Autorama 20

Poucos dias depois eu fui internado. Meu pai ligou no meu trabalho, e faria isso mais vezes, por mais que eu brigasse. Esse é o terror da doença mental: perder a autonomia, ver todo mundo decidindo por você, tratando com superioridade ou violência. Eu entrei no carro de boa dessa vez, entre dois capangas dos goiases. Dirigiram uma meia hora até o tal do Santo Antônio do Descoberto, onde estava minha masmorra. Mansão Vida. Coisa de crente, coisa desses crentes que a sociedade decidiu que são adequados para “tratar” quem usa droga. Em Marília eu fiquei duas semanas, lá eu fiquei um mês e meio porque é a política padrão deles pra quem “usa tóchico”. E quem liga se você acha uma injustiça? Você tá sob tutela, sua família vai ficar do lado das instituições sempre, um bando de patetas, medíocres, fanáticos, fascistas… devem ser todos bolsonaristas hoje cada psiquiatra que me submeteu, aquele Antônio Geraldo tá envolvido com as tentativas de promover um retrocesso no cuidado da saúde mental no país, reeditar Barbacena ou algo assim. Você chegava num platô lá em cima onde havia um casarão, parecia mesmo uma fazenda escravocrata, embora os prédios fossem recentes e medonhos, aí um caminho descia e havia um pavilhão à esquerda e uma casa à direita que chamavam (com ironia macabra) de Principal e era o pior lugar de todos, todo mundo jogado, sujo, babando, chapado de haldol e o caralho. Os remédios psiquiátricos que funcionam servem pra manietar a mente e o corpo, o estereótipo do louco se baseia no efeito dos remédios que dão porque não se pode mais amarrar. Se bem que a mim amarraram. Todo hospício tem uma hierarquia, que serve para eles te ameaçarem de punição, como eu já fui punido e “rebaixado” lá no Lago Norte. Em Marília não, mas tinha a “ala do SUS”. Em Aparecida de Gioânia também não, aquela era a única que merecia talvez o título de “clínica”. Mas continuando, lá tinha um galpão e um refeitório, e no fundo tinha ainda uma quadra de võlei de areia, foi lá que eu tasquei um beijão na Milena. Eu não me lembro de muita coisa mais que o episódio da Milena, mas tinha um sujeitinho lá que se parecia muito com o Mineirinho de Marília, só que em vez de cheirar ele fumava, e contava que brigava fisicamente com a mãe pra sair de casa gritando “eu vou fumar maconha, eu vou fumar maconha”, estraga o nome dos maconheiros. Uma vez eu fiz parecido, eu disse a minha mãe que estava indo fumar e que esse cara aqui (com um CD escrito Louis Armstrong) fumava todo dia. Aí esse menino disse “boto fé que você vai ficar só os quarenta e cinco dias”, SÓ filho da puta? Eu estava lá já fazia um tempo quando eu botei os olhos nela pela primeira vez, espadaúda, pernas longas dobradas à sua frente, sentada na grama, cabelinho curto preto, e aquele queixo proeminente que ela um dia contou que já chamaram de “pênis”, olhinhos castanhos… eu sei que “ela parecia ter vinte” é a desculpa mais manjada, mas afinal, não acho que eu corrompi ninguém. Sei que… opa, padoca. Eu estava mostrando meus “poemas” e fiz um charme: “esse eu não posso mostrar” em pouco tempo a gente estava trocando escritos, os dela em papel de carta, que fofo. E no dia do vôlei tão logo acabou a partida a gente se olhou de um jeito que não deu jeito, busquei a boca macia com volúpia, sabe quando encaixa mesmo? A Milena não foi a melhor trepada mas foi o melhor beijo, especificamente no show do Nação Zumbi na UnB, minutos de línguas executando um balé harmonioso. Foi o dia que ela foi lá em casa, quem diria que ela ia passar a me esnobar e rir da minha cara? Eu fui até o Espírito Santo pra ela me dar o bolo, e isso foi outro dia, mas talvez eu não estivesse em condições de encontrar ninguém, certamente não deveria ter encontrado a Thaís, mas oras bolas. O funcionário do hospício nos caguetou, e lá vamos nós encarar a Führerin, como eu chamava, a tal da Dona Ester. Dia.Me dá um maço de Ouroboro, por favor. Era uma branquela gorda, a que mais gostava de brincar de tiranete, um ótimo emprego pra ela, assim como a minha orientadora, putz, nem me lembra isso. Obrigado, boa tarde. Pois se deu que eu abaixei a cabeça e fingi contrição, a moça não parava de sorrir e foi punida por isso, vejam vocês. Vai pra Principal com ela! Ah, mas me lembro sim, como, não, tinha o Ulisses, esquizofrênico, ele tinha juntado umas informações soltas que ele usava pra parecer inteligente, eu voltei lá no ano seguinte (ele morava lá) e ele repetiu tudo de novo, tinha a história da densidade da aceleração, e ele gostava de Jim Morrison, eu nunca vi graça. Mas era um bom parceiro de xadrez. No mais foi desesperar-se pela dose desmedida de confinamento e odiar evangélico cada vez mais.

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