo dia contemplar uma beleza tão sublime quanto a dela. Sílvia xingou em voz alta e disse que voltaria depois. A colega da namorada do vendedor se assustou e também voltou ao trabalho, ávida por compartilhar mais aquela novidade. Leopoldo esteve ainda mais aéreo, e o gerente comentava reservadamente que era uma pena, sua promoção estava para sair a qualquer momento.
Havia um longo intervalo até a próxima sessão, e Cintia pediu para sair uns minutos. Fez questão de ser atendida por Thiago, e encarava-o com um ar embasbacado o tempo todo. Ele explicava que aquele perfume que ela conhecera estava em fase de testes. Sílvia ouviu tudo aquilo e resolveu pregar uma peça no funcionário: tirou da bolsa o frasco com propriedades fantásticas e o borrifou no pescoço do rapaz, é esse? A até pouco pia senhorita lhe agarrou pelos ombros, deu uma bela fungada sorvendo o perfume exótico, não resistiu e deu-lhe um belo beijo. Desculpou-se com a gerente, mirou lasciva o rapaz, que de repente descobriu que gostava de meninas, só não havia aparecido a certa. Ele alcançou Cíntia na saída e pegou seu telefone; o resto do dia ficaram trocando mensagens, combinando de saírem.
De repente entra na loja ninguém menos que Leopoldo; ele se sentia constrangido tanto com Sílvia quanto com Thiago, mas queria muito uma marca que só se vendia ali, para presentear a colega da provável ex. Ela obviamente insistiu em atendê-lo, numa patética tentativa de sedução. O que ela não percebeu foi que cometeu um erro: o frasco do amigo de Thiago e os frascos da marca que Leopoldo pedia eram parecidos, e ela acabara guardando a poção no mostruário. Foi o primeiro que ele escolheu, borrifou a mão. Thiago, que espiava de longe, percebeu, e viu ali sua chance de recuperar o frasco. Foi um golpe rápido e preciso, mas foi impossível evitar que se tocassem. O cliente ficou uns instantes olhando para o funcionário, voltou a conversar com a gerente, que não gostou nada daqueles olhares, finalizou a compra, encarou novamente Thiago e saiu um pouco constrangido. Leopoldo estava confuso, ele nunca pensara em homens, aquilo não tinha sido nada, mas agora começava a ver seu antigo admirador com outros olhos. Seu gerente perguntou se estava tudo bem, ele se desculpou pelas ausências, não se repetiria.
Thiago nem se lembrava que o propósito inicial era seduzir Leopoldo, ficou incomodado com seus olhares indiscretos; só pensava no esplendor loiro que estaria aquela hora na bilheteria do cinema. Ela também só pensava nele, mas estava sentindo uma leve dor de cabeça. Ocorre que havia de fato um antídoto para a fórmula mágica, um que nem os inventores conheciam, e era uma trivial aspirina. A mesma colega por quem seu ex-namorado esteve brevemente apaixonado providenciou o remédio para Cíntia. Depois de cinco minutos, ela pensou em Leopoldo, resolveu ligar, sem saber bem por quê. Foi a vez de ele desprezá-la, sua voz já ganhava trejeitos efeminados. Ela se desesperou, mas não podia sair naquele horário, o pico de movimento na bilheteria. A fofoca das colegas prosseguia, elas acabaram chegando à conclusão, ou bom palpite ao menos, de que havia um feitiço circulando, e só podia ter sido a aspirina a desfazê-lo.
O comportamento de Leopoldo estava cada vez mais estranho, e o gerente perguntou se ele não queria sair mais cedo, ele disse que estava tudo ótimo. Quando uma das moças da bilheteria entrou insistindo em que ele tomasse um comprimido, que seria um misto de hormônios que o faria irresistível para qualquer pessoa que ele tocasse, ficou desconfiado, mas quis arriscar. Disse que mudara de ideia e aceitou ser dispensado por aquele dia. Correu até a loja onde seu bofe trabalhava, inventou qualquer desculpa para se aproximar dele, que fugia. De repente o antídoto funcionou, não sabia o que estava fazendo ali e tinha saudades de Cíntia. Subiu até onde ela trabalhava, ela ficou feliz em vê-lo, agradeceu pelo presente, e disse que poderia sair em alguns minutos.
Sílvia, enquanto isso, seguia enciumada dos dois, resolveu tentar falar com Leopoldo no fim do expediente, que estava próximo. Thiago começou a ficar preocupado por não receber mais mensagens de Cíntia, até que ela mandou uma sugerindo se tratar de um engano. Pediu para sair um pouco mais cedo; ela autorizou, o que a ele já nem surpreendia, incumbiu outra funcionária de fechar a loja e resolveu seguir Thiago à distância. Ele se dirigiu à praça de alimentação, onde se pode dizer que tudo começou, e viu novamente o casal reunido. Ficou tão possesso com a traição de Cíntia que teve uma atitude impulsiva: abordou os dois, deu um tapa na moça e agarrou o pescoço do pobre rapaz. Os seguranças estavam longe, e, desacostumados a qualquer incidente naquele lugar tranquilo, não puderam evitar um bárbaro assassinato. Sílvia, que assistia a tudo, não pôde crer ao ver seu amado sendo morto, e, quando pôde reagir, tirou da bolsa sua pequena pistola, a qual nunca usara, aproximou-se e atingiu Thiago no peito. Ela foi detida em flagrante, a moça prestou depoimento e foi liberada. Chegou em casa de ônibus, tarde, não quis explicar nada. Tomou uma caixa inteira de remédio controlado; está no hospital, mas fora de perigo.
Em Busca da Memória Perdida
Abri os olhos. Plantas. Plantas? Um jardim, uma piscina. Nunca vi este lugar. Boca seca, ressaca; merda, que que eu fiz ontem? Olhei o céu, estava amanhecendo, fazia um pouco de frio. Eu ainda tinha muito sono, mas ali não conseguiria dormir de novo. Levantei cambaleando e achei um canto, imundo, ao lado da churrasqueira, que ainda emanava algum calor.
Acordei mais uma vez, igualmente atônito, estava quente e a claridade era insuportável. Fiquei estirado sobre as costas, esfregando os olhos, precisava recompor até onde pudesse a noite anterior. De repente veio o estalo: nós fomos ao show do Planeta Bizarro no Caçapa do Fundo. Já é alguma coisa. Mas onde diabos vim parar? E que terei aprontado no caminho?
Eu precisava de água, criei coragem para me erguer, e tentei limpar um pouco a camiseta branca, debalde. Uma porta de correr levava a uma sala, havia uma bateria montada. Ninguém por perto, eu não sabia se anunciava minha presença ou se torcia para estar sozinho (desde que não estivesse trancado). Abri uma porta que dava para uma copa e uma cozinha: uma família almoçava e me encarou surpresa, a matriarca deixou cair o garfo: a única coisa que quebrou o silêncio. Eu não sabia como me explicar, então só pedi água. Eles se entreolharam, o pai se levantou: a festa estava boa? Eu queria saber dizer, não disse nada, envergonhado. O filho passou por mim, e em alguns instantes retornou com uma moça de aspecto sonolento.
