Bicho Solto 7

Assim que chegaram em casa, guardaram as roupas, agradeceram à mãe com um abraço e chisparam para a pedra, já que não tinham fumado o dia inteiro e o sol avermelhava a bela paisagem àquela hora. Encontraram amigos, dentre eles o Túlio, e lá estava também a Telma, que reiterou o convite ao Igor de ir falar com o pai dela. Eu vou amanhã, disse sem saber por quê. Ela tinha uma marica bacana de mágico, e deu a ele, que aceitou encabulado e se despediu. Mas vai mesmo. Tá, bom, tchau. Aí, ganhou a gatinha, Chulé. Era o Tulim, e o destino era a casa dele, onde estava a bolsa e tudo que eles compraram, e onde ele ficou de conseguir os cartões de crédito da irmã. A próxima parada seria a fortaleza do Camarão, e eles já começavam a tremer por dentro. Cumprimentaram a madrasta do Tulim sem jeito e entraram para o quarto, de onde o anfitrião saiu por instantes para voltar com um maço enorme de cartões de crédito. Os outros dois acharam aquilo um brinquedo tremendo, Milagres nem tinha cartão. Esse verdinho aqui, não, o azul, e escolheram enfim dois cartões para acrescentar à carteira já preenchida do documento falso. Mas ainda não bastava, e esses compartimentos vazios todos? Então eles acharam uns cartões de visita, notas fiscais, e foram deixando a coisa mais realista, estavam orgulhosos do trabalho e subiram para a laje.

Chulé estava tão nervoso que achou por bem partir pro ataque: Olha lá, Lelim, não vai entregar tudo! É ruim, hein? Por que eu? Tu que é medroso. Eu não sou medroso, você que só tem ideia de merda! Ei, caras, chega! A gente não veio aqui pra brigar, fiquem tranquilos que vai dar tudo certo. Aqui ó – e destampou sua caixinha metálica, outrora de biscoitos europeus, presente da falecida mãe – é o último do soltinho. Soltinho! Soltinho! Túlio tinha até dichavador, seda da gringa, mas como era muito pasteleiro foi o Chulé que fechou a bomba, e acendeu com o isqueiro vagabundo. Agora a noite terminara de cair e alguém de longe veria apenas uma brasa rodando e se iluminando com as tragadas vigorosas. Lelim teve uma ideia: vamos fazer uma peruana! Peruana era um desses rituais supostamente para deixar mais chapado, mas em grande medida apenas lúdicos, como é fazer pressão com o nariz tapado ou como, lá no asfalto, os playboys fumam num carro de vidro fechado e chamam de sauna ou fly by night. Chulé tomou o baseado e enfiou na boca invertido, soprando fumaça no nariz do irmão, que caiu pra trás (mas não lá embaixo) dando risadinhas, e nisso foram revezando a brincadeira até que sobrasse só uma ponta, que guardaram na caixinha para saborear o último do beque de qualidade depois de cumprida a missão. Desceram, aceitaram refrigerante da madrasta, Lélio pediu para usar o banheiro, enquanto isso Igor pôs a bolsa, embrulhada num saco preto, embaixo do braço e começou a agir como se toda a ideia tivesse sido dele; o Túlio só achou engraçado. Então voltou o outro e despediu-se do anfitrião, os sofisticados cumprimentos com as mãos fechadas e espalmadas acabaram seguidos de um abraço, ritual que se repetiu com o amigo bravateiro. Vamos lá! Demorô! Mermão, quando eu for bicho solto, com um berro na cintura!

