
Aí, seus pivetes, mão na cabeça. Levanta. Devagar. A arma sacada e apontada era no mínimo um exagero, algo que o cana não faria com os moradores daqueles prédios logo ali. Chegou um segundo policial cinzento. Os dois meninos, trêmulos, seguravam as mãos para cima, sendo que as bermudas molhadas nos quadris esquálidos não revelavam volume algum. Que que vocês estão fazendo aqui? A gente veio nadar, senhor, antecipou-se Igor. Vocês estavam fumando maconha! Não, senhor, não. Olha isso aqui. E achou o pedacinho da brasa na areia, um nada de nada, cheirou, deu um tapa em cada. Sargento, leva os menores infratores. Mas sargento, é muito pouco esse flagrante. E aí eles começaram a debater a conveniência de enquadrar os pobres meninos. Sargento, nós vamos deixar a ronda, preencher papelada, ele vão ser soltos no fim. Os dois amigos até começaram a abaixar os braços, mas lá veio a arma apontada. O tira bom venceu no fim, o tira mau deu mais dois tapas e um sermão cheio de palavrões e ameaças, e logo os dois foram retomar ronda da disputada praia da zona sul.
Eu falei pra você, não se demorou a espezinhar o Lelim. Não enche, pô! E saltou lá embaixo, caiu de quatro e logo saiu correndo até a água. O outro não tinha escolha senão seguir, e a desavença não durou; eles celebraram um pouco o alívio e depois tomaram o rumo do ponto de ônibus com os pés descalços no asfalto quente. O busão estava saindo, e vazio, então eles se instalaram em dois assentos como lordes. Quando o ônibus passava por um túnel, o Chulé gemeu; que foi, quis saber Lelim, mas gemeu ele também. Em pouco tempo estavam rolando no chão do ônibus, e os demais passageiros foram muito solidários: não vomita! para o ônibus! O motorista disse que não podia parar ali, mas parou assim que pôde, e eles tiveram que descer, como deve ser com quem está no nível mais baixo da escada social e é esnobado até de pobre. Todo o tempo, a maconha paraguaia cheia de misturas tóxicas revolvia o estômago dos dois, talvez vomitar abreviasse o incômodo, mas nem essa sorte tiveram. Cambalearam pela calçada até onde havia uma birosca e dividiram uma água. Caraca, maluco, eu já comi beque antes e nunca passei mal. É o pastel, cria, muita gordura. A verdade é que àquela altura já estava passando, e como a subida do morro não era longe, optaram por seguir a pé. Mas no meio do caminho o Lélio ouviu uma buzina como se ecoasse numa caverna, e começou a sentir o tempo correndo devagar, e antes que ele dissesse o Igor disse a mesma coisa: cria, tô muito cha-pa-do… O organismo só é capaz de absorver a maconha fumada até um limite, a maconha ingerida demora a entrar, mas atinge uma maior intensidade, e era bem esse o caso. Chulé parou na vitrine de uma loja, uma atendente lá dentro ficou até inquieta, mas ele só queria olhar os manequins de crianças com coloridas roupas de super-heróis, todas elas brancas. O outro se juntou a ele e não demorou a que fossem tocados. Ainda iam parar para viajar na banca de revista, com o mesmo desfecho, antes de atingir o pé do morro e subir apostando corrida.
Tinha feijão com arroz na geladeira, e a mistura foi banana pois não queriam preparar nada. Depois caíram nos colchões surrados cheios de areia como estavam para tirar uma soneca. Foram acordados por Milagres, que, sem agenda pro resto do dia, voltou mais cedo, e ela o fez já brigando pelo desleixo de deitar sujo, tiveram que bater os colchonetes na laje, e já pro banho. Até isso faziam juntos, ganharam um cheiro cada um, e um longo abraço silencioso, que dizia muito. Lélio, escuta, começou ela, sua mãe vem visitar no sábado. Oba! O menino não tinha o mínimo ressentimento de ser posto pra criar, nem entendia os motivos da mãe, que era sempre evasiva. Daqui a pouco vocês vão buscar as crianças, agora deixa a mãe descansar. Chulé aproveitou a ocasião: mãe, a gente pode ir com você pro salão amanhã? Por que, filho? O Lelim quer comprar uma roupa nova pra ver a Ruth, não é? O outro assentiu com a cabeça, animado. Tá bom, vocês tão com sorte, essa semana foi boa. Vão lá, busca os menino logo.