Nossa, você ainda está aqui! Bem, acho que isso é tudo que eu sei. Você estava muito louco ontem, não se lembra de nada, né? Não muito. Ela me puxou para a sala para que a família prosseguisse com a refeição. Sabe meu nome? Fiz que não com a cabeça. É Helena. Você chegou com o Mauro e o Flanela, já eram quase duas. E eu aprontei alguma? Não… você tocou com o pessoal, aí eu vi você conversando com a Fernanda, ela estava com o seu chapéu e você virou o copo dela duas vezes, depois… eu não te vi mais, não aconteceu nada. Puxa, desculpa, Helena, mas onde é que eu estou? Ela riu, aqui é Laranjeiras. Nunca ouvi falar. É passando a Cidade Nova, é um pouco longe, você veio de carona? Vim, vou ligar pro Flanela… Desculpa, eu não posso te levar agora. Não, não se preocupe. E também é ruim de ônibus, táxi sai uma fortuna.
Pedi mais água, tentei o número do Flanela, caixa postal. Liguei pro Mauro. Fala Maluco! Meu, que que aconteceu ontem? Putz, você estava muito louco. Já é a segunda pessoa a me dizer isso, eu fiz alguma besteira? Nenhuma muito… teve uns lances engraçados. Escuta, você está ocupado? Pode me buscar aqui? Aqui onde? Na festa, onde foi a festa. Você está aí? E riu-se com gosto. Estou, puta situação estranha, dá pra vir? Cara, meu pai tá usando o carro agora, posso ir mais tarde. Você sabe do Flanela? Eu liguei há pouco na casa dele e ele estava dormindo. Qual é o fixo dele? Pedi papel e caneta a Helena. Valeu, Mauro, qualquer coisa eu volto a ligar.
Não quer almoçar… como é que você se chama? Gabriel. Senta aí, come um peixinho. Poxa, eu… Vou fazer mais um telefonema, mas eu aceito sim. Precisei fazer um esforço para lembrar o nome verdadeiro do Flanela, mas a família dele já estava acostumada com o apelido. Pedi para acordá-lo. Porra, Gabo, deixa eu dormir. Cara, eu tô na roubada aqui, na festa. Na festa? É, eu dormi no jardim e vocês me deixaram aqui, seu puto. Eu achei que você tinha ido com a mina. Vem me buscar, quebra essa. Ele demorou um pouco para dizer que viria. O tempo que ele demorou para chegar foi justamente o que eu levei para almoçar, o pai da Helena me fez companhia, um cara simpático. Ela, ao se despedir, sugeriu que voltasse um dia para ouvir uns LP’s. Que garota interessante, e eu nem me lembrava dela.
Entramos no carro, eu recusei um cigarro: nem pensar. Meu, você estava muito doido ontem. Já é a terceira pessoa que me diz isso, que foi que eu fiz afinal? Bom, você não se lembra de nada? Me lembro quando o show do Planeta acabou, eu já estava bem chapado. Pois é, essa hora você já estava fazendo gracinha com mulher acompanhada, a gente te salvou de tomar umas porradas; não conseguia digitar a senha… Ah é, essa eu lembro. Então, não lembra que a gente passou no Super Cesta, comprou cerveja, você comprou um vinho caro… Putz. Aí passamos no Mauro pra fumar um… É claro. Você quebrou um porta-retrato. Merda. Aí o baixista da banda dele ligou, falando dessa festa, que ia rolar um jam e tal. A gente rodou um bocado até achar o endereço, chegou. A dona da casa era essa gatinha, atriz… Eu conheci hoje. Pois é, aí você abriu o vinho, mas andava por aí com a garrafa numa mão e uma latinha na outra. Caralho… Estavam tocando violão na cozinha, você tocou uns Beatles, errando os acordes… Depois, na sala, jogaram as baquetas na sua mão e você tocou, até que mais ou menos, um blues. Pelo menos isso. A próxima vez que eu soube de você, você tinha pulado na piscina só de cueca. Ai, caramba! A Helena veio dizer que o cloro isso ou aquilo, pediu que saísse e você se vestiu. Daí em diante eu fiquei de olho em você.
Cara, para nesse posto pra comprar água. Bem, aí a gente estava sentado lá fora, apareceu essa mina que devia estar mais louca que você, pegou seu chapéu e pôs nela, disse que você era o Saulo, irmão do André, e repetia isso toda hora. E eu? Você disse que, se ela queria, era. Aí você tentou dar um beijo nela, ela virou a cara e disse que você era casado e tinha filho, você perguntou se dava tempo de ser você de novo, ela disse que você procurasse outra mulher, você disse que essa era a tônica da sua vida, ela mandou você se foder, você disse de novo que era a tônica da sua vida, e mais umas duas vezes, a tudo que ela dizia. Você pegou o copo dela, acho que era vodka, e virou, ela foi lá dentro, voltou com outro e você tomou dela e virou de novo. É, essa parte eu já sei. Aí você agarrou ela, deu-lhe um beijo, virou pro lado e vomitou. Estávamos na fila do caixa, a mulher da frente se virou e olhou feio. Aí foi ela que te deu um beijo. Que nojo! Nessa hora eu entrei, vocês que se entendessem, mas pedi pro Mauro ficar atento.
De repente ele me chama pra ver uma coisa. Lá vem. Vem mesmo: vocês se esconderam atrás de uma árvore, ou tentaram se esconder, você já estava com a calça abaixada, dela só se via a cabeça, na altura da sua virilha… Hehe. Mas alguém mais viu? Uma hora a Helena veio conferir uma carne que tinham esquecido na churrasqueira, não teve como evitar. Puta merda, Flanela. Ela levou na boa, ou fingiu bem, pelo menos. E como é que vocês me deixaram lá, afinal? Bom, você tinha cochilado em uma cadeira, eu fiquei mais tranquilo e voltei pra tocar com a galera, quando o Mauro disse que não aguentava mais, a gente te procurou em todo canto, não achou; como o pessoal que estava com a mina já tinha ido embora, imaginamos que você tinha ido com ela, apesar de que não ia aguentar muita coisa. Onde diabos você se meteu? Ah, eu estava no meio de umas plantas, no fundo do jardim. Estávamos chegando a minha casa.
Cara, eu preciso falar com a Helena e me desculpar. Esquece, meu, todo mundo faz isso uma vez ou outra. Você não tem o telefone dela? Não, eu conheci ela ontem também. Talvez o Mauro. Taí, descansa um pouco, toma um banho, tenta se segurar na próxima. Poxa, muito obrigado, Flanela, você foi firmeza mesmo. Tomei um banho e liguei pro Mauro. Ele não tinha o número, mas o baixista dele devia ter; liguei para o cara, constrangido, eu mal o conhecia. Pois é, eu sei, meti o pé na jaca mesmo. Eu queria pedir desculpas à Helena, você tem o telefone dela? Anotei e liguei na mesma hora. Helena, é o Gabriel. Olha, eu descobri que fiz coisas horríveis na sua casa, queria me desculpar. Mesmo assim, eu fico com a cara no chão, eu não costumo fazer isso. Pois é. Você acha? Eu passei um tempo parado, mas tenho praticado ultimamente. Foi bom voltar a tocar com banda. Mas, me diz, você também gosta de vinil? Conversamos? É, teríamos que conversar tudo novo, mesmo. Bem, foi um prazer conhecer você. Exatamente, duas vezes. Eu te ligo qualquer dia. Beijo, tchau.
