
Aqui nessa galeria tinha um cinema. Paradiso, não era? Puta clichê. Uma salinha pequena, passava os filmes mais de arte e tal. Teve uns caras da Elétrica nove sete, acho que o Goiano ou o Brodi, acenderam um lá dentro. Eu vi o Serjão da Ciência, um dodói de tudo, tomar um tapão no peito por fazer isso no Delta Blues. Bom, aí vem a fase depois da crise, que é a pior de todas, embotamento, depressão. Eu pegava um livro pra ler, O Nome da Rosa, e ficava achando que não entendia nada. Eu fiz filosofia com o Basali de novo, em vez de falar o tempo todo eu fiquei caladinho, e ele usou o livro da Arendt, eu não entendia nada, mas tempo depois eu reli e vi que tinha entendido sim, é só essa sensação de estupidez que te toma. E me convenceram a frequentar o centro espírita, tomar “passe”, eu realmente me esforçando pra enxergar naquilo alguma ajuda e decepcionado que era o que eu sempre soube que é, um grande vazio palavroso. No trabalho eu estava às voltas com a tal psiquiatra, uma bruaca de cabelo pintado de vermelho, que queria de todo jeito um exame toxicológico, tinha o discurso mais tacanho sobre maconha, e eu acabei pitando com o Luciano, me sentindo culpado pra caralho, recomecei a contagem e consegui ficar os três meses, paguei ainda pela porra do exame e só então retomei minha função. Eles se preocupam mais com o moralismo do que com você, isso já estava claro. O puto do Luciano tinha se mudado pra Brasília nessa época, e até que a gente tretasse a gente conviveu mais um tanto. Ele era da turma do meu irmão em Rondônia, ele, o Daniel de Cruzília e o Tchezinho, que a gente achava hilário mas olhando em retrospecto nunca teve graça nenhuma, a exigência era pouca. Mas eu era moleque, achava o máximo andar com os “mais velhos” e era feito de bobo gostando. Uma vez eu fui visitar o Tchezinho em Passo Fundo, era um ônibus que não parava nunca e eu acendi um cigarro no banheiro, fui advertido, puta estresse. Tudo bolsonarista hoje essa gente, preciso nem perguntar. Eu segui na Geografia mais um tempo sem convicção, até que eu decidi que meu destino era mesmo ser músico e resolvi fazer o curso na Berklee que eu tinha tanto namorado. É claro que o que me faltava era muito mais disciplina e constância que qualquer curso numa escola famosa, e isso eu só saquei lá, quando me passaram um livro sobre síncope com um tiozinho de mil novecentos e guaraná de rolha na capa, eu disse “eu moro no país de música mais sincopada do mundo, que é que eu vim fazer aqui?”. Mas taí, acho que eu fui um deslumbrado, mesmo. Bom, enfim, mais uma vez, qualquer ideia seria desastrosa nessa época. Acabou sendo a viagem mais doida essa, mais que Cruzília, mas como eu estava bem fora de mim ela fica numa categoria à parte, de transe místico. Eu tive um tanto de viagem boa na vida, privilegiado nisso também, e não falo só da grana. Por exemplo, enquanto meu irmão boboca foi de excursão pra Disney eu esperei pra ir estudar inglês com uma idade em que eu já caía na esbórnia, isso foi em Oakland, eu mal cheguei no quarto e já surgiu o assunto de maconha, o colega de quarto já puxou um bong, eu nem sabia o que era isso, só maconha californiana… uma vez eu fui comprar e fui enganado, enorme talento pra isso, vi Metallica e Soundgarden, passei uns dias em Nova York com parentes e capotei várias vezes no Jardim Secreto, que era onde rolavam as festas no campus da Mills College. Eu tomei uma porrada de um idiota lá por ser brasileiro demais (nos dois sentidos) e ainda queria ser amiguinho do sujeito, eu não me respeito. O sujeito tá num curso de inglês mas fala inglês e nasceu na Inglaterra, tempo depois eu fiquei pirando que só podia ser um espião, mas pensa se não faz sentido usar escolas de inglês pra monitor gente que pensa demais nos países periféricos. São só minhas fantasias de que alguém vai se importar com o que eu penso, mais até que paranoia. Dos tempos de engenharia teve a viagem com o Campeão pro Acre e pro Peru, que foi memorável, no tempo em que a gente tomava daime. Eu me lembro que eu tomei emprestado ao Maciel o Cien Años para ir me aclimatando e essa foi basicamente toda minha instrução em espanhol. Na cerimônia em que eu ia me fardar em Rio Branco eu cheguei já no fim, porque meu avião não conseguiu pousar e nisso eu conheci Manaus (eu voltei lá quando viajei a Tefé, subindo o Solimões de lancha). O casal lá da igrejinha era muito simpático, o Zé e a Miriam, isso era no bairro do Alto Santo, e em volta havia várias igrejas, então quando terminava um hino você ouvia a igreja do lado dando o acorde final. Eu tenho sempre muito carinho pelo daime, em São Paulo eu acho que tem muita coisa atravessada, misticismo, mas no Acre, ou lá em Sorocaba, era o que eu mais gostava, a simplicidade. Não sucumbi à síndrome de apóstata, mas não sei se tomo outra vez, no casamento do ex-Cabelo eu recusei, parte porque tenho reserva com a UDV e parte porque dois remédios que eu tomo conflitam com inibidores de MAO e eu não quero descobrir como é uma crise de serotonina. De Rio Branco a gente foi ao interior encontrar o Silvano, um xamã que o Campeão conhecia, e foi mais um trabalho bem intenso, e tinha o Milhões, um simplório divertido quase bobo shakespeareano, lá no lote x do ramal y município de Brasileia, acho, ou era Sena Madureira, enfim, e de lá a gente foi até Assis Brasil, onde passou por cima de uma canoa atravessada no rio (hoje tem ponte) até Puerto Maldonado em solo peruano, donde tomamos um aviãozinho até Cusco.E as pollerias, o melhor eram as ubíquas pollerias, nada mais que galeto com umas fritas gordinhas. A balada era o Mama Africa e as ruínas são impressionantes, eu voltei com minhas camisetas de Cerveza Cusqueña e de Inca Cola pra usar nas festinhas do IFCH. Com o Campeão e o ex-Cabelo eu fiz outra clássica, pra Bahia, quando rolou greve, foi quando presenciamos o festival David Lynch em Trancoso, cada figura que a gente topava era mais improvável que a outra, foi quando eu comprei o doce “fantasminha” em Arraial d’Ajuda, foi quando apareceu o cara vendendo cocoloco, pra você fumar “na chuva, no vento e na cara do sargento”, foi quando a gente ficou com um canudo de artesanato do sujeito que ia tentar descolar um beque e nunca voltou, e na volta a gente errou o caminho e foi parado pela polícia na Baixada Fluminense, eles acharam o kit pala mas não disseram nada, e a pedrinha estava na barraca, ufa (privilégio branco de novo).
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