
Depois do café e de levar os menino na Gorete, Chulé e Lelinho foram bater ponto na pedra. Era o primeiro dia de sol depois de uma semana, e a vista do oceano era tão convidativa que não tardou a que Lélio mandasse a letra: vampa praia! Pô, demorô, moleque! E o Tulim? A gente vai lá à tarde. E o Camarão? Vamo à noite. Mas o que você vai dizer ao Tulim se ainda não sabe se consegue a arma? Ah, para de fazer pergunta, Lelinho. Vamo agora, então. Agora tá cedo. Então tá, eu topo. Topa o que? Topo falsificar a bolsa. Ah, moleque! Isso aí, primo. Vai ser tranquilo. Se eu pedisse a peça e ele negasse, aí que ele ia desconfiar mais! Isso mesmo. Não tinham dessa vez esquecido o guardanapo, e o chulé providenciou um torpedo enquanto a vida corria no morro, um pai levava a filha de uniforme e os mototaxis subiam e desciam. Acenderam. Eu acho que eu sei como conseguir o documento, arriscou Chulé, passando. Pô, eu queria terminar a escola. De que tu tá falando? Escola, eu queria voltar pra escola. Coisa de otário, primo, tu vai estudar e vai continuar pobre e da favela. Respeito é uma peça na cintura. O dia bonito atraiu mais gente, e não demorou a se formar uma roda, outros beques serem feitos e o assunto privado se diluir nas fofocas e generalidades, em meio a boas risadas. O sol estava já alto no céu e os dois ali, chapadíssimos, Lélio despertou do transe: vampa praia, maluco. Demorô.
Como estavam, de bermuda sintética, chinelos e mais nada, iam descendo pro asfalto, quando o Lelinho alertou: eu não vou descer com brenfa pra praia. Leva só um, apertado. Olha lá, eu não quero pagar medida. Tu também não quer pagar medida. Fica tranquilo, porra. Qualquer coisa come, sei lá. Então passaram em casa, fizeram um, que Chulé pôs no bolso, e prosseguiram trocando prosa miúda até o ponto de ônibus. Ali eles comeram pastel e tomaram caldo de cana, e compraram uma garrafa grande de água para a jornada. Como eles conheciam motorista e cobrador dos ônibus que iam para a praia, pagar não foi um problema mais uma vez. Andando pela cidade, em pé e segurando no ferro, observavam os casarões, os prédios e as lojas, como as de roupas, eles que usavam quase que só roupa doada. Desceram no ponto final, que era a três quadras do mar. Atravessaram no sinal fechado, como bons meninos, mas mesmo assim foram parados mais adiante, era a guarda municipal. Lelinho gelou até a espinha, Chulé garantia estar no controle da situação. Eles tinham os documentos para mostrar, e os guardas mais tentaram dissuadi-los de chegar até a praia do que revistaram os meninos em busca de ilícitos. Malandro, que alívio… eu sei, deixa comigo. Então eles pegaram o rumo oposto da praia e na próxima quadra contornaram, chegando ao mar sem constrangimento.
Já na faixa de pedestres da avenida movimentada iam pulando e chamando atenção, geralmente negativa. Passaram direto pelo calçadão onde um gostosão ou gostosona desfilavam, cachorros passeavam seus humanos e camelôs vendiam coco ou cangas, passaram ainda entre duas barracas cujos preços não eram para eles, passaram pelas tendas e cadeiras de quem consumia e só pararam com os quatro pés pretos mergulhados na água salgada. Molharam um ao outro um pouco, Chulé foi até a areia e discretamente enterrou beque, isqueiro, dinheiro e documentos, perto de onde ficaram os chinelos, e só então foi se juntar ao amigo-primo-quase-irmão que já pegava jacaré àquela altura. Por longos minutos aproveitaram a água gelada da cidade que até eles mesmos achavam maravilhosa, e quando estavam satisfeitos saíram, mas não viam os chinelos. Filho da puta! E nisso tinham toda razão, quem roubaria chinelos velhos de dois meninos favelados? A menos que seja hostilidade pela própria presença deles, não se explica. Chulé correu para conferir o esconderijo, e tudo estava a salvo, menos mal. Vamo fumar logo isso. Onde? Olharam na direção da terra. Coqueiros, barracas, prédios altos; à esquerda deles, o Lelinho apontou, havia um morrote de areia coberto de uma vegetação praieira incipiente, e na ponta dele estariam escondidos do movimento no calçadão e com boa visão da movimentação na praia, onde circulava quadriciclo da polícia às vezes. Ali é canal, cria. Por mais que a lógica fosse boa, os dois meninos chamavam atenção ali, e eles deviam saber que era arriscado. Instalaram-se e acenderam a bomba, sempre olhando em volta. Eu acho que sei como conseguir o documento, mané, disse Igor, passando. Ah é, e como, então? No salão da mãe. Eu invento um motivo pra ir com ela, essas madames ficam horas lá, eu pego, a gente vai com o Tulim copiar e eu devolvo. Se ela descobrir, você apanha. Descobre não. Então fechou. Então olharam de novo, um polícia. Chulé foi rápido, decapitou a brasa do beise e dividiu o restante em dois, passou uma metade ao parceiro, e os dois as mandaram à boca.
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