O Espírito
Era um condomínio de luxo, um pouco afastado de determinada metrópole. Um dispositivo no automóvel, um utilitário-esporte, emitia um sinal que fez abrir automaticamente a cancela. Aristide já havia afrouxado o nó da gravata e aberto o primeiro botão da camisa. Sua posição e a peculiaridade do ramo o forçavam a trabalhar na véspera de Natal.
Na cozinha, Angélica comandava uma equipe de três assistentes que deviam preparar cada detalhe para uma noite magnífica: era quem mais dava importância ao Natal. Um pernil estava sendo levado ao forno, mais tarde um tradicional peru também seria assado e ambos seriam ricamente adornados e guarnecidos de arroz com passas, batatas gratinadas, farofa, salpicão, uma exuberante salada, além de castanhas das mais diversas, importadas.
Na sala, uma árvore enorme, ou uma armação metálica coberta de plástico verde e apinhada de bolas vermelhas e douradas, estava cercada de embrulhos de diversos tamanhos. Um Papai Noel de pelúcia comandava um trenó puxado por renas do mesmo material. Felícia, a do meio, assistia à televisão tomando sorvete, sentada no sofá de couro branco. Era uma linda jovem com duas décadas de uma vida confortável. Estendida sobre o tapete persa, de bruços, Amália, a mais nova, conversava em seu notebook com uma amiga. Iniciava a adolescência.
Em um dos quartos, um rapaz de cabelos escuros, compridos, usando camiseta preta com estampa de banda de heavy metal e jeans, sentava diante do computador. Na tela, magos e guerreiros enfrentavam bestas e malfeitores. Hugo fez uma pausa e verificou se havia alguma mensagem. A angústia e a expectativa iam se fazendo raiva e despeito. Ele já detestava desde sempre o Natal, e naquele em específico estava frustrado pelo relacionamento que imaginava estar tendo, e se desenvolvia bem na internet, mas que terminou antes de se concretizar na vida real. A última tentativa de salvá-lo sequer teve resposta.
Era o mais velho, estava terminando a faculdade de publicidade, era magro e razoavelmente alto, tocava guitarra numa banda, o nariz só um pouco grande demais; dava um bocado de trabalho aos pais, que tinham medo do meio musical e suas drogas. E detestava Natal. Não por isso deixou de pegar algumas castanhas quando foi beber água, sob protestos da mãe, que queria que se esperasse a noite para saborear o grande momento mais intensamente.
Foi quando Aristide entrou em casa. Amália se ergueu para receber um beijo na testa, Felícia desligou a tevê e o abraçou: era afetuosa. Foi até a piscina, onde Angélica tirava uma pausa dos preparativos para fumar. Cruzou com Hugo, que esboçou um “oi, pai” burocrático, antes de voltar a se enfurnar no quarto mais uma vez. O casal se beijou e passou a compartilhar seja os detalhes da festa ou as atribulações do trabalho. Ele tomou banho e vestiu algo mais confortável, abriu uma cerveja. Felícia ligou para uma amiga, que morava ali no mesmo condomínio, e anunciou à mãe: “vou na casa da Manuela depois da meia noite”. Amália seguia na internet, Hugo jogava e Aristide lia. Às sete horas, Angélica saiu para levar cada empregada a sua casa, no sedã, cujo porta-malas estava repleto de cestas de Natal e brinquedos. Todos se prepararam, vestiram-se para a noite festiva, Hugo meio a contragosto: queriam que ele ficasse como um playboy. Quando a matriarca chegou e iniciou sua elaborada toalete, já começou a tocar o repertório de músicas natalinas (que davam nos nervos do primogênito).
Começaram então os telefonemas a parentes que moravam longe, os mesmos votos previsíveis. A aparelhagem de som deu lugar à tevê, com a ainda mais previsível programação natalina. Angélica teve que admoestar Hugo, que usava fones de ouvido. Amália e Felícia tiveram que levar o tabuleiro de xadrez da mesa de jantar para a mesa de centro, e interromper a partida para ajudar a mãe a trazer as iguarias, algumas das quais estavam sendo esquentadas no forno. A Hugo coube pôr os pratos e talheres, mas seu desleixo lhe valeu outra bronca. Aristide bebia um uísque devagar, saboreava o momento em família.
Angélica fez um discurso, repleto de uma religiosidade difusa, em que agradecia a Deus pela prosperidade material, mas principalmente pela saúde de todos. Quando falou em espírito do natal, Hugo fez uma careta. Ele não só era ateu e achava a história de Cristo mera invencionice, como detestava o consumismo vazio que caracterizava a festa – muito embora estivesse se preparando para vender coisas e ideias. Comeram. Comentários elogiosos e refrigerantes circularam, bem como futricas sobre a vida dos parentes que acabavam de descobrir.
O roqueiro, mesmo que a mãe fumasse tambem, sempre se escondia para dar suas tragadas, e foi até a garagem para isso, levando uma xícara de café. O casal sentava lado a lado, de mãos dadas, à beira da piscina, e a música natalina retornara. Felícia atendeu o telefone e deu um sorriso maroto. Amália voltou ao computador portátil. Faltava pouco para meia-noite: o grande momento para a mãe e um ritual insuportável para o filho, que foi o único a não jurntar-se ao coro que fez a contagem regressiva. Aristide abriu a garrafa de champanhe fazendo barulho e sujeira; serviu cinco taças, brindaram. Presentes foram abertos, e ele naquele desânimo: deviam saber que eu detesto camisa polo.
Foi quando Felícia chamou seu irmão de lado, e disse que sua amiga Manuela tinha pedido para chamá-lo para também ir a sua casa, que ficava a pouco mais de um quilômetro dali. Ele fez um muchocho e disse que achava aquilo um saco: iriam ficar fofocando e conversando sobre cosméticos. A irmã insistiu, disse que ele ia gostar; como ele não mudasse de ideia, teve que abrir o jogo: tinha alguém que queria conhecê-lo. Ele disse que ia pelo menos trocar de roupa, ela achou que fazia sentido.
Pegaram o carro da mãe emprestado. Não havia a menor necessidade, porque era perto e muito seguro, mas estavam desde sempre mal acostumados. Manuela tinha já por tradição chamar várias amigas para uma noite natalina de jogos de tabuleiro, mas naquela em especial só vieram mesmo Felícia, com o recalcitrante irmão, e seu namorado, que inclusive morava na mesma rua de Hugo. Havia ainda uma moça, que parecia ser a mais velha da assistência, que Hugo nunca vira. Tinha cabelos castanhos ondulados e olhos bem pretos, vestia um vestido um tanto mais despojado que o resto das meninas, e abriu um sorriso quando o viu. Tinha às mãos um livro do Calvin e Haroldo, do qual ele também gostava, de modo que foi instintivo comentar. Ela tinha ganhado do irmão. Daí a conversa começou a se desenvolver naturalmente. A irmã percebeu e veio ajudar: “essa é a Orquídea, ela é irmã do Flávio e mora na Espanha”. Flávio era o namorado de Manuela, de modo que Hugo observou: “então é minha vizinha!”. “De certa forma, sim”.
