
Tu nunca pegou numa peça, maluco. E daí? A arma é só pra assustar. O Camarão não vai dar arma pra gente. Você vai ver. Quando eles iam entrando no metrô da Cinelândia, o segurança os parou, colocou contra a parede e revistou. Foram vocês que roubaram a velhinha! Achou um resto de maconha, deu um safanão em cada e sugeriu que o metrô não era lugar para eles. Vai, vamo de ônibus. E foram até o ponto garantindo que foi por muito pouco que não tiveram sucesso. O cobrador foi firmeza e deixou passar por baixo, eles se instalaram no fundo e desceram perto da entrada do morro. Mas no que passavam pelo boteco do pai de um amigo, o Tulim, a moça do balcão gritou: sobe não que tem operação! É ruim, hein. Entraram escutando tiros e compraram fichas para o fliperama, era um Street Fighter adulterado, e a tela estava cheia de hadoukens acionados pelos movimentos vigorosos dos dois. Logo depois que o Ken do Lélio matou o Ryu do Chulé no cenário amazônico do Blanka, chegou o Tulim: coé? Coé, Tulim? Sinistro, os porco mataram três. Do movimento? O André e o Helton, e uma criança de bala perdida. Filhos da puta. O Helton nem é mais do movimento, ele arranjou emprego no asfalto. Pois é. Pegaram alguém? Ninguém importante. Ouvi falar que é a formatura de vocês. Nem fala. Então contaram as desventuras da manhã, e o outro caçoou. Tu também nunca roubou. Tulim, embora bem informado, nunca entrou pro crime: ganhava pensão de sua mãe falecida e era um bom aluno, ainda de uniforme e sapato, o que estabelecia um contraste com os molambos dos amigos descalços. Ele ofereceu um guaraná da quota dele a cada, e escutou a grande ideia do Chulé com um sorriso. O Camarão não vai nem falar com vocês hoje, esquece. Poxa, é mesmo! Vocês já almoçaram? Não, cria, tô brocado. Vamo lá em casa. Demorô.
A casa era simples, mas já era melhor que a deles, a comida o Tulim transformou num mexido, que eles comeram com gosto. A laje da casa era presenteada com uma linda vista pro mar, prateado e encrespado sob um céu que voltava a fechar. Tulim abriu uma caixinha e anunciou: esse aqui é especial, é do gringo. Caraca, malandro! Onde você consegue? Um amigo meu que planta, em Seropédica. Tulim não era branco, mas podia passar por branco, e circulava o suficiente no asfalto para ter bons contatos, era também um pouco mais velho que os dois, estava na primeira adolescência, talvez. Essa aqui é a de Amsterdã mesmo, disse Lelinho. Chulé não perdoou: e tu já saiu do Rio um dia, mané? Eu já morei na serra, tu que nunca saiu! E todos riram. Que cheirinho. Limão. O Tulim não bolava como a dupla, mas o baseado de sedanapo funcionava bem o bastante. Os dois ficaram absolutamente fanáticos com a novidade na primeira tragada, exultavam, deitavam no chão, riam, trocavam sopapos de brincadeira, e quando a ponta apagou e o Tulim a guardou na caixinha, quando eles tinham se aquietado no seus cantos, veio a pergunta fatal: e o que é que vocês vão fazer? Chulé arriscou: faca, vamos usar uma faca. Tulim balançou a cabeça: faca não assusta ninguém, olha como vocês são miúdos. Vocês têm de ser espertos. Como assim? Vocês não querem roubar uma bolsa para provar pro Camarão? Ahã. Então qualquer bolsa serve. Tu é maluco. É a coisa mais fácil. Se o Camarão perceber, a gente tá morto, malandro, é ruim, hein. Ele vai ver uma bolsa cheia de coisa, qual é a diferença? E o documento? É aí que eu quero chegar, eu tenho um colega que trabalha numa gráfica. No intervalo de almoço ele fica sozinho. Eu já fiz uma carteirinha lá, plastificada, gringa, perfeita. Aí, Chulé, ele tem razão. Você precisa de um dinheiro pra comprar uma bolsa, uma carteira, maquiagem, lenços, essas coisas. E você precisa de um documento original, é claro, e tem que ser gente do asfalto. Igor ainda não estava convencido: e o cartão de crédito? Se não tiver cartão vai dar na cara. Minha irmã tem um monte de cartão velho, eles não vão prestar atenção nisso. Será, maluco? Nisso a madrasta do Tulim subiu pra chamá-lo a executar alguma tarefa doméstica e os dois se despediram, prometendo voltar no dia seguinte.
Não tá na hora de buscar os menino? Daqui a pouco, bora lá na pedra. Tiveram que passar em casa para pegar o beque: ainda bem que eu não desci com minha dola pro asfalto igual tu. Foi vacilo. Se o segurança quisesse, ele… Tá bom mané, eu tenho que agradecer o cara que me deu um tapão, é? Aproveitaram para comer uns biscoitos (porque bolacha é tapa na cara), passaram no boteco que os refugiara da chuva antes para garantir uma seda e se instalaram no promontório, que tinha hoje já dois grupinhos para aproveitar o paradisíaco ocaso de mais um dia de mormaço por sobre a metrópole e o mar aberto, tinto dos alaranjados e ocres do céu, onde uma bola vermelha baixava sem pressa. E aí, maluco, vale a pena enganar o Camarão? Vale a pena se der certo. Não quer tentar de novo? Com uma peixeira? E como é que tu leva uma peixeira no bolso da bermuda, zé roela? Eu conheço o Camarão há muito tempo, primo, certeza que ele libera um berro pra mim, sem bala, só pra assustar! Bom, então você tenta falar com ele amanhã. O assunto parecia encerrado por ora, mas foi também abreviado pela chegada da Telma, a filha bonita do verdureiro com quem Chulé trocava olhares tímidos escolhendo tomates ou batatas, acompanhada do irmão mais novo, os dois se juntando à celebração canábica após um convite meio sem graça. Após alguma conversa miúda sobre a copa do mundo que ia acontecer em breve, um espetáculo que não era para eles, a Telma soltou um convite ao Chulé: o pai precisava de ajuda e ele podia trabalhar lá. O irmão concordou, aparentemente a contragosto, e o próprio convidado se forçou a mostrar interessado, mais na morena que no trabalho, na verdade. Quando recebeu o beque do “cunhado”, percebeu que estava todo babado, e protestou: ê, boca de piscina! Já não restava nada do sol quando se despediram, passaram na Gorete, que ofereceu torta de frango e refresco, e levaram para casa os menino, onde Milagres recebeu a todos afetuosamente. Igor foi dormir pensando: emprego normal é mesmo coisa de otário?