E foram pelas vielas movimentadas onde os pobres achavam alguma energia e alguns trocados para celebrar a chegada do fim de semana, cumprimentaram conhecidos, um deles tinha uma garrafa de cachaça, da qual cada um tomou um gole, até que chegaram à insuspeita casinha de tijolo vermelho e muro baixo sob a qual estava a fortaleza do Camarão. No céu, a chuva se formava, veio um relâmpago e seguiu o estrondo de um trovão. Chulé acenou ao olheiro numa laje, que meneou a cabeça e assobiou com os dedos na boca, e então ele abriu com confiança o portãozinho fabricado de sucata. Duas pistolas estavam apontadas para eles lá dentro, e só após a revista foram abaixadas, depois disso já podiam deslizar pelo buraco no quintal. Chulé desceu primeiro e Lelim, nervoso, não esperou, derrubando o amigo que se recompunha, então lá estavam os dois no chão, e o saco da bolsa também, diante da bandidagem que gargalhava. Coé seus comédia? Camarão estava mais vermelho que de costume de tanto rir. E aí, até que enfim, roubaram? Os dois assentiram com a cabeça. Lélio tinha apanhado a bolsa, e resolveu tomar a dianteira, Chulé só fazia merda, desensacou e mostrou o butim. Coisa mais fácil roubar uma bolsa, falaí. Os dois seguranças de fuzil concordaram. Então mostra aí. Lélio caminhou até o chefe do movimento e entregou a bolsa, tentando não demonstrar nervosismo.

Camarão olhou a bolsa, reparou no raspão no falso couro que eliminou o acabamento perto da alça, o toque de autenticidade deles, e atirou: roubaram pobre, porra! Os dois se entreolharam e fizeram o melhor para manter as canelas firmes. O traficante passou ao capanga à sua direita a bolsa, sem olhar dentro nem dizer nada. O subalterno sabia o que fazer e começou a inspecionar o conteúdo; as coisas menos importantes ele ia jogando ao chão, como o estojo de maquiagem e os lenços, mas quando chegou a vez da carteira ele abriu o fecho e examinou o documento, para então sacá-lo do plástico e entregá-lo ao chefe. Como era essa mulher? Lélio se antecipou de novo, e descreveu sua vítima do salão da Tia Milagres: branca, gorda, cabelo pintado e alisado. E como vocês fizeram? Eu dei um encontrão e o Chulé passou correndo e levou a bolsa. E tu, moleque, não diz nada? Chulé balbuciou alguma coisa e de longe se via que molhara o calção. Não era tu que queria um berro outro dia? Covarde, nem pra trombadinha tu serve! Olha direito essa porra aí. Lá em cima, uma tempestade desabou de chofre. O capanga, que se distraía com o restante dos compartimentos plásticos, passou à face interna dos fundos, e soltou uma gargalhada: Banerj! Faz vinte anos que não existe mais Banerj, maluco! Pois a pensão do Lélio era justamente do extinto banco estadual, e a pilha de cartões velhos incluía os da mãe dele. Bastou um sinal do Camarão para que os seguranças às costas deles acercassem sua ameaçadora presença. O dono da boca vociferou por minutos sobre não admitir ser enganado, sobre já ter apagado uma dúzia que tentou, enquanto os meninos já não controlavam a tremedeira. Patrão, se me permite… era o capanga à esquerda, calado até ali, surpreendendo a todos. Que foi, Ramon, tu também é corajoso, é? Longe de mim, chefe, mas pensa bem: eles roubaram esse RG, não? E tomou o documento nas mãos. Camarão pareceu confuso por segundos e inquiriu a dupla sobre a origem do papel plastificado. A gente falsificou, arriscou Chulé. Tá vendo? Tão me enganando, eu mando nessa boca, é cerol pra eles. Mas Camarão, você disse qualquer crime, eu tava junto. Essa falsificação tá perfeita, tremendo 71. Camarão já deixara claro que não gostava daquela situação: ele mesmo sabia que matar as crianças era crueldade, mas voltar atrás minava a sua autoridade. Ramon insistiu: chefe, se você mata eles amanhã a imprensa e o escambau tá aí embaixo, se você rejeita eles eles vão ser informante, aceita os cria, pô. Então o trafica se virou de novo pro lacaio que examinou a bolsa: e tu, que acha? Eu?! É, tu, que é que eu devo fazer com esses moleque? Antes da resposta veio um silvo de lá de cima, prolongado, e imediatamente o destino dos dois crias já não importava: era um ataque da facção rival, e no meio do plano de defesa da boca do Camarão os dois precisaram esperar a deixa de escapar em meio ao fogo cruzado e sob chuva pesada. Lélio desceu correndo até o asfalto enquanto Igor buscou a pedra de tantos crepúsculos. A separação prenunciou o que viria acontecer em poucos dias, quando um se tornou aprendiz de verdureiro e o outro embarcou com a mãe para a Europa.

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