A noite transcorreu plena de alegria, e Hugo já perdera a rabugice natalina costumeira. Conversou bastante com Orquídea, elogiou-lhe o nome inusitado, “Rosa não é comum, ora?” Ela disse que o ouvira tocar guitarra uma vez, que tocava bem, e que o viu passando de carro. Ele entendeu tudo definitivamente. “Não é Bob Dylan que está tocando?”, e ela: “sim, é aquele disco de canções natalinas”. Jogando, ela – à sua frente – fez-lhe um sinal com os olhos na direção de Manuela, ao lado dos dois, e passaram então a atacá-la de modo concertado, tirando-a do jogo; trocavam risinhos cúmplices.
À medida em que ficava tarde, a mãe de Flávio veio buscá-lo, e Angélica ligou no celular de Felícia. Hugo e Orquídea haviam acabado de abrir um vinho, e anunciaram que iriam depois. Risinhos circularam obviamente, e os dois não ligaram, já que tão logo a irmã saísse Hugo beijou a vizinha. Mais uma vez, as carícias se desenvolveram muito espontaneamente. Os pais da Manuela já tinham ido dormir e ela mesma usava o computador, feliz até com o papel de alcoviteira.
Voltavam andando, de mãos dadas, trocavam sorrisos francos e discutiam música e cinema. A dada altura havia um jardim, e uma sebe que circunscrevia um espaço invisível desde fora. Não que fizesse diferença, pois àquela hora o máximo que circulava era o carro da empresa de segurança privada. Orquídea estancou: “eu não te dei um presente”. Puxou-o para de trás da sebe e aí então foi que as carícias foram num crescendo, até que, desabando fnalmente, exausto, com as costas sobre a relva úmida, ele mirava sua silhueta esguia, que, deitada de lado, passeava com a mão sobre todo seu corpo. “Feliz Natal”, ela disse, beijando-lhe a face, após um orgasmo quase simultâneo. “E um próspero ano novo”, ele completou.
Onde Estão Seus Modos?
Minha mãe é artista plástica. No começo ela só queria ter uma atividade para não ser apenas e tão somente esposa do meu pai, que é empresário. Depois de um tempo as pessoas elogiavam seus quadros por um pouco mais que educação; uma amiga dela é esposa de um dono de galeria, eles vieram jantar aqui, um desses jantares idiotas, e ele gostou bastante do trabalho. Levou um, depois três, e em algum tempo ela já era um nome comentado. Ela passou a ser requisitada nas soirées mais exclusivas da cidade. Às vezes ela nos leva a todos, me apresenta como “minha atleta”, pior é meu irmão, que é “futuro cientista”. O que me deixa possessa é que em casa ela encrenca com meus treinos diários, insistindo em que eu deveria estudar para concursos. Eu curso Comunicação, participo do circuito de corridas de rua, e não tenho nenhuma pretensão de me tornar burocrata.
Ela me fez sair aquele dia para comprar um vestido novo, só para ir ao jantar na casa dos qualquer coisa. Eu já tinha aprendido a não confrontá-la e adotar o gosto cafona dela, só para aquelas ocasiões. Eu iria de jeans e camiseta, se pudesse. Foi difícil achar estacionamento embaixo do bloco, meu pai parou em um lugar um pouco inapropriado. Subimos: era uma sala enorme, decorada com a ostentação mais cafona possível, várias pessoas aqui ou ali bebendo vinho ou cerveja, tocava alguma espécie nauseabunda de easy-listening. A anfitriã nos recebeu com todos salamaleques possíveis, “minha atleta” e vamos nós. Um dos quadros de minha mãe estava na parede, foi o mote para alguma conversa miúda. Eu aceitei um vinho tinto, e fui pra sacada observar a fauna do local.
Pasolini tem uma sensibilidade que faz Buñuel parecer um troglodita, dizia um. Mas é a crueza das emoções humanas que faz seus filmes tão sublimes, sem falar que o seu italiano nunca ouviu falar em roteiro, contestava o outro. Um estava com gola roulé e usava cavanhaque, o outro usava blazer com camiseta, e um sapatênis que não combinava com nada. Eu odeio gente culta demais. Mais adiante, ouvi alguém dizer que esperto é o PMDB, que não está nunca no trono mas controla sempre o poder. Era um careca barrigudo com um enorme bigode. Pedir dinheiro na rua tem que dar cadeia!, espumava uma perua num vestido vermelho decotado, da cor do chapéu extravagante. É o que eu digo, quem não aceitar ir pro abrigo vai em cana! Voltei para perto de meu pai, que explicava que transporte urbano era um ramo que ia sempre bem, a um interlocutor que fingia interesse, muito mal. Minha mãe seguia com os donos da casa, expunha seus projetos de uma inovadora série de naturezas mortas. Alguém precisava produzir arte para pessoas dois séculos atrasadas, afinal.
Chegou a hora de servirem o jantar. Eu fiquei sentada ao lado da senhora qualquer coisa; à minha frente, um prato em cima do outro, três jogos de talheres, duas taças e um vistoso guardanapo de linho enfiado em um anel de madeira. Um problema com esses eventos era obviamente essa etiqueta idiota. O outro era o cardápio: eu não como nada de origem animal. Eu tentava explicar isso a minha mãe quando ela ensinava qual era a faca de peixe, qual era a faca de carne, inútil. Apareceram vários criados uniformizados, um tomou meu prato de cima, fundo, e perguntou: creme de espinafre? Tem leite? Tem manteiga? A senhora qualquer coisa me olhou feio. Eu mostrei a língua. Minha mãe cobriu o rosto com a mão. Aceito sim, moço, ele serviu. Minha mãe me fulminava com o olhar. A dado momento um dos criados veio dizer que interfonaram para dizer que um carro modelo tal tinha tido o retrovisor arrancado. Meu pai desceu às pressas, sem razão, pois não havia o que fazer. Todos o esperaram, comentaram que era um absurdo, quando a culpa no fim era dele. Minha mãe fazia sinais, eu não entendia nada; a senhora qualquer coisa ajudou: você trocou a posição da taça de vinho com a de água. Suspirei mas obedeci. Levaram os pratos usados e voltaram oferecendo picanha recheada ou tucunaré assado. Não, moço, eu não como carne; serve só arroz e salada, por favor. Minha vizinha tomou um gole de vinho com um ar afetado, eu a olhei desafiadoramente.