Depois de cumprida a tarefa, o destino era o Tulim, ou a laje dele. O sol se punha e dourava todo o morro, e o mar lá embaixo. Aí, maluco, já combinei com a mãe, vai ser amanhã, você consegue matar aula? Eu consigo sair no intervalo. Dez e meia. E onde é que sua mãe trabalha? Bairro de Fátima. Ah, então é pertinho da gráfica, mas olha, entre meio dia e uma é a hora que o Claudinho pode ajudar. Vamos encontrar quinze pra meio dia… na escadaria. Os dois concordaram e começaram a contar alternadamente tudo que passaram no dia enquanto o baseado empastelado do anfitrião rodava. De repente se ouve um grito lá embaixo, Túlio, deitado de bruços, projeta a cabeça pra fora da laje e anuncia que é o Café: sobe aí, Café. Café tinha a idade de Túlio, era gordinho e apesar da pele preta tinha esse apelido porque sempre foi café-com-leite no futebol. Ele falava rápido, contava umas piadas que só ele ria, e a dado momento ele tirou algo do bolso: olha isso aqui. Era um tubinho conta-gotas que parecia de remédio. É o que, isso? PCP, maluco. Você pinga uma gotinha no baseado e fica mais doidão ainda. Mais doidão? Os dois ainda se lembraram da bad trip da tarde, mas uma experiência nova assim, por que não? E lá se foram, Lelim botou um do seu, Café pingou uma, achou pouco e pingou uma segunda gotinha, o Chulé torceu e acendeu. Dali a minutos estavam estatelados no chão e viajando a universos paralelos; Lelim estava numa festa muito chique, garçons circulando, mas quando ele tentava comer as iguarias viravam areia em sua boca; Chulé mergulhava no fundo do mar, onde havia uma civilização subaquática de homens-sapo, e o rei deles era o Camarão; suas experiências duraram dez segundos no mundo real mas dez minutos no mundo mental, e ao fim delas estavam exaustos. Cada um falou caraca maluco a seu turno e todos foram se reerguendo, cambaleantes, mas o Café perdeu o controle e caiu da laje. Os outros se assustaram: tá tudo bem, Café? Ai, tá, mais ou menos. Eles desceram com cuidado e ajudaram o acidentado, que caíra em cima da horta. Depois de conversar um pouco na rua, se despediram, achando que já tinha passado. Mas no caminho os passinhos estavam bambos.
Lelim, vai indo pra casa, eu já chego. Por que? Vai indo, cria. Chulé esperou o primo sumir e tomou o rumo da fortaleza do Camarão. Deu na telha de pedir a arma, estava se sentindo confiante. Os seguranças deixaram-no entrar sem problema, ele escorregou pra dentro das fundações do muro, onde dois rapazes tinham metralhadora no pescoço e o Camarão cheirava em cima de uma mesa de escritório. Coé, cria, tá fazendo o que aqui de mão vazia? E esse olho esbugalhado? Tu usou o que? Chulé hesitou um pouco e soltou: PCP. Tu é maluco, maluco? PCP não é pra criança, não. Quem te deu PCP? Não lembro. Não lembra? É alguém que eu não conheço. E o que tu veio fazer aqui? Já roubou? É difícil, chefe. E trabalhar na boca não é difícil, covarde? Libera um berro na minha mão, sem bala, mesmo. Sem chance, pivete, dá seus pulo. Poxa, camarão. Só volta com a prova, até domingo, passa!
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