Bom, para a sopa bastava uma colher, e só havia uma. Para comer o prato principal, mesmo sem o principal, escolhi um garfo intermediário e uma faca com corte, porque eu costumava triturar a salada antes de comer. É um modo inusitado de comer a salada, queridinha, ainda mais com uma faca de carne, e deu uma falsa gargalhada, secundada por duas ou três da socialites. Olhei para a faca: era o único dos talheres com um cabo de madeira avermelhada, a lâmina era larga, o fio fazia uma curva acentuada, repleto de dentes afiados. Olhei para a senhora qualquer coisa, que ainda sorria com soberba. Foi rápido e certeiro: eu nunca matara ninguém, mas um talento natural me fez acertar a jugular da megera. O sangue espirrou, todos se levantaram. Agora eu queria o do cavanhaque, o que gostava do Pasolini, ou do Buñuel, não importa. Ele andava pra trás e tropeçou na mesa de centro, eu o feri na barriga, três, quatro vezes. Que tente sobreviver. O do blazer, que gostava da crueza de sei lá o quê, ganhou apenas um ferimento ou dois no braço, mas fiz questão de jogar seus sapatênis pela sacada. Paralisada de medo estava a perua de vermelho, a única que não saiu do lugar. Fiquei atrás dela, pus a faca em seu pescoço, ela suava e tremia: a bolsa, madama. Ela obedeceu; vou dar para o primeiro pedinte que aparecer, e cortei um pedaço de sua orelha. O careca tinha se escondido. Olhei para o senhor qualquer coisa, desesperado ao lado do corpo da esposa. Não vale a pena. Faltava só uma coisa. Do canto superior direito até o inferior esquerdo, minha faca de carne percorreu o quadro idiota da minha mãe. Mais vinho, senhorita? Como? Olhei para o garçom apalermado, que mostrava o rótulo de um Château N’Importe Quoi. Alguns saboreavam a sobremesa, outros fumavam e tomavam café. A solução mesmo é o voto distrital! Mais vinho, claro.
Felisberto
Felisberto Jovino era um velho infeliz. Talvez não tão velho, mas de meia idade; talvez não tão infeliz, mas amargurado. Não era mal humorado, e sim bastante espirituoso, ainda que mordaz. De qualquer sorte, gastava seus dias em bibliotecas, livrarias, um cinema às vezes, ou longas caminhadas, sempre só. As noites eram preenchidas com audições em elevados decibéis de compositores vanguardistas – para desespero dos vizinhos – ou bebedeiras, às vezes ambos. Sempre só, claro.
Não que ao longo de sua vida atribulada ele não tenha tido mulheres e amigos, foram até muitos na juventude. Mas o tempo se encarregava sempre de decantar sua personalidade densa, submergindo-o em um mar de melancólica solidão. Não era um pessimista profissional, como um alemão que ele gostava de ler; mas se tornou aos poucos um misantropo, como um grego que ele admirava.
Numa certa madrugada ébria, numa mesa de canto dum bar pouco recomendável da metrópole, relia pela enésima vez, no original, a obra maior de outro alemão (cuja recomendação de lê-la depois dos quarenta ele descumprira). Súbito, seja pela mistura arriscada de Steinhaeger com antidepressivos, seja por um desses eventos inexplicáveis pela ciência, Felisberto sente um cheiro de enxofre e, erguendo os olhos da leitura, depara-se com um senhor sentado à cadeira oposta, de pele muito vermelha, usando um belo terno e um chapéu bem negros. Sobre a mesa, uma valise cor de sangue.
Com seu perdão, o senhor queira se retirar, eu não quero comprar nada.
Mas eu não estou aqui para vender…
(interrompendo) Já sei, quer comprar minha alma em troca de sabedoria. Não, muito obrigado, eu já tenho mais do que possa precisar.
Mantenha a calma, meu caro, ouça ao menos a proposta que eu lhe faço.
Espera um pouco. Garçom, mais um destes!
Permita-me me apresentar. (sacando um cartão do bolso do paletó) Sou Mefistófeles e atuo no ramo de compra, venda e permuta de bens imateriais.
Ah, prazer conhecê-lo pessoalmente. O último Anjo do Inferno que conheci pilotava uma motocicleta. Mas pode esquecer, já vendi minha alma pelo Mercado Livre.
(sonora gargalhada) Ora, Sr. Jovino, não se trata disso. Hoje em dia esse negócio não vale mais a pena. Tal mercadoria tem pouco valor de revenda, e…
Pode me chamar de Felisberto.
Ótimo. Indo direto ao ponto, Felisberto, o Sr. estaria…
(gritando)Você!
Você estaria interessado em me vender sua sabedoria?
Ora, mas isso é que não vale nada mesmo!
Talvez, mas eu preciso dar um presente ao Chefe, vai ser o aniversário da Queda semana que vem. Você sabe como ele gosta dessas coisas.
Hum… Posso te chamar de Mefisto?
É, não chega a me incomodar, fique à vontade.
Então, Memê, o que é…
Eu não gosto de ser chamado de Memê.
Mefinho?
Não.
Totofes?
Muito menos. Começo a me perguntar se você é o cliente ideal.
Mas eu sou ligeiramente diferente de sua clientela habitual. Vá lá, Me-fis-tó-fe-les, qual é a barganha?
Bem, Felisberto, é bem claro para mim que você não é feliz.
Ninguém o é, quem diz que é está se enganando.
Não é verdade. Veja ali aqueles jovens: estão dançando lascivamente, exibindo corpos bem feitos e bem cuidados, cada um com um belo sorriso no rosto bronzeado…
Você propõe me transformar em um deles.
Exatamente. Ao assinar este contrato (abrindo a valise), você perde toda sua erudição e acorda amanhã totalmente estúpido, mas jovem e musculoso, viril e priápico.
Sem ressaca?
Naturalmente!
Nunca mais?
Pode-se providenciar isso também.
Estou começando a me interessar.
A esta altura o contrato já estava em cima da mesa, bem como mais uma dose.
Felisberto lança mão do documento e começa a lê-lo.
“O contratante se compromete a alienar seu patrimônio cultural… perfeitamente néscio ao acordar na manhã seguinte…” E se eu passar a noite em claro?
Você vai dormir eventualmente.
“O contratado se obriga a prover o contratante com um corpo jovem, musculoso e de aparência atraente para jovens do sexo oposto…” Como você garante que nenhum viado vai me perseguir?
Não é isso o que está escrito.
“…sem disfunção erétil em condições normais… “ Devo admitir que às vezes… Sabe, é difícil achar boas profissionais… mas o que seriam as condições anormais?
Estão listadas no anexo III.
E o tamanho da minha ereção? Não que a atual não baste…
Tudo bem, quanto você quer?
(Faz um gesto com as mãos separadas por uns 30cm.)
Eu faço um adendo.
(risos) Boa piada… Mas o que são essas letras miúdas?
Nada de mais, é só um complemento.
Complemento? Espera aí (sacando os óculos do bolso da camisa).
“O contratante fica expressamente proibido de consumir qualquer tipo de arte, literatura, filosofia ou ciência, assim como ler os jornais e publicações listados no anexo VIII, sendo-lhe permitida apenas a leitura de livros de auto-ajuda, revistas semanais de grande circulação e bulas de remédio.” Tá querendo me tapear?
Olha, isso é uma formalidade, você não seria capaz de entender nada acima de revistas para adolescentes.
Tem mais: “fica obrigado a uma carga diária de duas horas de exercícios físicos, além de consumir esteróides anabolizantes”, isso faz parte do anexo III? Sim! “Deverá assistir a três novelas e, nos fins-de-semana, dois programas de auditório, a escolher. Também deverá manter uma média diária sete horas em frente à televisão.” Monsieur, c’est ridicule!
Num lance rápido, Mefistófeles tira o chapéu, revelando um par de chifres e uma calva completa. Coloca-o sobre a cadeira à esquerda de seu embriagado interlocutor e, de repente, o adereço se transfigura, crescendo até atingir a forma de um linda moça negra com um largo sorriso.
Safado, conhece bem os meus gostos, diz Felisberto, voltando o olhar para o Mefisto, que desta vez tinha um belo panamá na cabeça. Ele repete o mesmo truque e voilà: uma estonteante loura de olhos claros. Ambas estavam em trajes mínimos, obviamente.
Ah, cachorrão, que golpe baixo! (ele sente mãos indiscretas em sua virilha)
E então, meu caro, não é isso que lhe falta? Aproveita!
É uma amostra grátis?
Bem…digamos que é um brinde para celebrar sua assinatura.
Não seja cruel, deixe-me pensar melhor enquanto saboreio suas diabinhas aqui.
Nada feito. Vamos, vamos com isso Felisberto, não tenho todo dia.
Hoje em dia sua agenda tem andado cheia mesmo!
Eu tenho um encontro com Deus para discutir os preparativos da festa.
Que festa?
Aniversário da Queda, oras!
Veja só… Mas Ele não está em toda parte? Você pode encontrá-lo aqui mesmo, enquanto eu…
Não, chega de cincunlóquios. Aqui está a caneta, opa, está sem tinta! Você me consegue um pouco de sangue?
Sai fora capetão! Não assino nada.
Como?! Não é possível!
É sim, eu estou fora. .
Dê uma olhada nessas duas beldades!
Tudo bem, são lindas, mas estava planejando pegar o Quijote de novo, e você sabe, sexo sem amor é uma experiência vazia.
Mas é certamente a melhor delas!
No, gracias, yo no firmo.
Felisberto acordou com uma puta ressaca. Largou o Fausto e retomou o Quixote. Jogou fora a caixa de comprimidos com uma tarja preta. Não precisava daquilo, sabia que era muito feliz.
P.S.: Com agradecimentos a: Monty Python, Frank Zappa e Woody Allen. E ao Goethe, que, aliás, eu não li.
O Cafajeste Cultural
A erudição de Fábio se limitava a poder citar alguns nomes fundamentais: não ia além do lugar-comum. Mas isso não o impedia de paquerar as freqüentadoras da Livraria Cultura botando banca de intelectual. Afinal, é fácil iniciar uma conversa casual tendo diante de si uma estante de livros, discos, ou filmes a servir de pretexto. Ele costumava abordar as mais novinhas, por volta de vinte e poucos, que se interessassem talvez por um cara mais maduro e culto – o que ele acreditava ser – e que dizia ser médico e rico – o que nunca fora.
Mas naquele dia ele bateu os olhos em uma coroa que disparou nele uma descarga de adrenalina: sua tendência de se apaixonar à primeira vista dera uma trégua, mas voltara com tudo. Ela era esguia e portava um elegante tailleur, tinha um rosto de traços firmes mas harmoniosos, e cabelos vermelhos curtos, com duas pontas na frente a contrastar com a alvura de seu lindo colo. Mas eram aqueles olhos azuis, enquadrados pela discreta armação dourada, que o enfeitiçavam. Ela tinha o ar de uma diretora de escola inglesa, e, sentada em uma poltrona, folheava um livro de arte enorme; devia saber tudo de qualquer coisa… não era mais um alvo de sua caçada frívola, ele seria desmascarado logo de saída. Fábio não ficava nervoso assim por uma mulher desde a adolescência, e quando ela afinal ergueu os olhos na direção dos seus, ele rapidamente se escondeu atrás de uma estante, como uma criança. Respirou, criou confiança e tentou a sorte.
Debaixo da ducha quente do motel Hortência sorria… Sua colega do escritório tinha toda razão: a Livraria Cultura seria o melhor lugar para fisgar um marido. Que homem culto! Espera até eu contar pra Beth que ele já chegou falando de Renascimento, de Michelângelo… E ainda por cima é médico e tem casa de praia! Hortência se enxugou e, diante do espelho, conferiu se as lentes azuis estavam no lugar e vasculhou os cabelos em busca de raízes brancas.
Fábio, deitado, não cabia em si: restauradora de arte!
Estranhabloomdisseia
Era para ser apenas mais uma visita à Livraria Cultura, e me saía bem resistindo às tentações que, quais sirenas silenciosas, testavam minha fortaleza a cada passo. Mas foi justamente uma fortaleza sobre as rochas, armada apenas de letras brancas e prateadas, que, inexpugnável à minha parcimônia, arrancou-me a carteira do bolso. Suspirei: chegara a hora de empreender aquela jornada. Corri até o caixa com o mapa do tesouro quase escondido (não tivesse ele as dimensões de um tijolo!), e paguei a passagem. Embarquei na pena de Joyce, pronto para singrar os mares da subjetividade, sujeito às vagas do questionamento, às intempéries da fé, à calmaria do quotidiano e à deriva dos devaneios, traçando um caminho totalmente novo até a Ítaca do ideal helênico.
Ajudava o vento, e nossa embarcação deslizava sobre plácidas águas quando – não sei se foram os deuses, ou apenas meu próprio fluxo de consciência escapando por um meandro do curso principal – de repente me vi transportado para um amplo salão com uma longa mesa e bancos de madeira, e percebi logo que era convidado de alguma celebração muito especial. E insólita. Senti um cutucão e me virei para ver o próprio Joyce falar: “Dedalus, me passa o carreteiro?” Só então prestei atenção à mesa, repleta de iguarias da culinária tupiniquim. Quase à minha frente Guimarães Rosa oferecia torresmos a Victor Hugo; mais adiante era Dostoiévski que roía um caroço de pequi, e Cora Coralina alertava para os espinhos; sem falar na expressão de êxtase com que Cervantes despejava manteiga de garrafa em sua carne de sol, e no modo como Kafka bufava porque pusera pimenta demais na moqueca. Atravessou o umbral da porta um velho cego, com uma caipirinha na mão e falando com seu guia: “e o Dionísio disse: e daí, você também me fez nas coxa!” Sófocles caiu na gargalhada: “Homero, você não existe!”
Quando abri os olhos, vi a moça da faxina, a Livraria Cultura quase às escuras, o volume fechado e o capuccino pela metade… Ítaca ainda estava longe.
Melhor que a Encomenda
Vamos lá… eu detesto xopincênter, mas eu preciso desse livro pra um trabalho, e é pra semana que vem; e, pra piorar, essa puta ressaca… Opa, um sorvetinho vai ajudar… cinco contos numa bola! Que remédio… “Moça, o que é stracciatella?”, “Flocos”, “Ah… dá um de avelã”. Enquanto isso, uma senhora cria caso porque o sorvete dela está muito duro, não resisto e digo “mas vai derreter…”, por sorte ela não me dá atenção; faz o rapaz cancelar o pagamento, o coitado fica batalhando com a maquininha enquanto ela repete “todo cartão dá pra cancelar, blablabla”; quase dou mais cinco pra véia calar a matraca. Felizmete, se aprendi aguma coisa na vida é a evitar encrenca quando não tenho nada a ganhar… mentira, ainda faço isso todo o tempo, vocês logo verão, mas ali ao menos minha têmpera funcionou. Saio de perto, subo as escadas rolantes que levam direto às portas da Livraria Cultura.
Devo confessar que me sinto bem aqui, gosto da decoração, gosto de estar cercado de livros… e este pé direito alto (que terá acontecido ao esquerdo?) dá uma sensação agradável de amplidão; assim como a amplidão do saber humano ao mesmo tempo me encanta e me apequena, cá estou ironicamente num manancial de tramas e idéias, teorias e teoremas, cores e formas… e ao mesmo tempo num templo do capitalismo, da ostentação frívola. Bem, agora que já tomei o sorvete e digredi o bastante, me dirijo ao atendente, um rapazola com um troço bizarro na orelha, digo que havia reservado um livro e ele me encaminha para um balcão logo ali. Sorrio ao pensar que devia ter perguntado: “Onde é que Steinbeck?” De passagem, paro pra folhear um livro de humor judaico e de repente me sobrevém um incoveniente intestinal. Perdoe-me a leitora se o assunto indigno, e os que me censurarão por imitar as apóstrofes do Bruxo; o fato é que me escapou um flato. Putz… ainda bem que não tem ninguém por perto, vamos resolver isso rápido, ir pra casa tomar um banho, que hoje tem João Bosco e… Cara, que gata no balcão de encomenda! Eu adoro esse tipo, pele alabastrina, cabelos lisos e nigérrimos. Parece que no latim há duas palavras para a cor negra e niger seria o preto brilhante; isso torna o adjetivo superlativo acima ainda mais apropriado. “Boa noite”, “boa noite”, “eu encomendei um livro.”
A questão é que o maldito metano não se volatiliza assim tão fácil, e tem o péssimo hábito de acompanhar seu atífice por algum tempo, ou então foi o sistema de ventilação que fez só de sacanagem, sei que eu falando com a mina e tá lá aquela realidade incômoda que obviamente fingimos ignorar quando na presença de estranhos, mas é assunto de galhofa em círculos mais relaxados (trrrrrr psh!). “Seu nome completo, por favor”, e eu o digo mecanicamente, nem me passa pela cabeça mandar um “diga o seu primeiro”, nem seria apropriado naquela situação embaraçosa; e eu nunca fui mesmo um grande galanteador. “Qual é o livro?”, “tem um do Cândido, que eu tinha encomendado há mais tempo, e o outro é um do bardo”, “Shakespeare?” Taí o que mais gosto na Cultura: você é atendido por alguém que tem alguma. Pra falar a verdade, bem que gostaria de qualquer dia largar minha confortável sinecura numa repartição (palavrinha mais datada, essa) e vir trampar aqui.
“Senhor, só localizei o Macbeth.” e aí ela passa a explicar que a reserva cai depois de não sei quanto tempo, “o senhor gostaria de voltar a encomendar?”, “mas eu preciso fazer um trabalho com esse livro, pra semana que vem!”, “puxa… quando for assim, o senhor pode ligar e pedir pra estender a reserva”. E pra provar o que disse há pouco, lá vou eu me lançar numa diatribe inútil, chegando talvez a ser indelicado com a linda senhorita, que me atendia tão bem! “Sabe, eu pensei que a Cultura fosse a única livraria que eu pudesse levar a sério!”, “mas, meu senhor, eu expliquei que…”, e eu tento remediar: “não, não é isso, é que eu fui até a Cultura do Conjunto Nacional e não achei nada do que eu busquei, inclusive esse Cândido!”, “do Voltaire?”, “não, o Antonio…”, “lamento, senhor.”, “o senhor tá no céu… dizem”, ela sorri burocraticamente. E lá vou eu me pavonear um pouco: “mas eram coisas bem específicas, como a Ilíada traduzida pelo Pope”, “ah… posso voltar a pedir então?”, “não, eu preciso aprender a usar a biblioteca, ou vocês vão ficar com todo meu dinheiro!”, e ela sorri de verdade desta vez, que espetáculo! “Posso ajudá-lo em algo mais?”
Não, eu não passei nenhuma cantada de mau gosto, e olha que o gancho era perfeito; de bom gosto tampouco, que aliás são as que menos funcionam, eu só disse “não, por ora é tudo, obrigado” ou coisa que o valha. E fui embora, sem sequer me lembrar de olhar seu nome no crachá. O trabalho no fim foi pro espaço, a biblioteca também não tinha nenhum exemplar disponível. O João Bosco foi ótimo pelo menos.
Fábula Acadêmica
Era uma Vez…
… sobre as verdejantes colinas de um reino próspero e distante, reino cujo monarca era justo, benevolente e próspero, e cujos súditos eram saudáveis, bonitos e asseados, além de não menos prósperos… enfim, surgiu nesse reino, vindo de terras ainda mais distantes, um autoproclamado sábio, guru e feiticeiro, não necessariamente nessa ordem. Era o grande, enormíssimo, estupendo e fabuloso (não necessariamente etc.) “Vazzen von der Zeffa”
Zeffa tinha uma proposta para o rei. Sim, isso mesmo, afinal de contas não se viajam léguas e léguas a troco de um aperto de mão. Sua idéia era simples mas genial – ele era sempre genial. Ora, o monarca dispunha de todo aquele reinado, mas seu povo era estúpido, não, não se ofenda, era uma nação de néscios. E Zeffa era depositário de todo o saber das bandas de cá do rio. Sua proposta era instituir algo a que ele chamava Academia. O Rei não teve tempo de coçar a cabeça uma segunda vez pois Zeffa se prontificou a explicar: na tal Academia, haveria livros – e o cenho do Rei franziu mais um pouco – e haveria professores – aqui chamaram-se os guardas. Vazzen escapou do calabouço trocando aquela palavra por “pesquisadores”, o que o Rei gostou muito de ouvir, sendo ele próprio um pesquisador, diga-se, da vida dos outros. Sua Majestade empertigou-se em sua farda e sinalizou que progredisse a explanação.
Bastava, fê-lo der Zeffa, interpelar todos mercadores que transitassem por terras vossas, cobrando-se-lhes uma pequena taxa, um ou dois dobrões de ouro. Daí viriam recursos suficientes para erguer alguns poucos prédios – ou diversas taperas, como preferirdes – onde seriam ministradas aulas por alguns de meus discípulos, detentores de todo o saber das bandas de cá do rio. Não bastando, todos poderiam se ocupar de tentar descobrir novos brinquedos, artefatos ou poções, feitiços ou antídotos… Mais, haveria bardos e menestréis, escribas e cartógrafos, pintores e escultores…
Chega! Isso já chega, bradou o Rei, não faço idéia do que significa tudo isso, mas vá, algo me diz que lho devo consentir. Vá, meu caro, tens Carta Branca. Doravante fica estipulado que nada se vende, nada se compra, nada se colhe e nada se come sem que o valoroso Vazzen von der Zeffa receba seu quinhão. E que se faça a Cadimia!!!
Academia, milorde.
Pois tudo transcorreu às mil maravilhas. Bem verdade que os campesinos, aldeões e demais qualidades de gente menor não puderam compreender aquele circo todo, mas quem são eles? As obras e preparativos seguiram, e todos estavam contentes e esperançosos; o monarca mesmo enviou uma expedição ao Condado dos Vinhedos encarregada de supri-los com o melhor dos vinhos. Zeffa, apesar de atarefado, aceitou uma ou outra regalia palaciana, dado que os sábios (gurus e feiticeiros) são de carne afinal. E a carne é fraca, já sabemos.
Quando tudo estava pronto, caiado de branco e acabado, fez-se uma festa que, segundo os ventos que passaram por aqui, durou algo entre três e setecentos dias. Pôs-se de pronto em andamento o projeto mirabolante de Vazzen, e houve uma euforia entre a corte e o clero. Houve quem falasse em milagre, olha, dizem que até em Messias, mas isso é terreno ardiloso. De qualquer forma, o sucesso obtido foi formidável, e a coisa toda prosperou a olhos vistos.
Algum camponês ou outro vendilhão, andarilho ou meretriz ficaram insatisfeitos a resmungar com a carestia, mas ora… O povo todo se enterneceu com o nascimento de uma adorável criatura, filha de nosso bom déspota, sua alteza Princesa Verba.
Verba cresceu forte e saudável e, cá entre nós, assaz bela. Sem falar que o reino em si cresceu, atraindo gente de todas as partes e parte de todas as gentes, enfim, havia muita gente mesmo. E para suprir a fome de todos, instituiu-se um galpão onde se servia sopa, uma sopa saborosa, que ficou conhecida como caldo de cultura. Foram tempos memoráveis aqueles antes do dragão.
Pois sim, um dragão. Ora essa! E dos grandes, garanto. Mas ele veio disfarçado de mulher. Não me perguntes como, Julio Verne não tinha leitores tão curiosos… A verdade é que o bichão tornou-se uma graciosa criatura, recém púbere – fica aqui isto – bem ao gosto de sua Majestade. E veio em visita ao nosso adorável reino. Encantou a muitos, inveja também causou, e constrangimento, por ser tão jovem e tão desejável. Não tardou a ter acesso aos corredores acadêmicos e gostou muito do que viu. Tantas pessoas bonitas e talentosas, tanta efervescência que sentiu azia. Não via a hora de cuspir um foguinho. Mas enfim, logrou com igual êxito adentrar a alta hierarquia palaciana, insinuando-se até conhecer o supremo mandatário.
Aí então se revelou. E dizem que cuspiu fogo que ardeu duas semanas. Mas ao que me consta, só chamuscou alguns arquivos empoeirados. Fora de forma, desculpou-se o monstro. Mas o monarca, em trajes menores, ficou apalermado com aquele susto, olhou para cima e caiu desfalecido. O pânico logo tomou o castelo de assalto, dali a diante o reino inteiro. Nosso vilão dissimulado fez como dele se esperava, já advinhas: raptou a criança Verba, quem aliás tinha constituição bem semelhante à escolhida por ele para disfarce. Uma verdadeira princesa. A população pela primeira vez foi unânime quanto à necessidade de derrotar o enorme animal que punha labaredas pelas ventas. É verdade que discutiram até os bofetões sobre o modus operandi. Ficou decidido que apareceria um cavaleiro destemido, aventureiro vindo de bem além do rio que com sua enorme espada assassinaria a besta. Preferiram escrever dragão a besta, temendo pelo rei. Ah, e salvaria e desposaria a besta, digo, a Verba. Alguém aí? Voluntários, passo à frente.
Pouco mais tarde, chega uma mensagem aos aldeões, que a transmitem incontinenti ao bom Rei. O dragão exigia a academia para liberar, ou melhor, libertar a Verba. O Rei desmaiou de novo. Vazzen, vocês perguntam, que foi feito dele? Se esgueirava sorrateiro escapando da atenção de todos mas acabou pego pela guarda real. E agora? Zeffa objetou que era um absurdo, e ademais uma covardia entregar assim o fruto de tanto esforço. Parecia razoável. Mas não trazia a princesa de volta. Zeffa ficou cativo, afinal, foi ele quem começou tudo aquilo. Onde estava sua mágica agora?
Tão logo souberam da novidade, os alunos e freqüentadores da academia ficaram possessos. Ora, pois um réptil enorme, de hálito incendiário levaria a maior riqueza, digo, a segunda – a primeira já fora levada – sem que ninguém lutasse? Uniram-se, armaram-se paus e pedras e livros – os quais nunca se soube para que serviriam. Enquanto isso, nosso guru, sábio, bla-bla-bla, mexia seus pauzinhos. Preparou um feitiço para escapar do cárcere. Teve que usar até, ouvi dizer, a língua de um dos guardas. Desapareceu. A hora da batalha era chegada.
El Rei, que se arrependera desde muito de dar ouvidos àquele maluco, insistia que se concedesse à besta o que pedia, que se salvasse a Verba. Tarde demais. Catedráticos, pupilos, aldeões e bandidos, seguidos do magnífico Vazzen von der Zeffa, rumavam para a montanha do dragão.
Lá chegando, encontraram algo bem diverso do esperado. Mesa posta, centenas de salgadinhos, canapés, ponche e outras delicatessens brilharam ao povo faminto como o mais rico Potosi. A ira, a cólera, o ímpeto e a agressividade de cada um voltaram-se da besta para o próximo, cada qual querendo comer mais e primeiro. Como resultado, dois terços estavam mortos no chão no momento em que Vazzen chegou e se deparou com o espetáculo.
Estupefacto, boquiaberto e estarrecido (nessa exata ordem), Zeffa conjurou setecentos e cinqüenta demônios rastejantes, quatro ou cinco elementais de água e mais duas enormes gárgulas voadoras. O que seguiu não serei eu, nem sequer o próprio Vazzen, quem poderá descrever. Não é de nossa tradição narrar batalhas épicas; aliás, até então nunca houvera uma.
Mas ao cabo de um quarto de hora, as tropas etéreas e fantasmagóricas triunfaram ao conseguir induzir o monstro a engolir uma nuvem, depois do quê ficou a soltar umas fumacinhas que faziam um barulho que parecia, ainda que por lá não se soubesse o que eram, trens deslanchando.
Mas e quanto a Verba? E a academia, como ficou? Isso cabe a você descobrir; ou melhor, decidir.